Ignacio Cano: Linchamento é sintoma da falência do Estado

No fim de semana passado, o Rio foi palco de cenas de barbárie. Após uma onda de arrastões nas praias cariocas, moradores brancos – ou quase brancos – da Zona Sul pararam um ônibus com destino à periferia, em busca de vingança. Quebraram vidros e agrediram jovens negros, causando pânico. Para o sociólogo Ignacio Cano, do Laboratório de Análise de Violência da Uerj, a cena de selvageria é um sinal de alerta sobre a deterioração da convivência democrática, das leis e do Estado de direito.

Moradores da Zona Sul do Rio agridem passageiros de ônibus

Por Joana Rozowykwiat

A agressão aos passageiros do ônibus é mais um episódio de justiçamento popular, um fenômeno antigo que, em tempos de intolerância, parece se proliferar. O caso recente mais marcante e simbólico talvez tenha sido o de Cleidenilson Pereira da Silva, no Maranhão. Acusado de roubo, ele foi espancado e esfaqueado até a morte, após ser amarrado pelo pescoço a um poste, em plena luz do dia. A imagem, que circulou o país, mais parecia a do escravo açoitado amarrado ao tronco, em tempos de Brasil Colônia.

Uma pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), que estudou casos de linchamento de 1980 até 2006, concluiu que o Brasil é o país que mais lincha no mundo. Só nesse período, foram 1179 casos.

No livro Linchamentos – A justiça popular no Brasil, o sociólogo José de Souza Martins contabiliza que, nos últimos 60 anos, um milhão de brasileiros participou de pelo menos um linchamento. É a naturalização do horror – “a justiça de rua disputando autoridade com a justiça dos tribunais”, como diz o autor.

De acordo com Ignacio Cano, os justiçamentos desnudam problemas graves e alimentam mais violência. “Não importa se somos o número um, o número dois ou o número 20 em linchamentos. O linchamento, de qualquer forma, é a falência do Estado, da convivência democrática, das leis, de tudo. E as pessoas que cometem esses crimes falam de justiça pelas próprias mãos. Mas a gente teria que falar, na verdade, em injustiça pelas próprias mãos. Porque isso, evidentemente, não é justiça”, opina.

Cano destaca que a agressão ao ônibus no Rio – que teria sido convocada pelas redes sociais – aconteceu em um cenário de conjuntura econômica adversa e de escalada da intolerância, que se somaram a questões de fundo.

“Estamos em um cenário difícil do ponto de vista da economia, depois de muitos anos de redução da desigualdade. A conjuntura política também é difícil, com um desgaste dos governos, e isso acho que contribui para um clima de intolerância, de impaciência. O fato de que a extrema direita agora saia do armário e peça abertamente a volta ao regime militar… Há sinais de intolerância, ao menos no campo político, que podem estar contribuindo para que isso se estenda a outras áreas também. Isto, junto à questão do arrastão, que é um fenômeno carioca e uma coisa que apavorou sempre o carioca, porque é uma espécie de profanação do seu lugar sagrado, que é a praia, acaba provocando esse tipo de explosão e violência descontrolada”, avalia.

Ele lembra que o incidente de domingo, na verdade, foi o ápice de um enredo que se desenvolvia já há alguns dias. Desde que a Polícia Militar do estado passou a identificar e bloquear ônibus que seguiam em direção às praias da Zona Sul, promovendo detenções indiscriminadas, sem constatação de flagrante delito, sob o argumento de prevenção dos arrastões. Em comum, os jovens levados à delegacia tinham o fato de serem pobres, negros e morarem na periferia.

Atendendo ao que diz a Constituição, a Justiça proibiu esse tipo de ação. Cano acredita que o secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame, reagiu mal à decisão. “Ele declarou que a prevenção não era mais possível por parte da polícia. Acho que isso reforça as tendências autoritárias nos grupos que acham que, já que a polícia não faz, eles têm que fazer alguma coisa.”

Para o sociólogo, o cenário realmente é preocupante e o risco de escalada da tensão é grande. “Se esses casos se reproduzirem, daqui a pouco não vai mais ser só porrada, não. Daqui a pouco alguém vai puxar uma faca, vamos ter um ferimento mais grave e depois não custa nada alguém pegar uma arma. É engraçado porque essas pessoas que cometem esses atos de barbárie, supostamente para melhorar a segurança, na verdade estão estendendo a percepção de insegurança, que, se antes estava mais na praia, agora está também onde os ônibus circulam”, opina.

Ignacio Cano destacou que, ao praticar um justiçamento, as pessoas não se dão conta de que poderão ser vítimas de um ato de selvageria de uma multidão efervescida. “É um sinal de alerta sobre a deterioração da convivência, da lei, do Estado de direito. Acho que é então um desafio civilizatório a gente conseguir transformar essa realidade e mostrar para as pessoas que esse caminho não só não é positivo, como coloca elas próprias em risco. Um dia podem ser alvo desse tipo de fúria.”

Preconceito

De acordo com Cano, episódios de violência como este têm, sim, um forte componente de classe e racial, que, com os linchamentos, atingem outros níveis. “O preconceito sempre existiu, é histórico. Há alguns setores da Zona Sul que acham que não devia nem ter ônibus, porque acham que a praia é deles e que ela é ‘invadida’ por pessoas de outras áreas. Agora, uma coisa é ter preconceito – tem gente da Zona Sul que diz que não vai na praia no domingo porque não quer se ‘misturar’, isso é histórico –, outra coisa é a pessoa dar porrada em qualquer um que esteja dentro do ônibus e que tenha uma certa aparência, não é?”, condena.

Questionado sobre as origens da violência no Brasil, recorde de homicídios no mundo, Cano elencou uma série de fatores. “Somos muito desiguais; temos cidades e áreas urbanas que cresceram desordenadamente, sem condições mínimas de habitabilidade; temos exclusão social; taxas de impunidade muito elevadas; mais de 90% dos homicídios não resultam na punição de ninguém; nós temos um fluxo grande de armas de fogo com as quais se cometem a grande maioria dos homicídios no país; há também fatores culturais, como a gente estava examinando, a ideia de que bandido bom é bandido morto, de que tem que morrer mesmo; temos uma polícia que muitas vezes adota a doutrina de confronto, da guerra”, enumerou.

Segundo ele, a violência tem raízes profundas na história do país, muito marcada pela marginalização de setores da sociedade. “As pessoas dizem às vezes: ah, a culpa é da ditadura. Mas, no Brasil, as polícias foram criadas no século 19, entre outras coisas, para açoitar escravo, como uma forma de controlar violentamente populações que eram consideradas subalternas. A raiz da violência é muito longínqua, vem do início da formação do país.”

Sobre o fato de a população negra ser a mais afetada por atos de violência, Ignacio Cano avalia que há aí dois componentes para esse cenário. “O primeiro é que os negros são mais pobres, moram nas periferias, quer dizer, mais fatores de risco estão associados a essa população. Esse é o ponto central. Agora tem um segundo fator, que é a discriminação racial. Nós temos uma pesquisa que mostra, por exemplo, que, no Rio, quando a polícia entra em conflito armado, se o opositor for negro, a chance de ele sobreviver é 8% inferior à de um branco. Então tem um componente de descriminação, sem dúvida.”

No seu livro sobre os linchamentos, José de Souza Martins constata que a cor da pele não é a primeira motivação para linchar alguém, mas ela influencia o conteúdo da ação. “A diferença se manifesta no decorrer do ato, de forma muito mais sutil, do modo como o racismo é concebido no Brasil. Ele se torna mais violento. Se o linchado for negro, a probabilidade de aparecerem outros componentes, como mutilação, furar os olhos, queimar viva a vítima, aumenta.”

Mídia e banalização

De acordo com Ignacio Cano, a violência não só é banalizada na sociedade brasileira, como também é espetacularizada pela mídia. “E, à medida que você tem o espetáculo, a cada dia tem que acontecer uma coisa mais grave que o dia anterior, porque, se todo dia fosse a mesma coisa, as pessoas não teriam mais vontade de assistir. Então alguns programas realmente contribuem mais ainda para banalizar a violência, para a percepção de que o natural é matar criminoso, que as coisas se resolvem assim”, defende.

Segundo o sociólogo, se, por um lado, tais programas causam danos, por outro, “são filhos” da nossa realidade. “A gente não pode também proibir. O que pode fazer é estabelecer limites, de horário, talvez de conteúdo. Mas temos que superar isso de forma pedagógica. Precisamos fazer com que as pessoas não apreciem esse tipo de programa. Isso não é uma coisa que aconteça de um dia para o outro”, conclui.

Para ele, a situação de insegurança vivenciada hoje no Brasil não tem solução rápida, mas o caminho para alcançá-la passa por implementar programas de prevenção para inserção social da juventude de áreas periféricas; melhorar as taxas de esclarecimento criminal, para conseguir prender os responsáveis pelos homicídios; impedir a difusão de armas de fogo e mudar a doutrina policial.