Paulo Kliass: Serviços públicos ou mercadorias de consumo?

O Brasil viveu um inquestionável processo de redução de suas desigualdades de natureza social e econômica ao longo da última década e meia. A diminuição do número de indivíduos e famílias que viviam em situação de miséria e pobreza extrema contribuiu para a melhoria de um conjunto de indicadores que procuram avaliar os aspectos da qualidade de vida e da inclusão social.

Por Paulo Kliass

consumo

Esse movimento de mudança importante na composição da dinâmica da distribuição de renda pode ser atribuído a um conjunto amplo de fatores intervenientes. De qualquer maneira, em nenhuma hipótese pode ser considerado como uma tendência natural de ajuste das livres forças de mercado, na busca de um sistema social mais marcado pela igualdade e pela isonomia entre os seus cidadãos.

Muito ao contrário do credo liberal, as transformações observadas guardam relação íntima com uma postura pró ativa do Estado brasileiro, operando uma vontade política que resultou na implementação de políticas públicas voltadas para a construção de um país mais justo e menos desigual.

Redução das desigualdades e inclusão

A política de valorização do salário mínimo foi um dos elementos basilares dessa empreitada. Assim, o governo optou pela inclusão em texto de lei de regras que garantissem a reposição das perdas inflacionárias, bem como um crescimento real da remuneração associado ao comportamento da economia brasileira – o crescimento do PIB.

É importante considerar também a ampliação do acesso aos benefícios da previdência social, assim como a valorização real dos valores de aposentadorias, pensões e direitos similares. Como por volta de 70% dessas obrigações, que são atribuídas a mais de 22 milhões de famílias, apresentam o valor mensal de até um salário mínimo, o impacto do volume de recursos associados ao INSS movimenta uma parcela significativa da nossa economia.

Além disso, a preocupação dos últimos governos com a formalização das relações de trabalho permitiu a inclusão de milhões de trabalhadores no mundo real e concreto das empresas, constituindo avanço nas conquistas sociais e na ampliação de direitos. Ainda que tenham perdido espaço em termos relativos, os trabalhadores por conta própria e autônomos também foram estimulados a formalizarem sua atuação profissional, ocupando a as oportunidades oferecidas pela franca expansão do setor de serviços.

Finalmente, temos a criação, ampliação e consolidação de um conjunto de políticas de complementação renda voltadas para segmentos da população historicamente excluídos de medidas protetivas por parte do Estado. Dentre elas, a mais importante foi a institucionalização do Programa Bolsa Família como mecanismo de transferência de renda para os setores mais vulneráveis de nossa sociedade. Ainda que pouco expressivo do ponto de vista orçamentário, os resultados apresentados por esse tipo de programa contribuíram sobremaneira para a redução das desigualdades.

A fragilidade da inclusão pelo consumo

Apesar de todos esses aspectos positivos, foram identificados problemas estruturais no que se refere ao atendimento de direitos constitucionais de cidadania, tais como previstos na Constituição. Todo o processo de elevação do nível médio da remuneração da população, em especial dos estratos mais baixos da pirâmide de distribuição de renda, proporcionou um aumento expressivo da capacidade da demanda por bens e serviços de toda a ordem.

No entanto, o calcanhar de Aquiles de todo esse processo inclusivo reside justamente em uma de suas características intrínsecas. A opção adotada e mantida pelos sucessivos governos, desde 2003, foi a de promover a inclusão preferencialmente pela via de acesso ao consumo. Esse movimento não foi acompanhado plenamente pela consolidação e pelo reforço da oferta de tais serviços públicos por parte do Estado.

Áreas estratégicas como saúde e educação, por exemplo, passaram por uma intensa ampliação de sua estrutura, com o objetivo de disponibilizar o acesso à população. Ocorre que tal expansão teve por base, primordialmente, o crescimento da rede montada pelo capital privado. Os grandes investimentos realizados por fundos de investimento – em geral vinculados a grupos de capital estrangeiro – estão na base do crescimento da rede de atendimento de tais setores.

Com isso, vivemos um momento importante de transição. As necessidades dos serviços públicos, cuja responsabilidade até então era atribuída preferencialmente ao Estado, passam cada vez mais a serem atendidas pelo empreendimento privado. Os direitos democráticos de cidadania transfiguram-se em mercadorias de consumo para a grande maioria da população. Tais obrigações previstas na própria Constituição, algumas de caráter gratuito e universal, transformam-se em itens de compra, cujos mercados passam a operar de forma progressiva com conceitos e atributos como preço, taxa de retorno, lucro, entre outros.

Ainda que não tenham sido completamente sucateadas, as áreas públicas como o Sistema Único de Saúde e a rede das universidades públicas, por exemplo, não acompanham a impressionante expansão proporcionada pelo investimento do setor privado.

Os programas do governo federal como o FIES (financiamento público para pagar as mensalidades do ensino superior privado) e o PROUNI (bolsas do governo para cobrir parcela dos custos das faculdades particulares) converteram o estudo universitário em uma fonte segura de receita para o capital proprietário das vagas. Modelo operacional semelhante se dá com as escolas de ensino fundamental e médio, que também contam com o incentivo da dedução do Imposto de Renda da parcela destinada pelas famílias para o pagamento de despesas desse tipo.

No caso da saúde, o cálculo de retorno financeiro elevado e garantido no investimento realizado trouxe para cá os principais grupos de atuação no ramo em todo o mundo. O setor tem passado por um processo intenso de oligopolização e verticalização, envolvendo as áreas de seguro de saúde, plano de saúde, hospitais, laboratórios, clínicas médicas e serviços de apoio. O crescimento tem se dado com base na expansão da rede privada, tanto pela via da terceirização com base no modelo de parceria-público-privada (as famosas PPPs), quanto na ampliação da estrutura física privada em sentido estrito.

Mercantilização em tempos de crise

Esse processo de mercantilização se desenvolve em sintonia com o referido processo de inclusão social e econômica pela via do consumo. Tendo em vista a natureza capitalista dos empreendimentos, a lógica de sua atuação se baseia fundamentalmente na obtenção do lucro mais elevado. Assim, a dinâmica da operação se baliza em auferir a maior rentabilidade possível, com manipulação de movimentos de elevação da receita e redução das despesas. A busca da qualidade do serviço oferecido deixa de ser a prioridade para o gestor privado.

Frente a esse novo enquadramento de atendimento da demanda social pelos antigos bens públicos, as relações entre os diferentes atores mudam de patamar. A partir de então, os doentes se transformam em “clientes” e os estudantes passam a ser vistos como “consumidores”. Cada uma das atividades é precificada e os serviços tornam-se objeto de pagamento para serem atendidos.

Tendo em vista que os governos renunciaram à via da institucionalização da satisfação dos direitos como serviço público estruturado, o processo de inclusão social se torna cúmplice do processo de acumulação de capital. Realizar a diretiva constitucional de acesso à saúde e à educação significa consumir e remunerar escolas, universidades, hospitais e laboratórios – todas essas instituições agora privadas.

Em tempos de crise e de redução do ritmo da atividade econômica, a conjuntura torna-se ainda mais complexa. Desemprego e diminuição da massa salarial se associam às consequências drásticas do austericídio em marcha. Cortes orçamentários nos programas governamentais ligados às áreas sociais fragilizam ainda mais os serviços já precarizados.

A inclusão pela via do consumo se vê diante de uma encruzilhada. Afinal, para consumir o cidadão precisa de renda. A obtenção dos serviços de saúde e educação mercantilizados pressupõe o pagamento, tal como previsto no contrato. E o dinheiro da família começa a não dar conta das necessidades básicas de sobrevivência até o final do mês.

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.