Camila Nunes Dias: Sistema carcerário é máquina de destruir pessoas

Entre 2004 e 2014, a população carcerária brasileira aumentou 80% em números absolutos, sem que isso tenha representado qualquer melhoria nos indicadores de violência do país. Para a professora da Universidade Federal do ABC Camila Nunes Dias, prisão não é o caminho para a pacificação da sociedade e para a redução dos crimes e da violência.

Por Joana Rozowykwiat

Presídio

Em entrevista ao Portal Vermelho, a pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP) afirma que o sistema carcerário brasileiro expressa mais que a desigualdade econômica, social e racial. Representa o abismo entre os que têm acesso à justiça e a direitos e aqueles que não têm.

“Para descrever numa frase o sistema carcerário brasileiro, eu diria que é uma máquina de destruir pessoas, de acabar com sua dignidade, com sua saúde, com seus sonhos”, diz Camila. Confira abaixo a entrevista:

Portal Vermelho:
O Brasil tem uma das maiores populações carcerárias do mundo. O que isso diz sobre o país?

Camila Nunes Dias: O sistema prisional brasileiro – em sua composição social e racial – é a expressão da nossa estrutura social e de nossa história, marcada pelo abismo que ainda pode ser retratado na famosa frase: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Portanto, o que o volume e a composição do sistema carcerário brasileiro expressam é mais do que a desigualdade econômica, social e racial. É o abismo em termos do acesso à Justiça e da garantia de direitos políticos, civis e sociais e de direitos fundamentais.

Como você descreveria o cenário atual no sistema carcerário brasileiro?

É difícil descrever, até porque é muito grande e há particularidades em cada estado. Mas, há algo em comum a todos: as condições péssimas, aviltantes, degradantes de encarceramento. Não há um só estado brasileiro que possa dizer que garante direitos mínimos da população prisional. O que há em alguns estados são algumas poucas unidades prisionais “modelo”, que acabam sendo cartões de visita para quem vem de fora. Mas, são raras exceções que acabam por confirmar a regra.

Até pela questão apontada na primeira pergunta, podemos compreender porque não há interesse algum pela questão carcerária. É um segmento da população que não conta. Suas vidas não interessam a quem está no poder. É para este segmento que é reservado o sistema carcerário (com as exceções recentes da Operação Lava Jato e outras que a Polícia Federal vem fazendo nos últimos 8 ou 10 anos).

Enfim, para descrever numa frase o sistema carcerário brasileiro, eu diria que é uma máquina de destruir pessoas, de acabar com sua dignidade, com sua saúde, com seus sonhos e de transformá-las em potenciais monstros. Aqueles que saem das prisões e ainda sonham merecem receber prêmios e homenagens porque são heróis. Vale dizer que, nestes casos, o mérito é todo do indivíduo e não da instituição.

As instituições carcerárias nada fazem além de fazer o sujeito sofrer, violar seus direitos e estigmatizá-lo, imputando-lhe ou aprofundando nele uma identidade “delinquente”. A prisão só serve para isso. Ponto.

Como o sistema penitenciário tem tratado as mulheres, especificamente?

O padrão é o mesmo dos homens: a violação de direitos. A diferença é que a essa violação de direitos “padrão” se acrescentam outras que decorrem da própria especificidade feminina, que é absolutamente ignorada tanto na estrutura física das unidades, quanto na sua organização e nas normas internas dos estabelecimentos.

O Estado não é capaz de dar papel higiênico, como vai fornecer absorventes para as mulheres? Isso, falo em relação a São Paulo, o mais “rico”. Imagine nos outros estados. O sistema carcerário é eminentemente masculinizado na sua estrutura, na sua organização, no seu funcionamento, nos valores que formam a conduta tanto de funcionários quanto de presos.

Não há nada ali que propicie a manutenção de alguma singularidade da mulher presa. Seja ela qual for. Veja o uniforme padrão, por exemplo. E, quando se trata de manter alguma característica associada às mulheres, trata-se, na verdade, de reproduzir o que há de mais machista, retrógrado e preconceituoso no que diz respeito ao papel da mulher. Oficinas e cursos, por exemplo: de costura, de manicure, etc.

Por que a visita íntima é dificultada para as mulheres nos presídios femininos?

Em primeiro lugar, pelas questões apontadas anteriormente. Ou seja, o sistema carcerário é um sistema masculinizado e que reproduz as relações entre homens e mulheres, a partir daquilo que há de mais retrógrado na sociedade brasileira. E, neste sentido, a visita íntima é até uma “afronta”, porque parte do pressuposto que a mulher também tem direito ao prazer, ao sexo. E, neste sistema, isso não é admitido.

Há também uma questão que é a perda de vínculos familiares e afetivos pelas mulheres presas, que é muito mais forte e devastador do que no caso dos homens. A grande maioria das mulheres é abandonada pela família quando é presa, especialmente pelos cônjuges (que, não raro, também estão presos e, quando saem da cadeia primeiro, nem sempre procuram restabelecer a relação).

A violação de direitos se estende também aos parentes dos presos? Que prejuízos isso acarreta à ressocialização?

Claro que sim. Os parentes cumprem a pena junto. A prisão estende seus efeitos nocivos para muito além do próprio preso, atingindo de forma contundente toda a família, desde o aspecto econômico, social e do ponto de vista afetivo. As crianças que são separadas do pai ou da mãe, isso é uma tragédia. E, quando a família quer manter o vínculo, tem que se sujeitar ao tratamento absolutamente degradante dispensado às visitas, com a revista vexatória.

Aliás, é bom lembrar que o estado de São Paulo é um exímio violador da lei, porque a ALESP aprovou uma lei proibindo a revista vexatória nos presídios paulistas, com um prazo de seis meses para adaptação das unidades para começar a vigorar a proibição. O governador Geraldo Alckmin, através de seu secretário de Administração Penitenciária, simplesmente ignorou e continua ignorando a lei e cometendo ainda as mesmas atrocidades com as mulheres e crianças que querem exercer o seu direito de visitar seus parentes.

Só que, em São Paulo, o governador parece ter carta branca para tudo. E o Ministério Público, a Justiça…. Não ouvi nenhuma palavra a respeito da violação da lei. Voltamos à primeira questão: no Brasil, só pobre que viola a lei vai para a cadeia. A violação da lei por outros segmentos da população é absolutamente tolerada.

Nesse cenário atual, prender ajuda ou atrapalha o combate à criminalidade?

Sempre que o Estado manda alguém para a prisão, ele está dando uma contribuição importante para as redes criminais organizadas que atuam lá dentro. Se, por exemplo, trata-se de um sujeito cujo envolvimento com a atividade ilícita é casual e pontual, dentro da prisão ele terá toda oportunidade do mundo de se inserir em redes mais complexas e organizadas.

Como dito antes, a prisão é, por excelência, um locus de articulação e de organização da criminalidade. Não é por acaso que o estado de São Paulo é o estado com a maior população carcerária do Brasil (1/3 da população carcerária brasileira está em São Paulo) e é o estado que, de longe, tem a criminalidade mais organizada do Brasil também.

Essa organização começou há pouco mais de duas décadas dentro das prisões paulistas e se estendeu a outros estados. A política penitenciária de São Paulo gerou essa “contribuição” para o cenário nacional.

A população carcerária cresce, sem que isso signifique redução da criminalidade. Por que se insiste nessa saída?

É evidente que a prisão não é o caminho para a pacificação da sociedade, para a redução dos crimes, da violência. Agora, resta saber se aqueles que apostam todas as suas fichas na prisão – políticos que defendem legislação mais dura; jornalistas que vociferam pelo endurecimento da lei; juízes que decretam a prisão provisória e/ou condenam de forma burocrática e automática – se o que eles realmente querem é pacificar a sociedade.

A prisão é um instrumento de segregação, uma ferramenta nova para promover a manter o apartheid social e racial. Outra questão que é muitas vezes negligenciada é que alguns grupos que defendem veementemente a prisão, o endurecimento das leis e das penas… Enfim, há muita gente que ganha dinheiro, muito dinheiro com tudo isso: com o medo, a insegurança, a violência, os crimes e a própria prisão. São urubus que vivem, enriquecem e se alimentam do sangue e da liberdade alheia, essencialmente, dos jovens negros e pobres.

O que seria dos patrocinadores de alguns desses jornalecos televisivos se o Brasil conseguisse “pacificar” a sociedade? O que seria de empresas de seguro, de segurança privada, de tecnologias de segurança? E, agora, querem entregar a população carcerária para as empresas que fazem a “gestão” de presídios, uma nova modalidade de escravidão no mundo moderno.

Você já pensou como é o controle sobre os gastos que se declara ter com os presos? O que os presos recebem que justifica o exorbitante volume de recursos que é supostamente destinado à sua manutenção? O quanto se ganha com os processos de construção de novas unidades prisionais? E a alimentação terceirizada que, em regra, é um lixo e caríssima? Mesmo assim, continua sendo a opção preferencial dos “gestores”, mesmo tendo uma imensa população presa com capacidade e habilidade para produzir a comida na sua própria unidade. O que se ganha com tudo isso e quem ganha?

São perguntas que faço e acho que o Ministério Público e o Judiciário poderiam – se houvesse o mínimo interesse – fazer também. Eu gostaria muito de ver demonstrados – de forma transparente, aberta e com o controle externo – os gastos com a manutenção das unidades carcerárias. Acho que teríamos mais elementos para compreender por que, a despeito da prisão apenas ampliar a violência, ela continua sendo a aposta desses grupos.

Quais seriam as alternativas?

A única alternativa é o desencarceramento. A prisão tem que ser reservada a casos específicos em que o sujeito, de fato, representa uma ameaça social. A descriminalização das drogas é um dos caminhos necessários para o desencarceramento. Mas, o desenvolvimento de uma ampla gama de políticas de prevenção – educação, profissionalização, saúde, acesso a direitos, saneamento, creches – é essencial e deveria ser a base das ações para, de fato, reduzir a violência na sociedade.

Não tem como reduzir violência alguma com a manutenção dos abismos sociais, culturais, econômicos e políticos hoje existentes. Mantido esse cenário, qualquer “pacificação” só decorre de processos de apartheid social, como são as prisões e como têm se mostrado as políticas explicitamente higienistas postas em prática. No RJ temos um caso emblemático recente, com o impedimento dos jovens negros de irem à praia. Quer mais claro, transparente e límpido do que isso?