20 anos da Boitempo, os desafios de fomentar o pensamento crítico

Boitempo, título de um poema de Carlos Drummond de Andrade, inspirou o nome da editora progressista fundada em 1995 por Ivana Jinkings. Inicialmente foi o nome da livraria Boitempo, em Belém (PA), criada pelo comunista Raimundo Jinkings, pai de Ivana.

Por José Carlos Ruy e Mariana Serafini

O Capital - Boitempo - Ramiro Furquim

No Brasil já existiu uma série de editoras progressistas que deixaram uma marca profunda na cultura brasileira. Foram editores e editoras ilustres, entre os quais Monteiro Lobato e a Cia Editora Nacional, Caio Prado Jr e a Editora Brasiliense, Ênio Silveira e a Editora Civilização Brasileira. Editoras independentes e progressistas, sem ligação direta com nenhum partido, como foi o caso da Vitória, do Partido Comunista do Brasil e, hoje, da Anita Garibaldi.

A Boitempo faz parte daquela linha de editoras independentes e progressistas. Ivana Jinkings fala aqui, ao Vermelho, dos desafios e das conquistas destes 20 anos de atividade.

Leia a entrevista na íntegra:

Portal Vermelho: 20 anos de Boitempo – é um fato notável uma editora progressista sobreviver durante tanto tempo. Quais são os desafios de ser uma editora de esquerda no Brasil?

Ivana Jinkings: Pois é, vinte anos, e parece que foi ontem!

Não é fácil, claro, os obstáculos e as resistências foram e são inúmeros, mas temos seguido nosso caminho em linha reta, sem atalhos. Desde o início, a principal marca da Boitempo foi fazer livros de qualidade, o que a diferenciou de outras editoras desse segmento. Isso se deve não só a uma curadoria afiada de conteúdo, mas também a um grande zelo editorial, que se reflete em edições esteticamente bem cuidadas, com rara qualidade gráfica, enriquecidas com notas explicativas, índices onomásticos e textos complementares.

Além dos eventos que já se tornaram marca, a Boitempo traduz e edita textos que são disponibilizados gratuitamente no blog, realiza promoções periódicas, sorteios e vendas diretas em eventos acadêmicos com descontos de até 50% sobre o preço de capa.


Ivana Jinkings, editora e fundadora da Boitempo

Com essas medidas, esperamos formar novos leitores, aproximá-los dos autores e criar assim uma espécie de círculo virtuoso que se alimenta em todas as vias. A Boitempo, desde a sua criação, sempre lutou pela democratização do conhecimento, inclusive daquele viabilizado por ela mesma. Discutir a disponibilização de conteúdo está na ordem do dia e esperamos que autores, leitores e editores possam cada vez mais avançar nesse diálogo.

Quais foram as conquistas obtidas nessas duas décadas?

Muitas. Temos um público bastante fiel nas universidades (graduação e pós) e nos meios mais “intelectualizados” da esquerda. Havia antes uma cultura de que livros de esquerda deveriam ser publicados sem muito esmero e a Boitempo imprimiu uma face nova às suas edições. Ao mesmo tempo, lutamos para que a qualidade não eleve por demais os preços dos nossos títulos, pois queremos que sejam mais e mais lidos. Isso a despeito da enorme concentração num mercado em que as editoras estrangeiras e os grandes grupos vêm engolindo os editores independentes. Mas a maior conquista de todas foi, a meu ver, a formação de uma equipe coesa, aguerrida, envolvida e altamente capaz. A produção na editora é coletiva, as pessoas se sentem responsáveis pelo que fazem e isso é com certeza a força maior do nosso trabalho.

Como foi o processo de traduzir, a partir dos originais, a obra completa de Marx e Engels? De quem foi a ideia? Por que? Quais foram as dificuldades? E a aceitação, como é?

A coleção começou com a publicação de uma edição comemorativa do Manifesto Comunista, em 1998, quando se completava 150 anos da primeira edição dessa que é a obra mais lida de Marx e Engels. Nossa tradução foi organizada e traz um ensaio introdutório do historiador Osvaldo Coggiola, além de todos os prefácios dos autores alemães e ensaios de Jean Jaurès, Antonio Labriola, Leon Trotski, Harold Laski, Lucien Martin e James Petras. A edição foi muito bem recebida e isso nos encorajou a seguir adiante; mas foi com a publicação da Sagrada família, em 2001, que a coleção foi oficialmente inaugurada. Hoje os livros de Marx e Engels figuram entre os mais vendidos de nosso catálogo.

Além do Marx e do Engels, a Boitempo tem um conjunto de outros autores marxistas, como por exemplo o Mészáros. A ocupação deste nicho “marxista” do mercado foi planejada?

Mais ou menos. A editora começou com planos de lançar obras raras, nunca publicadas ou há muito esgotadas. Mas aos poucos os livros mais políticos foram ganhando mais e mais espaço na nossa programação e nas nossas mentes e corações. Aí passamos a investir nesse tipo de obra, criamos público-leitor para alguns dos mais importantes pensadores e escritores contemporâneos, nacionais e internacionais. Muitos deles, publicados por outras editoras, inclusive as grandes, com relativo fracasso de vendas, passaram a ter maior relevância no Brasil após serem publicados pela Boitempo, caso do britânico David Harvey, do cubano Leonardo Padura, do esloveno Slavoj Zizek, do húngaro István Mészáros, e dos brasileiros Chico de Oliveira, Maria Rita Kehl, Emir Sader e Ricardo Antunes, entre muitos outros. Autores de renome como Mészáros, Padura e Harvey, em reconhecimento ao trabalho da editora, fazem questão de ser publicados exclusivamente por ela no Brasil. Hoje em dia eles reúnem milhares de pessoas em eventos (via de regra gratuitos!) e é aqui que encontram audiência quantitativamente incomparável à que têm em qualquer outro lugar do mundo. Temos trazido com frequência autores como os citados acima e também Domenico Losurdo, Michael Lowy, Perry Anderson, entre tantos outros.

Nós percebemos que a comunicação com o público é essencial no processo de formação do leitor e investimos bastante em eventos, imprensa, redes sociais (a Boitempo é a editora brasileira com o maior número de inscritos em canal próprio de vídeos no YouTube). Isso tudo nos protege, de certa forma, de oscilações e dos modismos e livros de ocasião.

Quando a Boitempo começou a traduzir, pela primeira vez importantes obras de Marx e Engels, o marxismo era dado como "morto" por muitos intelectuais. Como foi recebida a proposta da editora de "popularizar" o marxismo, com edições acessíveis do Manifesto e os projetos que desenvolvem de formação?

Em princípio com muita desconfiança. Amigos me aconselhavam a diversificar mais, diziam que o marxismo estava ultrapassado e já não havia espaço para obras assim no mercado editorial brasileiro.

O cenário, naquele momento, já não era dos mais otimistas para uma editora independente. O mercado editorial já estava, embora não tanto quanto agora, dominado pelos grandes grupos. Mas aos poucos a Boitempo foi se firmando como editora de livros de ciências humanas, com um pé na sociologia, na história, na filosofia, na economia, na política e na cultura, sempre privilegiando o pensamento crítico. A editora apostou na formação de um catálogo de fundo consistente, um movimento contrário ao da maioria das editoras, que, por estarem sempre em busca de um novo best-seller, acabam relegando seu próprio catálogo ao esquecimento.

Nesses vinte anos publicamos mais de 400 livros, sem abrir mão da independência e do apuro editorial. A Boitempo conquistou solidez justamente ao dominar as publicações do que se convencionou chamar de “pensamento crítico”. Tornou-se respeitada no mundo editorial – no Brasil e no exterior –, na academia e entre o público leitor. Com uma equipe de 20 pessoas, publicando em média 30 novos títulos por ano, ocupamos um espaço expressivo hoje em dia, tanto no mercado formal como no contato direto com leitores.

No atual momento político no país, como é ser uma editora de esquerda, quando há uma movimentação golpista tão intensa? Como a produção intelectual e literária apresentada pela editora dialoga com este período?

Eu diria que ser uma editora de esquerda requer um tanto de coragem e ousadia. São tempos sombrios, sem dúvida. Uma de nossas armas tem sido a divulgação dos nossos títulos, que faz com que pessoas do país inteiro os procurem nas livrarias, forçando as redes locais a terem os livros expostos. Temos buscado alternativas, resistido, na contracorrente. Acreditamos também que o formato digital pode facilitar o acesso às obras, sobretudo devido às dificuldades de distribuição enfrentadas num país de dimensões continentais. O formato permite uma diminuição significativa no preço de capa. A Boitempo reduziu sua margem sobre o exemplar digital e se dispôs a praticar preços tão acessíveis quanto os do mercado internacional. Com essa nova política de preços de ebooks, nossos títulos digitais passaram a custar até 65% mais barato do que a versão impressa, uma redução acima da média brasileira em termos relativos e absolutos. A editora também pratica o nivelamento dos preços dos ebooks a uma faixa fixa que vai dos R$ 5,00 aos R$ 45,00, muitas vezes equivalentes a uma cópia impressa mal feita, e com uma qualidade muito superior à das cópias escaneadas, algo que só os originais possuem.

Para enfrentar esse cenário contamos também, com a parceria generosa dos nossos autores, que nos acompanham nos eventos, se dispõem muitas vezes a ir a locais longínquos para debater as questões que nos afligem a todos. Sem essa confiança e parceria não poderíamos ter aberto canais de diálogo direto em todo o país.

A força da mulher na editora – como se deu este processo de ter uma equipe formada, em grande parte por mulheres?

Sabe que só me dei conta disso outro dia, quando tiramos uma foto para o catálogo de vinte anos da editora? É muito bacana isso, gosto muito de trabalhar com mulheres, são em geral mais interessantes e mais interessadas (embora nossa equipe masculina seja de primeiríssima!).

Novos projetos – o que a editora tem para apresentar para o próximo período? E a Boitatá e outros projetos, são para logo?

Boitatá estreia neste fim de ano, com dois títulos, que serão seguidos por uma leva de outros, todos levando em conta a inteligência de seus pequenos leitores, procurado promover o aprendizado, o questionamento e a construção de um senso de justiça através dos livros.

Além desses infantis, que vínhamos acalentando há algum tempo, neste ano saem ainda um livro de Rafael Correa, presidente do Equador, um romance novo de China Miéville, Estação Perdido, um livro de Raquel Rolnik, Reboquismo e dialética, de Lukács, entre outros. E temos projetos importantes pra 2016: a publicação de um Dicionário Gramsciano, o Livro 3 de O Capital, uma biografia de Caio Prado Jr., por Luiz Bernardo Pericás, obras de Gyorg Lukács, Slavoj Zizek, Giorgio Agamben, Michael Lowy, István Mészáros, Domenico Losurdo, Leonardo Padura, David Harvey e muitos outros livros importantes.