40 anos da morte do ícone do cinema italiano, Pasolini

Um dos maiores artistas do século 20, o intelectual marxista Paolo Pasolini era detestado pela burguesia. Para muitos, sua morte foi resultado de um complô político.

Por Leneide Duarte-Plon, de Paris

Pier Paolo Pasolini

Em avanço sobre sua época, o poeta, romancista e cineasta, morto de forma violenta na praia de Ostia, perto de Roma, foi relembrado dia 2 de novembro em Paris por ocasião dos 40 anos de sua morte. Na última entrevista, dada na véspera de morrer ao jornalista Furio Colombo, do jornal La Stampa, ele constatava: “Estamos todos em perigo”.

Quem foi Pier Paolo Pasolini?

Um dos maiores artistas do século 20, o intelectual marxista engajado era detestado pela sociedade burguesa. Para muitos, sua morte foi o resultado de um complô mafioso ou político para calar o incômodo crítico da política italiana, sobretudo na coluna Escritos corsários, publicada no Corriere della Sera, nos dois últimos anos de vida. A Democracia Cristã, severamente criticada por Pasolini por alimentar o clima de tensão da Itália dos « anos de chumbo », viu, três anos depois, seu líder Aldo Moro ser sequestrado e morto pelas Brigadas Vermelhas.

O intelectual era a consciência crítica de uma sociedade profundamente dividida politicamente. Apaixonado pelo Cristo dos pobres, que levou às telas no que é considerado o mais belo perfil de Jesus de Nazaré (O evangelho segundo São Mateus), o poeta foi lembrado em um encontro de intelectuais e artistas em Paris, no Théâtre du Rond-Point, no dia exato dos 40 anos de sua morte.

Seu assassinato, em 1° de novembro de 1975, na praia de Ostia, perto de Roma, permanece até hoje um mistério. Seus inimigos preferiram acatar (ou fabricar ?) a tese de crime sexual, atribuindo à homossexualidade de Pasolini a responsabilidade de sua morte.

Na madrugada do dia 2 de novembro de 1975, Pasolini tinha apenas 53 anos e acabara de fazer o filme “Saló ou os 120 dias de Sodoma”, baseado em texto do Marquês de Sade. Ao ver-se sozinho em seu carro num suposto encontro homossexual foi espancado até morrer. O seu próprio carro foi usado para passar por cima de seu corpo.


Pietà de Ernest Pignon-Ernest

A cerimônia foi uma iniciativa do artista plástico Ernest Pignon-Ernest, comunista como o italiano, e teve a presença de Claudia Cardinale, Alfredo Arias, Adriana Asti, Michel Fau, Françoise Fabian, entre muitos outros. Ernest Pignon-Ernest fez um belíssimo retrato do artista como uma Pietà e lembrou que a representação do inferno para Pasolini poderia ser o capitalismo consumista desumanizante e destruidor de laços de fraternidade, que ele pressentiu.

Biógrafo e tradutor de Pasolini, René de Ceccatty ressaltou em artigo que o intelectual era intransigente em política e detestava a corrupção e o oportunismo. Ceccatty pergunta se sua morte não teria sido uma resposta dos serviços secretos italianos a um artista que chocava e incomodava, como os profetas do Antigo Testamento perturbavam os poderosos com sua pregação radical. Como um profeta, Pasolini previu o terror no qual o país iria mergulhar.

Ele lembra que Pasolini escreveu um romance, Petróleo, publicado depois de sua morte, no qual conta a corrupção na ENI, a empresa de petróleo estatal da Itália. Em 1962, o presidente da ENI Enrico Mattei tinha morrido num misterioso acidente de avião causado, provavelmente, por ter quebrado o monopólio das Sete Irmãs, as companhias de petróleo multinacionais que davam as cartas no Oriente Médio.

Sociedade doente que mata seus poetas

Pasolini incomodava com sua lucidez e sua coragem de pôr o dedo na ferida de uma sociedade italiana hipócrita e corrupta. Ele denunciou a corrupção da Democracia cristã, descreveu a ascensão vertiginosa do neocapitalismo triunfante que vemos hoje em dia totalmente vitorioso no Ocidente; previu a ascensão de um tipo de político ligado a negócios milionários, como Berlusconi. E foi um dos primeiros a denunciar a uniformização, e consequente destruição, das culturas nacionais e locais no processo que hoje chamamos de mundialização.

No enterro, seu grande amigo, o escritor Alberto Moravia, sugeriu um crime político : « Uma sociedade que mata seus poetas, é uma sociedade doente. »

Seu último filme, Saló, só foi lançado depois de sua morte. O filme provocou a ira dos espectadores ao pôr em cena cruamente histórias do Marquês de Sade adaptadas ao contexto da República fascista de Saló, controlada pelos nazistas. Nela, fascistas sequestram 16 jovens e os aprisionam numa mansão onde são usados como fonte de prazer e sadismo. Considerado o artista mais escandaloso da Itália do pós-guerra, Pasolini teve de responder a mais de 20 processos.

Apontado como autor da morte do poeta, Giuseppe Pelosi foi condenado em 1976 à pena de nove anos de prisão, mas muitas dúvidas a respeito da autoria única do crime permanecem até hoje. Uma das hipóteses é que o crime teria tido motivações políticas e foi cometido por membros do movimento neofascista italiano. Em uma entrevista à televisão italiana em 2005, Pelosi afirmou que fora coagido a confessar e que outras pessoas teriam assassinado Pier Paolo Pasolini.

No cinema, os clássicos da literatura universal

O ecletismo de Pasolini levou-o a visitar no cinema clássicos de diversas culturas : filmou As mil e uma noites, Édipo Rei e Medeia, mas também se interessou pelo escritor e poeta inglês do século 14, Geoffrey Chaucer, de quem adaptou Os contos de Canterbury. Do poeta italiano Bocacio, também do século 14, adaptou para o cinema O Decameron.

O leitor de Antonio Gramsci, poeta e teórico do marxismo morto nas prisões do fascismo, a quem dedicou seu livro de poemas As cinzas de Gamsci, também fez incursões pelo Novo Testamento. O Jesus de seu filme O Evangelho segundo Mateus, de 1964, é um líder revolucionário, um perfeito precursor do Jesus Cristo libertador dos teólogos da Libertação. Sem acrescentar uma vírgula ao texto original de Mateus, Pasolini reconciliou nessa obra-prima o cristianismo e o marxismo e fez um dos mais belos filmes do cinema italiano. É, sem dúvida, a mais despojada e fiel adaptação do Evangelho.

No seu último filme, Saló ou os Cento e vinte dias de Sodoma, o sexo não é um instrumento de libertação como na trilogia que o precede (Decameron, Contos de Canterbury e As mil e uma noites).

Ele é servidão. Ambientado na república fascista de Saló, o filme mistura pornografia e tortura na reconstituição da obra do Marquês de Sade. O caráter escatológico do filme contribuiu para aumentar o ódio dos cristãos integristas por Pasolini, que sempre abordou a religião com uma visão pessoal e libertária e nunca dissimulou sua homossexualidade.

Uma amiga do cineasta, a atriz Adriana Asti, observou que « tudo o que ele temia aconteceu : a globalização, o reinado da televisão, o consumismo ». Seu último livro, Petróleo, descreve, profeticamente, atentados terroristas em estações de trem. Cinco anos depois de sua morte, o primeiro atentado terrorista neofascista, na estação de Bolonha, matou 85 pessoas.

Um dos diretores italianos mais marcados por Pasolini, Marco Tullio Giordana, realizou, em 1995, um admirável filme sobre a morte do cineasta, chamado Pasolini, un delitto italiano. O filme mostra a complexidade do processo, que nunca chegou aos verdadeiros assassinos, contentando-se com a prisão de um jovem de 17 anos que confessou o crime e, anos depois, declarou haver mentido sob pressão dos verdadeiros autores do assassinato.

O mais festejado filme de Giordana, que conta a história dos últimos 40 anos do século XX na Itália, se chama La meglio gioventù, o nome do primeiro livro de poemas de Pasolini. Não é uma coincidência mas uma homenagem de um fã incondicional.

Outro fã, o cineasta Abel Ferrara, que pensa como muitos que Pasolini foi o « último grande intelectual italiano », realizou recentemente um filme no qual o ator Willem Dafoe vive o poeta em seu último dia de vida.