Humberto Fabretti: Quem tem medo da polícia?

No último dia 28 o instituto Datafolha publicou pesquisa sobre o medo que a população brasileira sente em relação às instituições policiais e as conclusões são alarmantes e demonstram que ainda estamos muito longe de uma gestão democrática da segurança pública.

Por Humberto Barrionuevo Fabretti*

povo teme a Polícia

Os dados levam em consideração cidades com mais de 100 mil habitantes em todo o território nacional e são basicamente os seguintes: 62% das pessoas tem medo de sofrer agressão da polícia militar e 53% tem medo de sofrer agressão da polícia civil. Ainda, apurou-se que o medo da população de ser vítima de homicídio também é enorme, já que 81% das pessoas responderam afirmativamente quando perguntadas “Você tem medo de ser assassinado?”.

O resultado é preocupante porque demonstra que o medo das instituições policias vem aumentando ano a ano, pois em pesquisa semelhante feita pelo mesmo instituto em 2012 concluiu que 48% das pessoas tinham medo de serem agredidas pela PM. Mas também aumento o medo em geral, já que na pesquisa de 2012 apenas 29% das pessoas afirmaram terem medo de ser vítimas de homicídios

Outro ponto importante descoberto na pesquisa é que os que mais temem a polícia são os jovens, negros, pobres e moradores do nordeste, o que destaca um elemento econômico-social-geográfico de muito impacto no estudo.

Mas quais seriam as causas desse medo enorme da população brasileira em relação às nossas polícias?

O medo das instituições policiais é absolutamente comum e compreensível em regimes autoritários, que acabam formatando um Estados Policialesco no qual as autoridades policiais não se submetem a qualquer outra autoridade e tem plena liberdade de atuação, especialmente em relação aos inimigos públicos do momento. É só lembrarmos da Gestapo alemã, fruto do nazismo, que não dependia de qualquer autorização judicial para perseguir e matar judeus e demais inimigos do regime; e do DOPS e DOI-CODI paulista, que na ditadura civil-militar atuava sem qualquer controle contra os inimigos do momento. O modelo repetiu-se e repete-se em todo o mundo.

Como já afirmado em outros artigos nesta mesma coluna, há algo de muito errado com nossas polícias. E os erros perpassam desde a formação dos policiais, a perpetuação da cultura policial herdada da ditadura, a tolerância social às ilegalidade e a cegueira deliberada daqueles que deveriam fiscalizar e punir os desvios de conduta, especialmente o Ministério Público e o Poder Judiciário.

Como sempre, é preciso frisar que sou avesso à generalizações, o que significa que não é todo curso de formação que é equivocado, que nem todo policial mantém viva a cultura totalitária das polícias, nem que todos os membros da sociedade tolerem os abusos, e tampouco que todos os membros do Ministério Público e do Poder Judiciário são coniventes com os abusos policiais. É claro que não é assim.

Porém, mesmo que se saiba do enorme esforço das autoridades do Poder Exeucutivo para melhorar a formação dos policiais, inclusive com uma carga horária exemplar de direitos humanos, sabe-se que na prática a realidade é bem diferente dos currículos.

Para exemplificar o que chamo de erros de formação, transcrevo alguns trechos da entrevista do ex-soldado da PM do Estado do Rio de Janeiro, Rodrigo Nogueira Batista( ):

“A minha turma partiu pro estágio com dois meses de CFAP (Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças), dois meses dentro do CFAP tendo meio expediente e depois rua. Lá fomos nós de cassetete, shortinho e camisa da Polícia Militar, isso pra população ver aquele monte de recruta passando para poder dar o que eles chamam de ‘sensação de segurança pra população’”.

“Eles colocam o policial antigo armado e dois ou três ‘bolas-de-ferro’, como eles chamam os recrutas, justamente por dificultar a movimentação do policial antigo. A gente chegava e o antigo ficava angustiado com a nossa presença porque queria pegar dinheiro do flanelinha, do cara que vende mate, da padaria e quando ele ia no português comer alguma coisa tinha que dividir com os “bolas-de-ferro”’.

Ainda, do mesma entrevista, é possível retirar os seguintes trechos, que nos dão uma ideia de como a cultura policial, absolutamente contrário à pretensão de uma polícia cidadã e democrática, é passada de geração em geração:

“Por exemplo, um pivete roubou uma coisa de um turista e correu. O policial corre atrás do pivete e pega o pivete. Quando ele consegue chegar no pivete, ele já jogou o que ele roubou fora, e ele é menor de idade, não pode ser encaminhado para a delegacia. Porra, mas o policial sabe que ele roubou. Aí entra o revanchismo, a hora da vingança. Primeiro lugarzinho separado que tiver (cabine, atrás de um prédio, dentro dos postos do guarda-vidas) é a hora da válvula de escape”.

“Uma das instruções que os oficiais davam antes do efetivo sair pro policiamento era: ‘olha, vocês podem fazer o que vocês quiserem, pega o pivete, bate, quebra o cassetete, dá porrada no flanelinha. Só não deixa ninguém filmar e nem tirar foto. O resto é com a gente. Cuidado em quem vocês vão bater, cuidado com o que vocês vão fazer e tchau e benção’”.

"O camarada começa a ver um pivete levando choque, spray de pimenta no ânus, no escroto, dentro da boca e não sente pena nenhuma. Pelo contrário, ele ri, acha engraçado. E tem um motivo: se nesse momento que o mais antigo pegou o pivete e começa a fazer isso, se você ficar sentido, comovido por aquela prática, pode ter certeza que vai virar comédia no batalhão, vai ser tido como fraco. Vai ser tido como inapto para o serviço policial”.

No Estado de São Paulo, no mês passado, policiais da Rota, considerada uma tropa de elite da polícia paulista, foram indiciados pela Polícia Civil por torturarem, mediante choque elétrico nos testículos, dois suspeitos de homicídio.

Ainda em São Paulo, há duas semanas, chamou atenção a declaração de um policial sobre a transferência de um colega de farda por ter se envolvido em sua terceira ocorrência com morte:

“A polícia tá, como sempre, né, querendo reduzir a letalidade policial. Então, os tenentes, principalmente os oficiais, mas sargentos, cabos e soldados que nos últimos cinco anos se envolveram em três ocorrências ou mais, que tenham resultado evento morte do criminoso, eles tão sendo movimentados”

“E o (…) se encaixa nessa lista aí [envolvimento em mais de três mortes nos últimos cinco anos]. Até eu, que tô fora da rua há dois anos, me encaixo. Porque pro camarada trabalhar cinco anos na rua e não ter ma… três ocorrências, na minha opinião, é vergonhoso, né. Mas é a minha opinião, né”.

No relatório final da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo () o sociólogo e ex-subsecretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, Luis Eduardo Soares afirmou:

“O BOPE [Batalhão de Operações Policiais Especiais, pelotão de elite da PM fluminense] oferecia, até 2006, aulas de tortura. 2006! Aulas de tortura! Não estou me referindo, portanto, apenas às veleidades ideológicas (…), nós estamos falando de procedimentos institucionais”

Para piorar a situação, e escancarar como por vezes o Ministério Público e o Poder Judiciário simplesmente chancelam os abusos e homicídios praticados pela polícia, a Anistia Internacional divulgou um estudo em que analisou 10 autos de resistência seguida de morte envolvendo policiais, sendo que em 9 deles encontrou indícios de execução. O mesmo relatório aponta, ainda, a utilização pela polícia carioca de uma tática chamada “tróia”, descrita da seguinte forma: “emboscada realizada por um policial que fica escondido para atirar em uma pessoa específica sem receber nenhuma voz de prisão ou sem oferecer perigo à vida do agente”.

Na Bahia, semana passada, policiais militares que foram acusados pelo Ministério Público de serem autores da chamada “Chacina do Cabula”, em que 12 pessoas foram mortas, com indícios de execução, mas foram absolvidos sumariamente pela juíza, isso é, sem qualquer discussão sobre as provas apresentadas ao processo.

Esses poucos fatos, colhidos rapidamente dentre as publicações digitais desta semana, dão uma pequena mostra do porquê a sociedade brasileira teme suas polícias.

É preciso uma mudança de rumo urgente nesta rota que terá por fim o completo descrédito das instituições policiais. As policias são absolutamente necessárias a toda e qualquer democracia e precisam exercer seus papéis absolutamente dentro da legalidade e com respeito à democracia, para que sejam legitimadas e respeitadas.

Para tanto, é preciso que a formação policial seja voltada para a cidadania, que o policial seja conscientizado do seu papel na democracia e tenha sua dignidade respeitada dentro e fora da corporação. O desrespeito ao policial em formação, o tratamento degradante e desrespeitoso não o deixa mais forte, mas sim mais violento, mais irascível e passional.

A cultura totalitária que ainda impera nas corporações policiais e é transmitida diariamente pelas práticas cotidianas também precisa ser quebrada, e aqui talvez esteja o maior desafio. As policiais, principalmente as militares, são quase instituições totais, que engolem seus integrantes e os institucionalizam. A ruptura desta cultura depende da formação e empoderamento de quadros afinados com os direitos humanos, com a legalidade e com a democracia.

Porém, tudo isso somente será possível, quando o Ministério Público e o Poder Judiciário, bem como os órgãos de controle interno e externo e a própria sociedade não mais tolerarem desvios de conduta, torturas e execuções extrajudiciais.

Vivemos em uma democracia que já caminha para a década Balzaquiana e deveríamos ter cada vez mais confiança nas instituições policiais, pois em regimes democráticos a função destas é servir, proteger e promover a cidadania e não desrespeitá-la e amedronta-la. Estaremos satisfeitos com a atuação policial quando os jovens, principalmente os negros e pobres, moradores ou não do nordeste, sentirem confiança e segurança ao avistarem uma viatura policial, e não medo.

*Humberto Barrionuevo Fabretti é Advogado Criminalista e Professor Doutor de Direito Penal da Universidade Presbiteriana Mackenize.