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A poesia de Donny Correia

Donny Correia além de poeta é cineasta e doutorando em Estética e História pela USP. Alguns de seus curdas foram exibidos na Mostra Internacional de São Paulo, entre eles Anatomy Of Decay, Braineraser e Totem.

Donny Correia - Arquivo pessoal

Este ano publicou o livro Zero nas Veias, em 2013 lançou Corpocárcere, em 2009, Balletmanco e em 2005 O eco do espelho. Donny também é intérprete do Centro Universitário Ibero-Americano e coordenador de programação da Casa Guilherme de Almeida.

O poeta enviou alguns de seus trabalhos recentes para a sessão Letras Vermelhas, do Portal Vermelho.

Leia na íntegra:

Falha de S. Paulo

Os olhos vascularizados
Leem infâmia
No papel-jornal

E o fígado metaboliza
A ânsia negra
Nos dias quentes

De janeiro a janeiro
O mesmo dissabor

De janeiro a janeiro
O mesmo amargo
Gosto da dignidade
Alheia desfeita
Pela razão auto proclamada

Quem ousasse dizer “não”
Que arcasse com a surra
E pagasse a bala da execução
Moral

Não existe o amor

Não existe o perdão
Na Aushwitz paulistana
Cada célula caminha
Com sua própria perna da verdade
E lhes é vedada razão absoluta

Com a qual todas elas
Irão corroer-se
Do câncer urbano

Luciana

Eu vou chorar lágrimas de crocodilo
João Penca

Minha língua irá contar lenta
e suculenta
cada vértebra tua, da primeira
ao cair das costas lisas e seguir
para o cume de você
onde os pelos eriçados pedem
e imploram o hálito do toque
mudo

nossas línguas dançarão
alheias à falácia desse mundo
na madrugada sem fim
somente nossa
e nosso mundo paralelo

E entre os fios de seus cabelos
Como teia em minhas mãos
Implorarei ao mundo oculto
Que não seja só um sonho

Dentro e lento sentiremos
Um ao outro por meses-a-fio
E contaremos as gotas do suor
Que salga nosso mundo
Longe do resto que não nos representa

Minha língua em seu tímpano
Sussurrando o dialeto
Secreto que criamos
Para nos fazer exclusivamente
uno

E arranharei, sedento, seus lados
Seus cantos, seus todos
Sem deixar passar cada quina
Do corpo imerso na lascívia

Nos entregamos como
Fesceninos convictos
Ao gozo como se o mundo
Inútil fosse, por nosso desejo,
Acabar

Que um dia acabe o mundo todo
E toda a troça da vida, enfim
Mas, sigamos em nossa dança
Horizontal
Febril
Demente e constante
Enquanto inundo teu umbigo
Para voltar à vida real
E sentir a ânsia
A taquicardia doente
Que me separa
Do próximo gozo
Nos cinco dias
No hiato que há
Entre o que morre lá fora
E o que vive
Somente por nós

I have a dream ou  O Normótico

sonho em ser humilhado em público
linchado na moral e desacreditado
xingado
por homens, mulheres, velhos e crianças

ser chacota de artistas, cineastas e poetas
ser galhofa da turma da escrita
desfilar na rua ao som da vaia
com faixas de frases acintosas ao meu nome

Ter a conta negativada e o empréstimo negado
Ser traído por parentes, mulheres e amigos
despejado para longe, debaixo de uma ponte

Ser cuspido por pedir esmolas que vão
comprar nosso crack de cada dia.

E então saberei, enfim, depois de tudo,
que não sou um alienígena
Saberei que tudo está comum
Que tudo segue igual
Que o que vai à volta é isso
E que sou, tão só, um normal

Íntimo da morte

Quieto e recolhido
No escuro dos olhos contidos,
Sorvo em goles curtos
O solfejo de notas plenas
Que o vento sopra no vão da noite estática

Busco, num inquieto projeto
Urdir o manto da calada
Em fonemas soltos constituintes
Da voz de algo que não se realiza

Súbito, ouço sussurrar no tímpano
Uma lamúria lânguida e húmida
A língua dos cravos de uma urna funéria
Flertando com meus hormônios do sábado
Gotejado e ermo

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Ela murmurou:
– Vinde a mim, escriba
Antes que a letra se faça fato
Olha teu redor com zelo
Nada há que esboce sentido

Se nada há, então,
Hora faz-se logo por partir
Mas vai contestar meu clamor
E há de urgir o silêncio da trombeta

Não reconheci minha hora
E tencionei calar a morte

Ela retrucou:
“Foi-se”

Era tarde, eu bem sabia
A morte lambia meu lóbulo
Sorria
E pairava de lado a lado
Pendendo o cabo de sua
Foice

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A pele seca e fria da face
Apelava aos meus desejos cancros
A cópula perfeita da vida vaga
Com a verme in-vida da sexy morta

Amparado pelos ossos mortos
Essa morte seduzia e se despia
Olhei em torno, entumecido
E nos olhos dela li:
“Foi-se”

E de toda a pele ressequida
E berne
Senti o frio e o fogo
De sua
Foice

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Algum amante sonhara em ser
O amante perfeito da dama do fim?
Algum amante são calculara
A cópula com sua morte amante?
A mesma que fremia orgástica
Nas estocadas do falo
Clamando:
“Foi-se”

E rajava nas costas do outro
Com unhas cadáveres a marca certa
E larga tal qual a verga de sua
Foice?

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A barca da morte singrando
Este lago de lodo, a vida
Roçando os pelos na face
do morto, ainda que em vida
Esta cópula pura inundada de gânglios
Sua voz rouca de câncer urrando:
“Foi-se”

E a morte roça, esguia e seca
Meu supremo mote com sua
Foice

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Esta carne processada e posta
Na lata de um ser que é e não
O é, que deseja e zera-
Se
E deita-se com a derradeira visita
Dizem que jaz:
“Foi-se”

A mariposa caveira leva em seu torso
A metamorfose /vida/ junto da morte
Com asas translúcidas que guinam no ar
E lamentam o som da
Foice

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Sou eu, esta megera,
Como dos Anjos o dissera
Que limpo a Terra desde de
1 de janeiro e não me importa
o mundo inteiro
posto que o mundo inteiro
nunca basta

E sigo tolhendo o sonho e o plano
E bradando:
“Foi-se”
Quando a febre se abate no corpo
E o sangue contaminado
Maldiz o segmento da vida
E beija o gume de sua
Foice

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Esbeltabsoluto
Coice
Que me sussurra sua
Foice
Me delita sua noite
E estupenda, solene, absoluta grita e brada
A luta obliterada e morta, clama:
“Foi-se”

era o passado?
Foice

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Olhei o espectro do pai morto
Com laivos de censura
Humilhando a vida terrena
E gabando-se da
Foice
No fim da linha

Quando a morte sorriu de novo
Montada a cavalo roído e carcomido
Por sua própria
“Foi-se”

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E para zerar em paz
Quando nada no sentido há
E nunca lá se chega pleno
E nevermore se faz de brado
À vida toda asfixiasma
Tonta e saco de vacilos
Vida inútil que nada o é
Passa o fim essa
Foice

“Foi-se ?”