Urariano Mota: a fala de Graciliano Ramos para os escritores no PC

Hoje, quero fazer uma ligação entre o dia dos professores, que se deu em 15 de outubro, e Graciliano Ramos. Espero que a relação não seja forçada. E explico por quê.

Graciliano Ramos - Arquivo

Sempre me pareceu haver um vínculo profundo e necessário entre a arte de escrever e a educação, na medida em que a criação literária é uma alargadora de consciências, uma pedagogia de revelar, descobrir o mundo humano para todas as pessoas. Daí que os bons e ótimos escritores são também educadores. Mas de um modo diferente, sem didática ou grade curricular. Isto é, quem narra um romance, um conto, conta uma vida, com fatos selecionados e organizados, que terminam por ser uma lição inesquecível.

A outra razão de falar do mestre Graciliano Ramos é o seu lugar especial na literatura brasileira, porque ele é ao mesmo tempo um clássico e um escritor comunista. Um homem de honestidade radical, que viveu conflitos dentro do partido além das circunstâncias passageiras, porque estavam no cerne da estética literária e do pensamento socialista. Do livro Garranchos, que trouxe à luz textos inéditos dele, retiro os trechos a seguir:

“… A comissão procedeu ao balanço crítico e autocrítico das atividades da base e da de seus membros. E verificamos que, de um lado e de outro, o resultado é negativo. Nada realizamos de útil, nós, os escritores de ficção, dentro de nossa especialidade, desde que nos filiamos ao Partido; nada de útil realizou nossa base”.

Assim começa o discurso do escritor Graciliano Ramos à célula comunista Teodoro Dreiser, onde estava organizado, em 1946. Ele se referia às tarefas que a célula de escritores deveria executar naquele tempo: entender e explicar o que o camarada Prestes estava propondo na Constituinte, e disseminar as teses que vinham do Comitê Central, em artigos e conferências. Desse texto, ressalto o que considero mais significativo.

“É verdade que o Partido sabe que somos escritores e é essa a profissão que figura em nossas cadernetas de militantes. Assim, produzimos, de vez em quando, minguados artigos ou balbuciamos saudações e conferências – isto é, continuamos, apesar de tudo, fora de nossa especialidade, que é a de escrever contos e romances. Na maior parte das vezes, esses artigos não são publicados, o que nos confirma na nossa opinião sobre a péssima qualidade deles. Gastamos, com frequência, horas inteiras na elaboração custosa de frases sobre assuntos que nos são pedidos com pressa; deixamos de lado, para tanto, nossas histórias de ficção… apresentamos o trabalho executado; e dele nunca mais ouvimos falar, desconhecendo o destino que lhe deram. Naturalmente, o Partido não pode aproveitar trabalhos que não estejam à altura de suas exigências e é razoável que os rejeite. Nós, por nossa lado, apesar de nossos esforços, não temos prática dessas tarefas e as executamos de maneira deficiente, pois nossa literatura habitual é a de ficção….

Não somos, entretanto, contrários ao desempenho de quaisquer tarefas intelectuais, e, muito menos, ao de tarefas práticas. Gostaríamos, apenas, de que a execução destas e daquelas nos deixassem margem para a confecção de nossos contos e romances… Apenas desejamos resguardar um pouco nossas horas e de nossa solidão para gastá-lo em nossa literatura, em nossa incoercível necessidade de criar nossos personagens e nossa histórias – coisa que muitos de nós nunca mais conseguiram, desde que se filiaram ao Partido. O horário de trabalho dos demais militantes, operários, camponeses, funcionários públicos…é estritamente respeitado pelo Partido. Gostaríamos, nós também, de dispor de alguns momentos para nossa literatura. Mesmo as ‘duas horas pela manhã’ que um companheiro dirigente ofereceu a Jorge Amado seriam bem recebidas por alguns de nós, que têm a sua espera, na gaveta, um romance de que só falta alinhavar o último capítulo…”

Um esclarecimento: as 2 horas para o trabalho de Jorge Amado referidas, Graciliano Ramos esclareceu em discurso anterior à célula Teodoro Dreiser, com estas palavras: “A Jorge Amado, que lamentava não ter vagar para concluir um romance, alguém retrucou:
– Se você escrever com vontade duas horas pela manhã, em pouco tempo acaba a história.
O desconhecimento das responsabilidades que pesam sobre nós é pasmoso”.

Mas continuemos no segundo discurso de Graciliano Ramos à célula Teodoro Dreiser em 1946:

“Estamos certos de que, com a publicação de nossos livros, por pequeno que seja o seu valor, seremos mais úteis ao Partido do que quando debatemos assuntos mal compreendidos ou levantamos, junto à massa, reivindicações que não temos a capacidade de viver profundamente. Daríamos, ao menos, um desmentido àqueles que dizem que o Partido nos absorveu por completo e nos esterilizou…

Impediremos (a Comissão de ficcionistas na célula, que deveria receber obras e orientar novos escritores no Partido), certamente, que militantes comunistas caiam no grave erro do populismo, da grosseria, do idealismo vazio ou da demagogia. Ainda há poucos dias, um de nós foi abordado por um rapaz ainda jovem que, estendendo-lhe um livro de sua autoria, pediu-lhe a opinião, dizendo tratar-se de obra ‘verdadeiramente revolucionária e comunista’. O livrinho, entretanto, não passava de amontoado de obscenidades e imundice, expresso na mais hermética das gírias (e não gíria do povo, do trabalhador, do estudante, mas gíria da malandragem) e cuja única novidade consistia em se escrever com minúscula todos os nomes próprios – a começar pelo do autor, na capa – e em não se usar nenhuma pontuação. Os personagens do livro eram todos prostitutas, vagabundos e ladrões.
Não temos a menor dúvida de que uma boa e abundante produção literária dos militantes comunistas virá prestigiar e enriquecer o Partido. E embora essa afirmação possa fazer cair sobre nós, mais uma vez, a pecha – talvez merecida – de sectários, julgamos que é desta maneira que poderemos fazer o melhor trabalho de massas, sem sacrifício de nossas tendências e de nossa profissão…. Um livro publicado por nós, ou por um de nossos companheiros em que tivermos descoberto vocação literária, será de maior utilidade para o Partido do que as discussões filosóficas (teoria afastada da prática) em que nos perdemos… “

E concluía um dos maiores clássicos da literatura brasileira de todos os tempos:

“Esperamos que o Partido e a célula aceitem nossas sugestões com o mesmo espírito com que as apresentamos: com o desejo sincero de dar vida a um organismo de base, que tem constituído, até o presente momento, verdadeiro peso morto para o Partido”.

Em nota, Thiago Mio Salla, o organizador do livro Garranchos, informa: “Tal proposta de Graciliano teria sido imediatamente aprovada pelos integrantes da célula, mas Diógenes Arruda, informado de que a célula estava tomando decisões à revelia de seu comando, ordenou a sua dissolução”. Esse fim da célula foi sintomático, um sinal dos erros cometidos pelo Partido em 1946. A célula Teodoro Dreiser foi dissolvida, mas as palavras do discurso de Graciliano Ramos sobrevivem como um documento para a nossa contínua reflexão.

Quem tiver dúvida, vá ao volume Garranchos, e leia ou releia Memórias do Cárcere, uma das melhores lições do mestre Graciliano Ramos.