Literatura na periferia ou literatura da periferia?

A propósito da onda de manifestações literárias, das mais variadas dimensões e formas, nas periferias de São Paulo, conversei com os estudantes da Faculdade Sumaré, no evento da 3ª Semana Acadêmica de História.

Por Jeosafá Fernandez Gonçalves*

Aula comunitária sobre literatura de periferia - Arquivo pessoal

Como há mais de trinta anos bato cabeça pela cidade, coletando depoimentos, realizando reportagens fotográficas, registrando histórias para escrever meus romances e poemas, quis ouvir dos estudantes o que eles consideravam "periferia" e que elementos caracterizariam, para eles, a realidade representada por essa palavra-conceito.

Num primeiro momento, a palavra foi associada a aspectos negativos da geografia da cidade: distância do centro, falta de saneamento básico, atendimento de saúde precário, problemas de moradia, transporte e segurança, limitadíssimas opções de lazer etc.

No entanto, quando combinamos elencar elementos positivos relacionados à periferia à qual nos referíamos, particularmente a Zona Leste, onde o curso de História da Faculdade se situa e onde os e as estudantes moram, uma contradição se estabeleceu: se havia aspectos positivos em quantidade, por que assumir uma postura depreciativa em relação a "nossa" condição periférica.

Nesse momento, fizemos uma reflexão sobre a dialética centro-periferia, e refletimos sobre as múltiplas dimensões dessa dialética. Periferias só existem em face de seus polos opostos, os centros: se há centros políticos, econômicos, ideológicos, sociais, culturais, científicos, há suas respectivas periferias.

Do ponto de vista do poder, sempre os centros se instalaram como polos de exploração de periferias, dividas e mergulhadas na pobreza, na penúria e na injustiça. O Ocidente é pródigo em exemplos dessa natureza.

O Império Romano expandiu-se até onde pode, promovendo guerras e submetendo povos mais fracos, postos à margem de seu esplendor, mas abastecendo-o de mão de obra escrava, riquezas minerais e alimentos. Quanto mais guerreassem entre si (o Império estimulava isso com a legenda "dividir para governar"), mais frágeis se tornavam essas periferias e, por conseguinte, mais eram exploradas a níveis humanamente insuportáveis.

Muitos pensam, tendo nos filmes de Hollywood a única referência, que a queda do Império Romano (no Ocidente, em 476 d. C; no Oriente em 1453) se deveu a uma batalha sangrenta com heróis da civilização sendo derrotados por vikings brutais e ignorantes.

Porém, a derrocada do mais longo Império da história foi menos glamorosa. No Ocidente, foram quase quinhentos anos de imigração de populações miseráveis para Roma – miséria promovida pela mesma Roma, que ao saquear as periferias do Império, não deixava outra alternativa aos povos vitimados a não ser buscar vida melhor onde diziam que ela havia.

Os impérios europeus que se erigiram a partir das Grandes Navegações a partir do século 16, trilharam o mesmo caminho de Roma. Portugueses, espanhóis, ingleses, franceses, alemães, belgas, holandeses, lançaram-se sobre outras partes do mundo submetendo-as pela força dos canhões e da escravidão. Para eles, não havia dúvidas sobre quem era o centro e quem era a periferia, quem tinha alma (e por isso estava autorizado a dominar) e quem estava desprovido dela (portanto, estava obrigado, por sua própria condição "sub-humana", a curvar-se e levar seu senhor nas costas). Africanos, chineses, indianos, povos ameríndios compreenderam bem cedo o peso da expressão "não civilizados", empregado por europeus para definir o papel desses povos em seu sistema colonial e neocolonial.

Porém, durou bem menos tempo para esses Impérios se desfazerem e, ao final do século 20, praticamente todos eles já tinham sido enviados de volta para casa pelas guerras e processos de independência o Oriente, na África e na América. Tanto quanto Roma, em menos tempo, esses centros, essas metrópoles, foram devoradas por suas periferias. E continuam a sê-lo.

As ondas de imigrantes que atravessam o Mediterrâneo rumo à Grécia e à Itália (muitos na verdade morrem na travessia, mais de 3500 no só no primeiro semestre deste ano), ou que agora buscam a pé os Bálcãs para atingir a Alemanha, são uma nova invasão bárbara, que seguramente devorará a Europa que hoje conhecemos.

As grandes capitais europeias já são hoje polos cosmopolitas, em que religiões as mais diversas, vindas das mais distantes periferias, se misturam. Com a destruição do Oriente Médio e da África, promovida por norte-americanos e europeus, não resta outra alternativa aos povos dessas regiões que tiveram seus parques industriais aniquilados, suas infraestruturas urbanas implodidas por seguidos bombardeios, sua área rural de plantio e pecuária arrasada por combates sangrentos, a não ser imigrar – e para onde? Para o centro econômico mais próspero, mesmo que ele fique a milhares de quilômetros de distância, mesmo que ele fique além do mar.

Esse processo se dá em escala macro, global, mas também se dá em escala micro, local. Hoje, os próprios centros econômicos, políticos, socais têm suas periferias internalizadas: suas próprias cracolândias, suas próprias faixas de gaza, suas próprias áreas de refugiados – e aqui não se trata de figura de linguagem: Londres, Paris, Berlin, Nova Iorque, São Paulo entre outras metrópoles do mundo, são destino de ondas de imigrantes e refugiados que, assim, trazem consigo sua identidade, sua cultura seus sonhos e frustrações.

Daí que assumir como estigma o termo-conceito "periferia" não faz sentido, pois, a rigor, todos hoje somos periferia. Os maiores líderes mundiais do século 20 conquistaram seu espaço a partir de sua voz descentrada: Mandela, na África; Mao Tsetung, na China; Gandhi, na Índia – e se é verdade que Luther King e Malcolm X falaram do centro de poder do mundo contemporâneo, os EUA, eles próprios representavam a periferia, a voz do gueto, posto à margem no interior do próprio sistema.

Se há um centro mais próximo do que foi o Império Romano ou inglês, este é hoje os EUA, que porém dormem o sono atormentado dos culpados, pois essa nova diáspora trágica, por mar e terra, rumo à Europa, a que assistimos pela TV e pela internet diariamente, é obra principalmente sua.

A literatura e a cultura dos países não europeus já foi taxada de periférica, incivilizada, fraca e cópia piorada dos "centros" de produção de capitalista – como se Pequim, Moscou, Tóquio, África e povos americanos pré-colombianos não tivessem produzido arquitetura monumental, cidades inteiras, pirâmides, castelos e aquíferos; ou não tivessem desenvolvido ciência e arte, agricultura e mitologia, astronomia e matemática, ciências curativas e religiões em quantidade e variedade estonteantes.

Em São Paulo, a chamada literatura periférica é diversa, abundante e rica. Há desde leitura de nossos poetas consagrados em saraus realizados em bares de quebrada, até produção abundante de autores que mapeiam a geografia local, com suas ruas tortuosas a terminarem em barrancos e escadões, com seus personagens a cambalearem entre a realidade violenta das chacinas e a fantasia de um baile funk – que pode terminar em pancadaria e enfrentamento com a polícia.

Essa chamada literatura periférica tem captado a temperatura explosiva de nossos bairros largados à própria sorte e à mercê da polícia encapuzada, mas também tem registrado o protesto, a melancolia, o sonho, o abandono, a esperança – em formas inusitadas, às vezes fechadas e enigmáticas como uma ostra, às vezes explícitas como um xingamento de cima de uma laje. Nela desfilam rostos serenos ou crispados; riso de galhofa e improviso jazz; desafio de hip hop e convite à participação.

Nisso, há quem veja certo tom de ameaça e trincar de dente. Aí, eu concordo. Até, porque, como disse Malcolm X: "dobradiça que não range, não leva graxa".