Limites da dívida pública: Efeitos deletérios da proposta de Serra

O projeto de Serra limitando a dívida pública federal coincide, em números, com a proposta de 1998 feita pelo FMI. Estimando-se que o PIB alcance R$ 6 trilhões neste ano de 2015, o percentual acordado com o FMI em 1998, de 46,5% do PIB, limitaria a dívida federal em R$ 2,8 trilhões. O projeto de J. Serra, de 4,4 vezes a receita corrente líquida, propõe limite similar, de R$ 2,77 trilhões, caso neste ano de 2015 a receita corrente líquida do governo federal se situe em R$ 600 bilhões.

serra

Por Ceci Juruá*

No Brasil, este limite é claramente incompatível com as funções e competências atribuídas constitucionalmente ao governo federal. Na passagem do governo tucano para os petistas, na virada de 2002 para 2003, a divida bruta foi de 60% do PIB. Desde então ela se manteve próxima a este patamar. Contudo, segundo o FMI, ela poderá atingir 70% do PIB neste exercício de 2015 e superá-lo no próximo, caso se confirmem as expectativas de recessão econômica e se mantenha em níveis absurdos a taxa SELIC, atualmente de 14,25%.

O Fundo Monetário Internacional projeta uma alta expressiva da relação entre a dívida bruta brasileira e o Produto Interno Bruto nos próximos anos… Pelas estimativas do Fundo, o endividamento bruto deverá saltar de 65,2% do PIB em 2014 para 69,9% do PIB em 2015 e 74,5% do PIB em 2016, devido à combinação de baixo crescimento e resultados fiscais fracos. (Valor/C7, de 08-10-2015)

Por outro lado, a comparação com outros países também evidencia as dificuldades de impor limites irreais à dívida pública no atual ambiente econômico mundial. Não são poucos, nem insignificantes, os países nos quais o endividamento atinge 100% ou mais do Produto Interno Bruto.

Outra consideração diz respeito às origens do endividamento atual. Ele não foi construído para permitir despesas superiores à arrecadação. Ao contrário, entre 2003 e 2014, o governo federal obteve superávits primários em todos os anos, à exceção de 2009 e de 2014. No total do período, os superávits acumulados aproximaram-se de 40% do PIB, enquanto os déficits de 2009 e 2014 somaram 1% do PIB.

Em números atuais, um superávit de 40% do PIB representa R$ 2,4 trilhões, um montante respeitável mas incapaz de cobrir a dívida herdada do governo FHC que crescia, e cresce, a cada ano, por efeito das elevadas taxas de juros, determinadas pelo Banco Central a partir das exigências dos credores. Logo não se trata de um problema fiscal, o atual déficit nominal é uma questão eminentemente financeira. Em grandes números, pode-se dizer que os governos do PT repassaram aos rentistas trilhões de reais que não foram suficientes para impedir a multiplicação por quatro da dívida federal no período de doze anos.

Se é assim, não se entende por que o Senador Serra, em lugar de tentar impor limites irreais à divida governamental, não dirigiu seu arsenal de conhecimentos para a causa efetiva do atual processo de endividamento – a taxa de juros. Serra poderia propor um teto razoável para a taxa SELIC, 2% reais acima da taxa norte-americana, por exemplo. Poderia também, com seus conhecimentos de economista e ex-ministro, propor mudanças no cálculo dos indicadores de inflação, a fim de evitar o efeito de movimentos especulativos sobre o índice geral de preços. Estas seriam propostas bem vistas, condizentes com a vontade geral de impor freios à ação de rentistas que se apropriam do excedente gerado pelo trabalhador brasileiro.

Mas o Senador preferiu outros atalhos, sua proposta assumiu tons punitivos, de castigo, espécie de palmatória dirigida para evitar que o governo federal possa intervir em defesa do mercado interno e da sustentação do emprego doméstico em situações de crise econômica. Dentre os efeitos de sua sub-emenda ao projeto PLS 84 do Senado Federal, há um tiro mortal, certeiro: a incapacidade de realizar operações de enxugamento de liquidez, por parte do Banco Central, para compensar a entrada de capitais estrangeiros em volume nem sempre compatível com as dimensões monetárias da economia brasileira. Como vem acontecendo recorrentemente há alguns anos, tendo em vista os déficits em transações correntes mas também a atração exercida pelas oportunidades de investimento no Brasil.

A proposta do Senador Serra, de trocar dívida líquida por dívida bruta, e de relacioná-la à receita corrente líquida em lugar de utilizar o Produto Interno Bruto, como fazem os demais países do mundo ocidental, irá provocar prejuízos inestimáveis à economia brasileira. Prejuízos não previstos na proposta do Senador. Haverá uma série de efeitos nocivos impedindo uma ação racional em matéria de política macroeconômica e monetária.

A proposta de Serra colocará também em risco o sistema de aposentadorias e pensões da Previdência Pública. Como a receita corrente líquida é calculada deduzindo-se das receitas primárias as transferências constitucionais aos estados e municípios, mais as despesas relativas à Previdência Social, é bem provável que em situações de aperto financeiro, com a dívida bruta atingindo o limite estipulado na proposta Serra, o Congresso venha a optar por sacrificar aposentados e pensionistas em lugar de alterar os limites do endividamento. Isto pode ocorrer já neste ano ou no próximo.

Ainda poderão ser prejudicados todos os que vem sendo beneficiados por créditos públicos com taxas de juro menores do que aquelas utilizadas pelo setor bancário privado, doméstico ou internacional. Ficarão todos expostos aos humores de um mercado financeiro desumano e dominado pela cobiça sem limites.

Enfim, o que fará o Banco Central se ficar impedido de enxugar a liquidez com títulos do Tesouro Nacional? A exemplo do que ocorreu na Argentina, e já foi sugerido entre nós, irá permitir a abertura de contas no Brasil em moeda estrangeira? Sabe-se que esta não é uma solução, ao contrário pode ser o início de um grande desastre ou tragédia econômico-financeira.

O Brasil e os brasileiros merecem outro futuro. Ainda se pode confiar no Senado da República. Espera-se que os senadores rejeitem logo, com veemência, este e outros projetos similares que tentam anular o Estado brasileiro em suas tentativas de restaurar uma trilha de desenvolvimento soberano e com justiça social.

* Ceci Juruá é economista, doutora em Políticas Públicas, membro do Fórum 21 e do Conselho Consultivo da CNTU. RJ, Nov.2015 (www.desenvolvimentistas.com.br/caleidoscópiobrasileiro)