Homem Irracional – sem culpa e nas mãos do acaso

Há quem diga que está farto de ver Woody Allen copiando e repetindo Woody Allen ao infinito. Há também os que insultam quem nutre simpatia por Cuba. Os que chamam um golpe político de impeachment. Há quem diga que nunca houve luta de classes no Brasil até os ‘safados petistas’ chegarem ao poder. Que shopping center é o máximo e a Flórida um eldorado – mesmo lavando vaso sanitário quando é preciso.

Por Léa Maria Aarão Reis*, na Carta Maior

Há quem jure que os eleitores do PT são corruptos. E ache telenovela – A Regra do Jogo, por exemplo, apesar da audiência pífia – uma das mais belas diversões inventadas pelo homem. (O título é sugado de um clássico do cinema, de Jean Renoir, La Règle du Jeu)

A esta turma sugerimos vivamente não sair de casa para assistir ao mais recente filme do diretor americano, Homem Irracional (Irrational Man/2015). Ele é uma ode redonda e concisa à inteligência humana.

As cópias de Woody Allen por Woody Allen vão muito além do lixo das abobrinhas podres, do ódio, das ameaças, insultos baratos, agressões e da imbecilidade da truculência física e verbal tal como ela ocorre hoje nos grandes centros urbanos do país. Mesmo quando alguns dos seus filmes anuais sejam pequenas crônicas sem tanta significação artística.

Não é este o caso da história contada por Allen nesta produção de agora, a mais recente. Um acadêmico, Abe Lucas, professor de filosofia desencantado, tem a oportunidade, pensa ele, de dar significado à sua vida. Já viu e já fez de tudo trabalhando em favor do Outro – como voluntário em Darfur, em Bangladesh, e na militância, nas ruas, protestando contra as injustiças.  Deu-se conta, porém, que o mundo continua sendo um local execrável onde a ganância é infinita e o ódio grassa na realidade concreta, diz o professor Lucas. Um mundo sem lugar para a abstração das teorias filosóficas do homem racional.

Não adianta lutar. Embeber-se em álcool e brincar com roleta russa nas festas é a sua escolha para ir morrendo lentamente – ou de repente. Mas, por acaso (acaso?), um dia, o professor percebe que, eliminando certo juiz partidário, corrupto porque parcial, sobre o qual nunca tinha ouvido falar, pode, com um só golpe, matar não dois, mas três coelhos: emprestar importância à sua vida, tornar o mundo um pouco menos repulsivo e minorar o sofrimento do Outro provocado pelo pilantra vestido de toga.

Trama o assassinato do tal juiz, aparentemente um imoral, depois de ouvir a conversa entre desconhecidos, num restaurante, durante a qual uma mulher desfia o abuso de uma sentença proferida pelo juiz carrasco, a qual resulta em grande sofrimento para ela e para seus filhos. Deste modo, Abe reconquista a vontade de viver e, onipotente, crê contribuir para tornar o mundo um pouco melhor.

Como Raskolnikoff, em Crime e Castigo, que elimina a agiota.

Em Homem Irracional Allen relê, com um filtro cada vez mais sofisticado pela sua idade que avança – 79 anos que não esclerosaram nem congelaram o espírito –, nada menos que Dostoievsky. Mas com a sua leveza, graça e o humor que vai se fazendo, com o tempo, e gradativamente, mais sutil e desesperançado.

Ele retoma o tema de duas das obras  primas mais refinadas do seu cinema. Crimes e Pecados (Crimes and Misdmeanors, de 1989), no qual o médico oftalmologista interpretado pelo extraordinário ator Martin Landau tem um diálogo antológico, no fim do filme, após mandar matar a amante  (Angelica Huston), sobre a questão da Culpa. E Ponto Final (Match Point, de 2006) onde a mesma Culpa, tatuada a fogo no jovem arrivista, o ator Jonathan Myers, se aprofunda depois do assassinato – novamente o mesmo assunto – de uma namorada incômoda, estorvo ao seu projeto de ascensão social (Scarlett Johansson).

Quando garoto, Allen costuma dizer hoje que se preocupava com três temas: beisebol, mágica e assassinato. “A questão do assassinato sempre me interessou”, relembrou, em uma entrevista coletiva, no Festival de Cannes deste ano, quando Irrational Man estreou fora de competição. “É um assunto que está inscrito no grande drama humano; dos gregos a Shakespeare.”

O professor que antes se apresentava como paladino da racionalidade, por força da própria atividade profissional, se torna o homem irracional de Woody Allen. Ele vive também histórias paralelas e se envolve com duas namoradas – Jill e Rita. A aluna brilhante e aparentemente descolada (Emma Stone), ancorada na racionalidade, e a colega madura, professora casada, insatisfeita e sensual (Parker Posey). Quando o destino se inclina para o lado adverso ao professor Lucas, é a garota (racional) quem se apresenta conservadora – ou moralista? A professora Rita assume o símbolo da paixão irracional. É quem parece estar pronta para a grande aventura da vida mesmo que no limite da amoralidade.

A saga de Abe Lucas é narrada num cenário peculiar – a cidade universitária de Providence, em Rhode Island. Ela funciona como um símbolo da inteligência americana dos tempos em que os EUA ainda exercitavam os músculos para explicitar sua posterior política imperial planetária. Providence conserva a atmosfera dos anos 50. É um cenário com a mesma luz das célebres ilustrações de Norman Rockwell, da vida americana da década dos 40/50, sublinhado no filme pelas lentes e filtros do fotógrafo Darius Khondji. Uma luz avermelhada que pode remeter ao renascimento do dia ou ao crepúsculo que sempre antecede a escuridão da noite.  A Darius se junta Susy Benzinger (figurinos mais cuidados) e a Santo Loquasto, antigo colaborador, mas aqui autor de uma cenografia apurada.

Allen, portanto, insinua que no mundo real não cabem especulações filosóficas – exceção para o pensamento dos existencialistas. Só há espaço para as ideologias e a ação. Os jovens, para ele, neste filme complexo, repleto de chaves de entrada, representariam uma força, porém passiva, e desinformação e ignorância. E os burgueses – isto consta de um  diálogo – , dariam sentido às suas vidas vazias criando intrigas e fofocas. Ou, dizemos nós, assistindo telenovela, batendo panelas e conspirando.

O mundo de Woody Allen de agora ao que parece se livrou das culpas. Mas o acaso – que pode ter o nome de punição – nos espreita atrás de cada esquina.