Entrevista: Cacá Diegues, criador de mundos no cinema

Aos 75 anos e com um currículo como o de poucos, o cineasta Cacá Diegues fala sobre passado, futuro, paixões, cinema e sobre morrer no set de um de seus filmes. Em entrevista concedida ao jornal O Povo, o Diegues revela um olhar apaixonado para o cinema, arte pela qual respirou nos últimos 50 anos.

Cacá Diegues, criador de mundos no cinema

“Eu nunca vou parar de fazer (cinema), vou morrer em um set”. A declaração não vem do ego inflamável de um Glauber Rocha, mas da discreta paixão do contemporâneo e amigo Carlos Diegues – ou Cacá, como prefere ser chamado. Aos 75 anos, o cineasta de obras-primas como Bye Bye Brasil (1979) e Chuvas de Verão (1978) não esconde que a maturidade trouxe mais dúvidas do que certezas. O que não se desprende dele, por outro lado, é a paixão por cinema do menino alagoano que, na infância, ignorou a advertência da tia e tocou na telona. O risco era ficar preso para sempre no filme. Ou melhor, era uma oportunidade. Leia a seguir a íntegra da entrevista:

Eu queria começar perguntando sobre “O Grande Circo Místico”, um projeto antigo do senhor, mas que acabou se estendendo por muitos anos. O que ocasionou essa demora para o início da filmagem?

Olha, “O Grande Circo Místico” é um velho projeto, um projeto que cultivo há muitos anos. A primeira grande dificuldade foi fazer um roteiro que correspondesse à qualidade do poema extraordinário do Jorge de Lima. Eu tive muita dificuldade para fazer essa adaptação, trabalhando com o roteirista George Moura, que foi muito importante nesse trabalho… Mas a gente demorou muito tempo, custei bastante para ficar satisfeito com esse roteiro.

E aí veio toda a dificuldade do filme em si: é uma história que se passa em um século com uma família de circo. Filmar circo já é difícil em si, cinco épocas diferentes (ainda mais). Então não é só que necessidade de dinheiro, de certo orçamento, mas se exigia também um trabalho de preparação. Fotografia, figurino, etc. Você sabe que eu só fiz o filme porque descobri que dava para fazer em Portugal! Primeiro, eu descobri que circo brasileiro não tem bicho – é proibido ter bicho em circo brasileiro (O Projeto de Lei 7291/06, do senador Álvaro Dias, propõe tal proibição e segue em apreciação do plenário). E eu não tinha como fazer um circo de 1910, 1930, 1940, sem bicho, né? Fui para Portugal por conta disso.

A partir da minha ida para Portugal, eu descobri duas coisas importantes. A primeira é que o Rio de Janeiro e o Brasil do século XX em geral tá tudo lá (em Portugal), com as casas, palácios e coisa e tal. E segundo, que eu descobri que era muito mais barato fazer (filme) em Portugal. Se eu fizesse essa mesma produção no Brasil, custaria o dobro. Eu trabalhei com uma equipe de 50, 60 pessoas, e aqui não se trabalha com menos de 100, 120, coisa e tal. Tá meio absurdo, isso. Então, eu resolvi fazer em Portugal.

O filme já está em pós-produção?
Eu terminei agora (junho) de filmar e agora estou montando. O filme vai ter uma finalização longa, porque teve muito efeito especial, teve muita música, muita coisa assim que vai obrigar a ter uma finalização muito longa. Ele deve ser lançado em 2016.

Falando-se dessa atmosfera circense, acaba sendo inevitável lembrar de “Bye Bye Brasil” (1980). E tanto nesse filme como em outras produções o senhor trabalhou com um dos maiores atores cearenses, o José Wilker. Como era a relação de vocês, como foram esses vários trabalhos juntos?

José Wilker foi um grande amigo meu que, na verdade, conheci no set de filmagens. Quando fui fazer o filme “Xica da Silva” (1976), eu tinha contratado um ator que de última hora não pode mais ir (para as filmagens). Eu já estava filmando em Diamantina (MG) e me ocorreu o Wilker, que eu não conhecia pessoalmente. Liguei para ele e dois dias depois ele estava lá fazendo o filme maravilhosamente bem. A gente ficou muito amigo, até porque o Wilker entendia muito de cinema, tinha filmado com outros amigos meus. Tanto é que a gente fez cinco filmes juntos. Inclusive, tive a sorte de produzir o último filme que ele dirigiu (“Giovanni Improtta”/ 2013).

Infelizmente o único, né?

 Infelizmente o único.

Eu falei especificamente de “Bye Bye Brasil” porque existem algumas “coincidências” com “O Grande Circo Místico”. Os dois tratam de circo; no novo trabalho o protagonista é o Jesuíta Barbosa, que não nasceu aqui, mas é quase cearense como o Wilker. Existem muitos paralelos entre as duas obras?

Eu acho que sim. De certa forma, todos os meus filmes saem dessa atmosfera popular. No caso do “Bye Bye Brasil” não era bem um circo, (era) mais um grupo mambembe e familiar, como ainda existem muitos por aí. “O Grande Circo místico” é um circo grande, com animais e tal.

É até difícil de explicar porque, apesar do nome, o filme não é sobre circo, mas sobre personagens que moram no circo. Moram no circo, entendeu? Então, ali é o ambiente onde eles vivem.

E como o senhor chegou ao nome do Jesuíta, que vem ganhando muito espaço no cinema e na TV atualmente?

O Jesuíta é um grande ator (taxativo). Ele tem um olhar que é uma coisa! Outro dia eu dei uma olhada em trailers, em artes que a gente fez do filme e fiquei encantado também. Eu fiz uma série de testes e não houve nenhuma dúvida de que era ele quem devia fazer (o papel). Ele é extraordinário, acho que dessa geração de atores novos, ele é o melhor. E ele é muito inteligente, não é só um trabalho de preparação, ele tem noção do que está fa

zendo. É nisso ele se parece com o Wilker, de certo modo.

Além da homenagem de amanhã (24 de junho), o senhor fez uma participação especial em um dos filmes do Cine Ceará, “Cordilheiras no Mar”, do Geneton Moraes Neto, sobre a veia política do Glauber Rocha. Mesmo hoje, 34 anos após sua morte, o Glauber é uma figura muito presentes em discussões sobre cinema, sobre resistência. Como você, enquanto amigo e contemporâneo, vê a forma como ele é retratado hoje?

Olha, eu vou dizer uma coisa: o Glauber já era difícil de ser decifrado quando era vivo. Agora que está morto, nem pode responder a essa pergunta (rindo). Eu tive muita admiração por ele, era um irmão que conheci quando tinha 17 anos. E fui do convívio dele até perto de ele morrer. Ele era, sem sombra de dúvidas, a pessoa mais interessante que conheci na minha vida. Mas mesmo eu, que era íntimo e tinha esse nível de fraternidade com ele, mesmo eu, não sei dizer quem ele era. Glauber era um vulcão de ideias que emergia na vida de uma forma muito forte.

Já me fizeram essa pergunta: “o que você acha que o Glauber estaria dizendo hoje se estivesse vivo?”. Ora, eu não sei! E tenho certeza de que ninguém sabe. Agora, ele certamente estaria dizendo algo que ninguém mais estaria dizendo. Ele sempre foi assim, foi um homem que inaugurou momentos na cultura brasileira antes de qualquer outra pessoa.

Hoje, a gente vê no Brasil surgir uma massa que, entre outras coisas, pede o retorno da ditadura. Como você, alguém que fez parte da resistência e teve de sair do Brasil, vê esse ressurgimento de algumas forças conservadoras nos discursos e pedidos de algumas pessoas?

(Após alguns segundos de silêncio) Pessoalmente, eu me sinto aterrorizado, porque foi contra isso que eu lutei a vida toda. Mas, ao mesmo tempo, isso me dá a certeza de que o Brasil é, de fato, uma democracia. As pessoas fazem o que quiserem e não são nem censuradas, nem maltratadas – nem de um de lado, nem do outro. 

Eu acho que hoje, o Brasil vive uma onda conservadora. Um conservadorismo fundamentalista, de certa forma. Isso é muito grave, porque se tem visto muitas forças que eram da esquerda indo para a direita. E a esquerda você nem sabe mais quem é. A esquerda está indo para o centro.

Quando eu ouço alguém pedir ditadura militar, me dá vontade de chorar. Sentar no meio-fio e chorar. Depois de tudo que a gente fez em prol da liberdade e alguém pede isso! Se não fosse a liberdade, ela não estaria dizendo aquilo – não poderia dizer. Então, é ao mesmo tempo aterrorizante, pessoalmente para mim, mas é também prova de que vivemos numa democracia.

Continuando em fatos políticos, um dos dizeres mais famosos da sua vida foi a criação da expressão “patrulhas ideológicas”. Esse termo tem sido revisitado nas discussões sobre o “politicamente correto” e o humor. Como é, para o senhor, acompanhar esse viés diferente em que abordam o termo que o senhor cunhou?

A questão da “patrulha ideológica” surgiu de uma questão histórica específica daquele momento. Era época do início da reabertura política, com o fim da ditadura militar chegando, e havia muita gente que queria aprisionar o pensamento ideológico brasileiro em formas que não cabiam mais. Contra o fascismo da ditadura está todo mundo sempre unido. Era o que acontecia na época. Você estava no mesmo bolo que eu, não importava se você era de direita ou de esquerda: você era contra a ditadura.

Quando a ditadura começou a acabar, você começou a dizer o que pensa – e não era necessariamente o que o outro também pensava. Aquela unidade contra a ditadura se desfaz. Foi nesse momento que inventei essa brincadeira – eu não sou um cientista político, aquilo foi uma brincadeira. Em uma entrevista eu mencionei esse patrulhamento que, em um momento de liberdade queria impedir você de pensar da maneira que queria pensar.

Hoje é diferente. Hoje isso não existe mais, a ideia libertária agora é muito maior (que o patrulhamento). Mas, nesse meio (artístico), esse negócio de “politicamente correto” é uma das maiores calamidades que aconteceram. Porque “politicamente correto” é você mentir, é não dizer o que pensa. Você falou em humorismo e isso acaba com o humor. Qual é a graça de ver se você não pode rir, não pode fazer uma piada de vez em quando? Eu acho que é difícil hoje usar a expressão patrulha ideológica, não é justo, mas, ao mesmo tempo, é importante saber que os preconceitos ideológicos deviam acabar.

Mudando um pouco o foco, o senhor nasceu em Maceió (AL), mas se mudou muito cedo, aos seis anos, para o Rio de Janeiro (RJ). Ainda assim, o senhor consegue ver a influência dessa carga nordestina na sua vida e produção artística?

É impossível não ter influenciado minha carreira (taxativo). Primeiro que eu me mudei junto de meus pais aos seis anos de idade, mas todo verão a gente voltava para Mac

eió. Minha mãe odiava o Rio de Janeiro. A gente passava o natal no Rio, ia para Maceió e só voltava depois do Carnaval. Então, minha infância toda até o começo da adolescência, o lugar da festa, o lugar da diversão, o lugar da alegria era Maceió. O Rio era onde eu ficava preso em casa, já que minha mãe detestava o Rio de Janeiro, tinha medo, não queria sair de casa e tal.

Então, essa formação toda que eu tive foi de nordestino. E depois, tinha meu pai, pô, que era antropólogo, escritor e me influenciou muito com tudo que eu li. Minha casa era como uma embaixada no Rio de Janeiro. Podia não estar em Maceió, mas só se falava de assuntos alagoanos, com amigos alagoanos. Eu nunca deixei de ser nordestino.

Hoje o senhor tem mais de 50 anos de carreira cinematográfica – algo de que muitos poucos cineastas podem se gabar. Como é filmar hoje em comparação a 50 anos atrás? O que de mais mudou?

É muito diferente! É até difícil fazer essa comparação, já que é tudo tão diferente. Quando eu comecei a fazer filmes, o Brasil fazia três, quatro, cinco, seis por anos. Não mais que isso, né? Não tinha escola (na área), você só aprendia cinema fazendo cinema. Era uma aventura. Mas, ao mesmo tempo, era bem mais fácil. Como ninguém fazia, era tudo barato. As primeiras equipes com que trabalhei, em “Ganga Zumba” (1962) e “A Grande Cidade” (1966) eram de seis, sete, dez pessoas no máximo. Hoje, você não faz um filme com menos de 60, 70, 100 pessoas, dependendo do filme.

Por outro lado, não existiam essas coisas que hoje são muito mais, digamos, preparadas para o cinema. Técnicas cinematográficas que hoje a gente domina mais; estruturas cinematográficas que a gente domina mais; a própria mão-de-obra, que agora passa pelas escolas. Como eu disse, na época a gente aprendia cinema vendo filme, lendo livro. Hoje não. Hoje você passa quatro, cinco anos numa escola e sai sabendo fazer. Aprendem tecnicamente, dominam a linguagem. Se você tem talento é outra história, não depende da escola, mas saber fazer, você sabe. Qualquer primeiro filme de um jovem cineasta brasileiro hoje é muito mais bem feito – pode até não ser melhor artisticamente -, mas é muito mais bem feito do que qualquer filme nosso.

Mas hoje, é mais fácil ou mais difícil fazer um filme?

É complicado escolher um dos dois, porque hoje é tão difícil juntar todo o dinheiro necessário para fazer um filme. Coisa que então não era. Meu primeiro filme, “Ganga Zumba”, em 1963, eu me lembro que tinha na equipe oito pessoas e todos eram associados do filme. Eu não gastava com salário. Só aluguel da câmera, essas coisas, sim. Elas recebiam pela participação – mas eram oito, hoje são cento e tantas. São dificuldades muito diferentes.

Em uma entrevista que o senhor deu no início do ano para o Jô Soares em que falou da infância, a primeira ida ao cinema e que sua tia tinha dito para não tocar na tela, senão ficava preso – e o senhor foi lá e tocou. Em tanto tempo, houve algum momento em que essa paixão esmoreceu?

Não. Eu tenho 75 anos de idade e JAMAIS passou pela minha cabeça me aposentar. Vão ter que me aguentar por um tempo ainda. Sei lá, eu não escolhi isso porque um dia pensei “ah, vou fazer cinema”. Eu decidi fazer isso porque era a razão da minha vida, já. Se eu deixar de fazer cinema, minha vida perde a razão de ser. Então, para mim, é muito difícil deixar. Eu nunca vou parar de fazer (cinema), vou morrer em um set.

Mas, para o senhor, existe um momento de prazer especial ao se fazer um filme?

Eu não gosto nem de falar nisso, porque é capaz de todo mundo decidir fazer cinema (risos). Mas vou falar a verdade. Quando você está fazendo um filme, você está criando um mundo alternativo. Você pode tirar desse mundo tudo que você não gosta na vida real; ou, ao mesmo tempo, condenar o que você não gosta na vida nesse filme. Você pode se travestir de Deus. Recriar esse mundo segundo sua vontade, seus desejos e, acima de tudo, segundo seus sentimentos.

Eu não acho que a gente faz isso por dinheiro, mas por amor ao cinema. Se não fosse o amor ao cinema, você faria um, dois filmes e caía fora. Até porque é muito difícil fazer cinema – não só aqui, mas em qualquer lugar do mundo.

Aí, depois que você está fazendo a gente aproveita para se comprometer com questões éticas, políticas, morais. E é esse o momento de recriação do mundo – e não existe nada mais bonito do que isso.

E como foi a experiência de escrever a sua autobiografia, “Vida de Cinema”? Foram muitos anos dedicados ao projeto…

Foram, foram… É engraçado. Demorou seis anos, mas não foi desagradável, não foi um sofrimento. Na verdade, foi a editora que me encomendou aquele livro. E eu acabei achando que era oportuno. Chega uma idade em que você começa a contar história para os seus netos e eu achei que era a hora.

Mas um livro como esse você não pode simplesmente… Ele não é só uma autobiografia. Ele é um documento da minha geração, de tudo que eu vivi e do que se passou no cinema brasileiro nesses anos. Então, isso exigiu de mim certo cuidado toda vez que eu ia falar de outra pessoa. Eu tenho um arquivo muito bom, então, sempre ia muito a ele e também a outros arquivos. Mas não parei de fazer cinema, afinal, é disso que eu vivo! Muitas vezes em um mês eu escrevia 10, 20, 30 páginas e tinha que parar seis meses para gravar um filme.

Eu não sei (fazer) esse negócio de parar e escrever num hotel, no avião, um pouquinho aqui, um pouquinho ali. Isso eu não sei fazer. Ou eu escrevo muito, ou eu não escrevo. E eu parei muito durante esses seis anos.

Hoje se fala muito, tanto no contexto do audiovisual norte-americano quanto no nacional, em como a produção para TV está cada vez mais madura, chegando até a superar o cinema artisticamente. Ainda na década de 1990, o senhor realizou o “Veja esta canção” (TV Cultura), considerado um marco dessa relação entre TV e cinema. Como o senhor vê essas proximidades e distanciamentos entre as duas mídias.

Embora tenham se aproximado mais, as duas mídias ainda estão muito distantes e eu acho isso um pecado, um erro grave (enfático). Não existe cinematografia no mundo que não se apoie na relação com a televisão. Mesmo no cinema americano. Os estúdios têm parcerias com empresas americanas que têm canais de televisão.

A relação do cinema com a televisão é algo impossível de ser evitado, porque faz parte de como o meio funciona. No Brasil, a gente ainda está longe do ideal nessa questão, apesar de que demos alguns passos com a Globo Filmes, mas ainda é um namorico, não um casamento permanente. A gente tem que transformar em casamento. Sem isso, eu acho que a cinematografia brasileira não vai se consolidar nunca.

E quanto ao público? Até hoje se ouve demais a reprodução de um discurso bastante preconceituoso sobre o cinema nacional. Como o senhor vê a relação da audiência com o cinema brasileiro?

A primeira coisa que você tem que ver é qual é o público brasileiro que vai ao cinema. Hoje, no Brasil inteiro, os cinemas estão quase todo circunscritos aos shoppings. Quem entra em shopping não é o público brasileiro. O povo brasileiro vai à feira, ao supermercado.

Então, o cinema no Brasil ficou condenado ao público de classe média para cima. Esse não é um público interessado em Brasil, é um público interessado em Miami (EUA), Paris (França), Nova York (EUA). É difícil fazer um cinema de elogio ao Brasil, ou nem de elogio, mas pelo menos consistente com a realidade brasileira. As pessoas não querem ver isso; querem ver (os atores) Brad Pitt, querem ver Nicole Kidman. Não querem ver nossos atores mulatos, as meninas morenas (em tom de reprovação). Nesse período em que a inflação ficou estacionada e o dinheiro brasileiro se valorizou, em que uma nova classe social surgiu – uma classe média baixa, mas com poder de compra –, o cinema brasileiro foi muito visto. Agora, está deixando de ser visto novamente.

Mesmo que não seja em elogio, o filme brasileiro tem uma cara de Brasil. Não tem jeito. Você não está em Miami, você está em Fortaleza. Vai transparecer Brasil e isso não é uma coisa do gosto da classe média. É um problema que temos que enfrentar já. E eu não sei como se resolve, só sei que é problema grave. Os preconceitos contra o cinema brasileiro até diminuíram. Quando comecei, tinha sala que dizia que o português não servia para cinema, recusavam o filme porque diziam que português não era uma língua cinematográfica. Hoje, não tem mais quem defenda isso.

Podem reclamar da comédia, mas quem escolhe (assistir) é o público. Quem escolhe ver o Leandro Hassum, a Ingrid Guimarães, o Fábio Porchat, é o público. Você vai proibir de ver o que ele quer? Você tem que descobrir como ajudar aqueles que querem mudar o gosto do público.

O senhor já ganhou prêmios pelo conjunto da obra aqui, em São Paulo, em Gramado, na França, nos Estados Unidos, foi do júri de Cannes. Com tanta coisa, o que lhe impele a seguir?

É o que eu disse antes: o amor ao cinema. Acho que o cinema é uma forma de se expressar muito sofisticada e muito rica. E eu sou tarado, sou fissurado por isso.

Pergunta do leitor: Ailton Monteiro, 43, crítico de cinema e professor

Como você vê o Cinema Novo hoje? O senhor vê um legado daquilo que os cineastas propunham ainda na década de 1960?

Olha, é muito difícil falar de legado, porque isso daí tem mais de 50 anos (risos). Em 50 anos deu para passar muita coisa pelo caminho. Mas eu tenho muito orgulho de ter feito parte dessa geração. A grande qualidade do Cinema Novo, hoje eu vejo com clareza, é que nós fundamos o cinema moderno brasileiro, ou seja, nós botamos o Modernismo no cinema. Claro que isso criou uma maneira de fazer cinema no Brasil diferente da que existia antes. Agora, um legado concreto eu não sei te dizer. O Cinema Novo é um monumento histórico. Eu acho que, para nós, o que ficando monumento cinemanovístico é essa capacidade de modernizar o cinema brasileiro. A liberdade de fazer filmes sobre o que se quiser, a liberdade de usar a realidade brasileira para se fazer filmes. Tudo isso é uma novidade que o Cinema Novo é que trouxe.

Fonte: O Povo