Argentina: a crise que não foi e a necessidade de resistir ao ajuste

As eleições presidenciais na Argentina aconteceram em um clima econômico não esperado por aqueles que se dedicam a oferecer prognósticos majoritariamente equivocados. A população votou sem a presença de uma crise econômica, como desejavam alguns e promoviam outros. A situação econômica enfrenta tensões (inflacionárias, cambiais, fiscais e do setor externo), mas não está submersa em uma crise que teria ajudado a somar apoio às forças políticas opostas.

Por Alfredo Zaiat*, no Página/12

Peso argentino - Divulgação

A principal aposta de que durante estes meses se estaria vivendo um descalabro econômico era do candidato Sergio Massa (Frente Renovadora), que reuniu um grupo de economistas de renome para mostrar que seria capaz de lidar com a crise que estes peritos antecipavam. Como esta previsão foi falida, mudou seu eixo de campanha e partiu para postular propostas regressivas e outras inexequíveis.

Como as variáveis chave da economia desafiaram novamente os prognósticos negativos de seus conselheiros, o candidato Mauricio Macri (Cambiemos) terminou respaldando medidas centrais do kirchnerismo, que anteriormente rechaçava, para seduzir um setor da sociedade beneficiado pela atual política econômica.

A economia crescendo a uma taxa de 3% ao ano, a indústria registrando uma leve alta depois de quase dois anos de queda, a taxa de inflação desacelerando e o desemprego em 6,6 % terminaram de convencer o candidato governista Daniel Scioli a reforçar seu kirchnerismo. A orientação da estratégia preconizada por seus economistas em algumas questões (tarifas, retenções, tipo de câmbio, abutres) não seria muito diferente da que impulsionou a equipe de Axel Kicillof, se continuasse à frente do Ministério da Economia.

Dissipando a fumaça da campanha eleitoral, o aspecto mais importante é entender por que nestes meses não eclodiu uma crise econômica quando concorriam várias forças, internas e externas, para que este evento traumático acontecesse. Localmente, esperava-se um agravamento da restrição externa (escassez de divisas) pela maior pressão no mercado de câmbio em um ano de eleição presidencial e com a perda de reservas pelo vencimento volumoso da última cota de amortização de capital mais juros [do bônus] Boden 2015. A decisão política de acordar o swap (intercâmbio de moedas) com a China para o equivalente a cerca de US$ 11 bilhões, e outras iniciativas para incentivar a poupança em pesos (subida das taxas de juros para depósitos a prazo), aliviou um pouco a frente cambial. Ou seja, houve medidas heterodoxas desafiando as propostas tradicionais dos economistas da city, o que permitiu transitar estes meses com o mercado de câmbio relativamente sob controle.

Desde meados do ano passado, o contexto internacional apresentou-se mais complicado, o que poderia ter levado a uma crise, como em outros momentos da história econômica: a queda dos preços das matérias-primas (1987-1989) sob o governo Alfonsín ou o efeito Tequila (1995) na administração de Carlos Ménem. Teria sido assim se a decisão política tivesse sido aplicar a resposta habitual da ortodoxia ante choques externos, que não é outra senão o ajuste. A frente externa era complexa pela extorsão dos fundos abutre, a queda da economia brasileira e o fraco comportamento do comércio internacional. A gestão do governo em matéria econômica, evitando o ajuste, pôde neutralizar o impacto negativo da frente externa. A expansão fiscal e monetária, somada ao impulso da demanda doméstica, teve como saldo uma economia com uma ligeira tendência positiva, que, comparada com o retrocesso que outros países da região estão enfrentando, adquire ainda mais relevância. Ou seja, o caminho da heterodoxia com iniciativas anticíclicas evitou que nestes meses se estivesse desenrolando uma economia em crise. Não foi por uma alquimia espiritual, foi fruto do manejo da economia com critérios distantes dos que repetem incansavelmente analistas e economistas do establishment.

Nesta tarefa de não admitir que se equivocaram no diagnóstico e no posterior prognóstico, e para minimizar a capacidade da atual tarefa da equipe econômica para evitar uma crise e, em particular, para manter com sinal positivo variáveis chave do bem-estar geral, agora postulam que esta estratégia só aprofundou desequilíbrios e que a bomba explodirá no próximo ano. Como é de se esperar a partir dessa opinião, propõem o ajuste. É o mesmo que têm repetido por anos sem sucesso e é o que postularam os homens de negócios no recente Colóquio [empresarial] IDEA, em mais uma prova de que os membros do establishment mudaram pouco ao longo dos anos em que ganharam muito dinheiro com uma economia heterodoxa. É um exercício interessante explorar as razões prováveis desse comportamento do mundo dos negócios, que aspira e financia o regresso a políticas econômicas de ajuste.

Uma possibilidade de avançar na tentativa de entender esse comportamento é que setores do empresariado apoiam políticas expansivas quando a crise põe em risco a sua taxa de lucro. Mas quando a economia atinge quase pleno emprego e, portanto, aumenta o poder de negociação dos trabalhadores que permite questionar essas margens de rentabilidade, eles querem ajuste econômico para que seu resultado (aumento do desemprego e queda da atividade) equilibre a relação de força na disputa sobre a distribuição de renda. É por isso que não é eficaz apelar para o quanto eles ganharam durante o kirchnerismo ou para por que, se eles foram tão bem nos últimos anos, rejeitam a intervenção do Estado na economia, promovendo o pleno emprego e a forte demanda doméstica. Para setores do empresariado, o muito que ganharam é passado e já o têm contabilizado; o que os preocupa é que, por este caminho, sua taxa de rentabilidade será disputada cada vez com maior intensidade. Então, estão convencidos de que apoiando as políticas de ajuste defendem seu pedaço do bolo da riqueza e ainda aspiram desse modo aumentá-lo. Isso pode ser certo para as grandes empresas e grupos concentrados; não é para o pequeno e médio produtor, industrial ou comerciante.

Outra interpretação é que grande parte dos membros do establishment são de ideologia de direita e, independentemente da análise material sobre a evolução de seu negócio, apoiam a estratégia econômica de candidatos que representam essa corrente política. O recebimento com fervor prestado a Mauricio Macri no Colóquio IDEA é uma prova dessa lealdade ideológica.

Uma razão pouco mencionada nas análises acerca da posição que o empresariado toma em relação à orientação econômica refere-se à quantidade extraordinária de capitais que os seus membros têm no exterior. Uma estimativa conservadora – dados do INDEC – a calcula em cerca de US$ 230 bilhões, e a realizada por pesquisadores locais e estrangeiros sobre o tema a elevam a quase US$ 400 bilhões. Esta magnitude da fuga de capitais foi constituindo a consciência e a conduta da maioria dos empresários, posto que uma crise causada por uma brusca desvalorização (medida que propõem) não os terminaria afetando em grande medida. Se bem o resultado seria uma queda da economia, impactando negativamente sua atividade (como vimos, o ajuste recessivo lhes permitiria disciplinar reivindicações dos trabalhadores), por outro lado, eles se beneficiariam com o efeito riqueza medido em moeda nacional pelo capital radicado no exterior. Então uma política de ajuste econômico não lhes inquieta porque, na realidade, com ativos em dólar ou bens no exterior, têm separado seu destino patrimonial do desenvolvimento nacional.

Por último, na tarefa de decifrar a inclinação apaixonada pelo ajuste dos homens de negócios, não se deve descartar o fator CCL: não se trata da liquidação para a fuga de capitais, mas se trata da Capacidade de Compreensão Limitada acerca da dinâmica econômica nacional e internacional.

Podem ser uma ou todas estas razões juntas, ordenadas de maior a menos relevância, mas do que não há dúvidas é de que o próximo governo terá de enfrentar um empresariado que, em sua maioria, prefere o ajuste. Frente a esta pressão, a gestão econômica durante o kirchnerismo é uma valiosa aprendizagem para não cair na armadilha Dilma: mergulhar a economia em uma crise aplicando um ajuste ortodoxo, que afeta o bem-estar geral para satisfazer os desejos do mundo financeiro e empresarial.