A narrativa que sustenta o regime de impunidade na Palestina ocupada

O premiê israelense Benjamin Netanyahu deve revelar medidas de “construção da confiança” com os palestinos durante visita aos EUA na segunda-feira (9). Entretanto, alimentando a persistente violência na Palestina, com as mortes novamente empilhadas nas manchetes, a resposta do seu governo é sempre para cumprir profecias: o “radicalismo” dos palestinos deve ser “contido” para se evitar o consequente “radicalismo” dos palestinos. Enquanto isso, a ocupação segue em metástase.

Por Moara Crivelente*

Israel Palestina - AFP/Thomas Coex

No final de mais um mês de violência intensificada na Palestina ocupada, o presidente Mahmoud Abbas dirigiu-se ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em tom exasperado: “Aquilo que avisamos, aconteceu: a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos, incluindo Jerusalém Oriental, como resultado da contínua ocupação israelense e suas práticas, é a pior e mais crítica desde 1948,” disse ele numa sessão em 28 de outubro. Quase 80 pessoas já tinham morrido; cerca de 70 delas, palestinos – em grande parte, jovens.

Seus corpos, como escreveu o colunista israelense Gideon Levy, são atrações nos vídeos e fotos dos colonos ou dos soldados, extasiados com a sensação de vingança provocada pelos discursos virulentos dos seus líderes contra os palestinos – qualquer um, seja os investidos em ataques com facas ou estudantes, mães e trabalhadores nos postos de controle militar israelenses, recebidos a balas. Levy insiste em denunciar a desumanização dos palestinos, que encontra na "punição coletiva", um crime de guerra definido pelo direito internacional humanitário, apenas uma extensão. Além dos mortos, em outubro 1.197 palestinos foram presos, inclusive 177 crianças e 171 em "detenção administrativa".

O presidente Abbas instou à partilha de responsabilidades e a “intervenção decisiva” da ONU e seus Estados membros. “Paz, estabilidade e segurança não serão alcançadas caso a ocupação israelense não seja encerrada e a independência do Estado da Palestina obtida, com Jerusalém Leste como sua capital, nas fronteiras de 4 de junho de 1967, de acordo com a legitimidade internacional, e não através do uso da força, do colonialismo, da punição coletiva, da demolição de lares, de assassinatos extrajudiciais, da negação do outro e da afronta à dignidade do nosso povo”, enfatizou.

Estas palavras deveriam enquadrar as análises sobre o que os meios de comunicação insistem em classificar como ondas de violência, como se fossem episódios desconexos, teimando no foco em Jerusalém como motivo central da “fúria” palestina – uma revolta supostamente instigada pela religião. Esta narrativa é persistente, simplória e solo fértil para a representação dos palestinos enquanto extremistas armados com facas e pedras para atacar israelenses. Em 2000, a segunda intifada – o levante palestino – também era retratada pelos meios de comunicação apontando à presença do então premiê Ariel Sharon na esplanada da mesquita Al-Aqsa, “o local sagrado”, sem qualquer contextualização sobre aquilo que foi apenas a gota d'água.

É preciso desvendar a persistência orwelliana – essa ação enviesada de manipulação da história e a insistência em uma narrativa que transforma fatos. Diversos líderes da extrema-direita israelense e outros menos “extremos”, como o rabino David Shlomo Stav, que esteve recentemente no Brasil para uma iniciativa de diálogos, parecem ter certeza sobre uma dimensão religiosa do conflito – e assim agem para cumprir sua profecia. O vídeo abaixo, da AFP, mostra os confrontos e os seus resultados ao redor da mesquita, tanto pela ação dos soldados quanto de grupos que defendem a sua destruição para a construção de um novo templo judaico.

Entretanto, enfatizando o caráter político da empreitada colonialista e suas consequências, com a insistência palestina em resistir, líderes políticos e religiosos, jovens, professores e sindicalistas, entre outros, denunciam a manipulação da religião pela tendência de encobrir a causa central da violência: a ocupação. Esta, por sua vez, maquiada pelo termo “medidas de segurança”, é justificada pela liderança israelense e os cidadãos que a apoiam com o “radicalismo” dos palestinos.

Os palestinos como ameaças e a religião como palco

Antes, eram as pedras, agora são as pedras e as facas, ou carros usados como armas pelos que não contam com um grande e moderno Exército para “se defender”, embora o seu direito à resistência seja deliberadamente menosprezado. Entretanto, as mortes de 70 palestinos são demasiadas assim como as mortes de nove israelenses, colocando em evidência que todos têm demasiado a perder com a manutenção do estado das coisas – essa estratégia predileta da direita israelense.

A narrativa midiática com foco em Jerusalém não se sustenta nos fatos. A BBC relatou, na quinta-feira (5), que o epicentro da violência está naquela cidade. Entretanto, estatísticas da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) apontam que foi em Hebron onde mais palestinos morreram em outubro: 25 pessoas. Outras 19 foram mortas em Jerusalém e 17 na Faixa de Gaza. De acordo com a organização local de defesa dos direitos humanos Al-Haq, 23 desses palestinos foram mortos durante protestos, em que os soldados têm cada vez atirado para matar.

Os ataques dos palestinos, sobretudo com facas, que mataram nove israelenses, também acontecem majoritariamente em Hebron, que abriga mais de 400 famílias de colonos protegidas por milhares de soldados, espalhados em diversos postos de controle entre bairros. Ruas como Al-Shuhada, antigamente vibrante com comércios, estão bloqueadas há anos e outras evidenciam a segregação, com separações físicas e regras de circulação, entre vários outros reflexos de um regime de apartheid que se sustenta na humilhação diária e na negação completa da dignidade a uma parte da população. O vídeo abaixo, da organização israelense B'Tselem, de 9 de outubro, mostra colonos lançando pedras sob a proteção dos soldados, que também lançam bombas de gás lacrimogêneo contra os palestinos.

Já Jerusalém deve estar sob foco não especificamente por seu simbolismo religioso, mas porque ali habitam milhares de palestinos objeto de um “plano de transferência” denunciado há duas décadas por organizações civis. No final de outubro, o premiê Netanyahu levantou a nefasta proposta, não encaminhada, de revogação da residência de cerca de 100 mil palestinos de Jerusalém, que vivem para além do muro construído por Israel. Os palestinos têm infraestrutura precária, sujeitos à arbitrária administração israelense – pagando impostos principalmente para comprovar a sua residência. Mesmo assim, são frequentemente sujeitos a despejos para a expansão de colônias.

A ocupação enraiza-se no moribundo processo de paz

As “medidas de confiança” que Netanyahu prometeu anunciar não estão definidas, segundo o diário Haaretz, porque há grande oposição no interior do seu controverso gabinete de governo. O tema, entretanto, deverá ser posto à mesa em forma de barganha. Os EUA ofereceram à liderança israelense um aumento na já bilionária ajuda militar anual para que engula o acordo assinado com o Irã sobre o programa nuclear. Ainda assim, a retomada de conversações entre palestinos e israelenses, um objetivo do governo Obama, parece estar fora de questão; não significa grande surpresa, inclusive, dada a falta de avanços nas conversações anteriores.

Os palestinos expressam cada vez maior frustração com o papel estadunidense no moribundo processo de paz e buscam a participação de mais atores para além de um aliado de Israel. Um exemplo da insustentabilidade e da insuficiência deliberada no posicionamento israelense – sobretudo determinado pela virulência da extrema-direita – é o fato de não estar previsto um anúncio formal de congelamento na construção de colônias nos territórios palestinos ocupados, embora Netanyahu a tenha suspendido informalmente por receio no deterioramento das suas relações com aliados como os próprios EUA e a União Europeia. No início do ano, durante a corrida eleitoral, o posicionamento franco do premiê a favor da expansão das colônias contrariou muita gente.

O esforço para eliminar as chances de estabelecimento do Estado da Palestina – ou seja, a morte da “solução de dois Estados” – tem sido avaliado inclusive pelo presidente Barack Obama com preocupação. Chega o momento em que a negligência diante expansiva ocupação israelense sobre a Palestina cobra caro inclusive ao aliado israelense, que também pretende apresentar-se como o mediador que resolverá o conflito do Oriente Médio.

Recentemente, o aniversário de 20 anos desde a morte do premiê Yitzhak Rabin, assassinado por um israelense após assinar os Acordos de Oslo na década de 1990, foram marcados por análises do percurso traçado até 2015, em que uma solução parece ainda mais distante do que naquele momento. Explica-se assim o apelo crescente dos palestinos ao envolvimento de mais atores, à responsabilização da liderança israelense e ao comprometimento da ONU com a proteção do seu direito à autodeterminação e, essencialmente, à vida.