Thais Guilherme em emocionante relato: “A leitura salva, o rap salva”

Acabo de chegar em casa, estou assustada, que noite foi essa meu Deus? Havia saído da faculdade cedo, estava animada, me sentia bem, pois hoje entrei em sala de aula do jeito que eu gosto, sem precisar me “arrumar” toda no padrão do curso de Direito, estava com um jeans rasgado, camiseta escrito #SONEGO, marca produzida na quebrada, com menção a um morador da favela dentre outros significados (sonego, só nego, sou negro).

TG

Enfim, me sentia verdadeiramente orgulhosa e neste dia eu lia a biografia do Sabotage, ao entrar na faculdade desse jeito, fui holofote, alí muitos me olhavam e revistavam com os olhos até mesmo o livro que eu carregava, como se eu fosse um ET.

Ao sair da faculdade, no ponto de ônibus arrisquei compartilhar isso no meu Facebook: Finalmente a periferia estava quebrando barreiras e atravessando a ponte de cabeça levantada e sem perder a sua origem.

Tomei o busão Terminal Santo Amaro como sempre faço, estava no fundo como costumo me sentar, logo percebi a entrada na porta de trás de um homem meio inquieto que sentou no meu lado, senti um cheiro sutil de maconha que estava misturado com um delicioso perfume que ele usava. Fiquei meio assustada ao perceber que apesar do horário o ônibus estava vazio, logo lembrei do livro do Sabota que por alguns segundos havia esquecido que estava lendo.

Propositalmente fechei o livro na minha perna para que o rapaz do meu lado notasse que era do Sabotage, por algum motivo achei que isso me livraria de algo, disfarcei pegando o meu celular na mochila, o que foi em vão pois guardei ele com a bateria descarregada, notei que pelo menos o rapaz estava vendo a capa do livro instigado. Retornei a leitura mas fui interrompida com a pergunta dele sobre o trajeto do ônibus: “Moça esse ônibus passa em Santo Amaro?”, estranhei afinal o ônibus em que estávamos era justamente o Terminal Santo Amaro, logo passava em Santo Amaro. Respondi tranquilamente que sim, que pegava toda a avenida Santo Amaro passando pelo Largo 13, entrando no Terminal. Mal terminei de responder e ele já foi se justificando o porquê da pergunta, era porque ele não conhecia aqueles lados, estava indo para a casa de um parente na zona sul mas morava na zona leste.

Pronto! O medo foi despertado dentro de mim, como o cara vai passear sem dinheiro da condução, sem conhecer o lugar que ia? Achei estranho mas continuei a leitura, estava numa parte interessantíssima, quando o Maurinho se junta com a elite do rap nacional, Rappin Hood, Helião, Sandrão, a galera do RZO e começa a cantar, a ter seu talento reconhecido.

O cara inquieto continuou, perguntou se eu gostava de rap, do que eu lia, respondi que sim, que eu era da quebrada também, ele queria o nome da quebrada, soltei Jd. São Luis, já fui adiantando que eu fazia um trampo com a molecada da periferia, “esses dias estava num evento com Rappin Hood, Dexter”. Achei que se SER da periferia poderia me livrar de algo, de um possível assalto ou talvez algo pior…

Para dar mais credibilidade para o que eu falava mencionei do show do Dexter que aconteceria no dia seguinte, perguntei se ele conhecia a historia do Dexter, pois tudo que eu estava falando ele respondia com um insistente , “Tô ligado!”. Imaginei que ele se lembraria da vitória do Dexter contra o crime. Antes que eu pudesse me justificar o porquê ele não deveria fazer algo contra mim, ele solta: “Estou vindo de um assalto alí, não deu certo a vítima reagiu, deixei o carro pra trás junto com os caras, não posso falar muito”. Esse “não deu certo” – que ele falava – me assustou e muito.

Ele continuou e perguntou se eu estava no rap, eu rapidinho respondi que sim, que era do movimento, e reforcei o show do Dexter, fiz o convite a ele que me perguntou o endereço, falei do fretado que sairia da ong onde atuo para levar a galera para o show, ele retrucou dizendo que se ele fosse iria com os manos de carro.

E continuou me relatando: “A gente ia tirar uns 100 mil, mas a vítima foi reagir, não gosto disso, atirei na cabeça dela, cometi 2 homicídios não quero mais isso aí não, estou com duas peças aqui”, tentei ficar calma, pois ele estava atento à minha reação, não parava de olhar para o livro, notei que o cara era banguelo, justamente igual ao Maurinho. Mil coisas passaram na minha cabeça, não parava de pensar na possibilidade dele fazer algo comigo, com as pessoas do ônibus. Só me restava usar as palavras como defesa: “Cada um com o seu corre, mas sem atrasar a vida de gente da gente, tá ligado né?”, eu falei.

Ele logo concordou dizendo que estava ligado sim, que só ia em quem têm, o que me aliviou, pois para alguém que estaria atrás de 100 mil, não acredito que gastaria suas energias com celulares e alguns bilhetes dos passageiros de ônibus em plena quinta-feira, sozinho, correndo o risco de jogar sua liberdade que havia acabado de reconquistar fora.

Já não sabia se era interessante mostrar que também era da quebrada e que assim como eu, ele era uma vítima, de alguma forma, dessa realidade. Fiquei com medo dele se ofender, sei lá, ficar incomodado de eu falar da quebrada assim, ele poderia achar que eu estava blefando, que eu estava chamando ele de favelado, sei lá, naquela altura do campeonato já não sabia se ser quebrada era uma coisa boa ou ruim. O meu medo da desconfiança dele com aquilo que eu estava falando se consolidou quando ele me perguntou se eu conhecia alguém, o qual não lembro o nome agora, ele disse que era um maluco de eventos e que estava também envolvido com esses caras do rap. Fui sincera, disse que não. Ele não fez nada para o meu alívio. Não lembro da ordem das perguntas, estava assustada, mil coisas se passavam na minha cabeça, eu só tinha uma certeza, que eu poderia mudar os próximos momentos.

Antes de eu ficar com medo de mais alguma coisa ou dele confessar outras coisas ainda piores, ele tocou na minha mão de uma maneira formal, como quem pede ajuda, eu já retribuí com um aperto mais “irmão” apertando com força e virando o aperto, ele mandou eu ficar com Deus, desejei o mesmo, do fundo do meu coração.

Ele levantou, ficou arrumando a posição da mochila enquanto eu olhava para ela, imaginando armas ali dentro, tão perto de mim, percebi que o pobre estava desorientando quanto a porta a qual ia descer apontei para a porta da frente, ele deu um sorriso doce sem mostrar os dentes e foi, abaixei a cabeça fingindo ler novamente depois de alguns segundos voltei a olhar e me assustei quando ví que ele estava perto de mim de novo, eu havia errado a porta, pedi desculpas tentando ser simpática, mas ele não respondeu nada além do sorriso.

Fiquei olhando para ele de costas, acho que nunca me deu tanta saudades de alguém que eu não conheço, eu não sabia nem o nome do cara, eu queria ajudar ele, olhei para o livro, me despertou a vontade de entregar para aquela pessoa, comecei a imaginar a reação dele quando eu desse, fiquei com medo, com mais medo ainda de ele descer e eu não ter feito mais nada, quando eu criei coragem para finalmente entregar o livro do Sabotage, que para mim seria a solução para ele, a porta abriu e ele desceu. =/

Puta que pariu! Eu não fiz nada, que bosta, um cara ali do meu lado, eu com oportunidade de fazer algo, sei lá… Porque não dei o livro pro cara? Para onde ele iria? O que ele estava pensando?

Varias perguntas encheram a minha cabeça. Não aguentei, sem ao menos perceber a tristeza que eu estava sentindo comecei a chorar discretamente, o ônibus voltou a andar, olhei para trás e lá vinha ele andando, fiquei com vergonha de olhar, mas imaginei que se ele não visse meu rosto olhando para trás se sentiria mal por algum motivo, então olhei até onde a minha coragem e ônibus permitiram…. Fui perdendo ele de vista, após o ônibus voltar a andar, tentei me concentrar na leitura, as lágrimas foram mais intensas, o ônibus parou novamente, quando olhei para trás já não via mais aquele cara, num susto olhei para a porta a minha direita, ele estava passando do lado da porta, alí foi o último olhar. Me despedi em silêncio.

Meu celular descarregado, eu precisava contar para alguém, o sentimento o qual eu estava alí naquela hora, tudo era diferente para mim, tão estranho, não sei nem o que pensar, sinto dó, tristeza, felicidade, um dia muito diferente, onde eu tive a oportunidade de falar algo que pudesse mudar ou que mudou, não sei se ele me assaltaria ou assaltaria o ônibus, se estava mentindo ou não, só sei de uma coisa… amo essa biografia do Sabotage e concordo com o Dexter, Rappin Hood, Yzalu, Daniel da ORPAS, de fato, de alguma forma, direta ou indiretamente o rap salva!

Thais Guilherme, 20 anos, empreendedora da TG Produções, diretora de eventos da Orpas, ong onde coordena o programa Jovens Empreendedores, integrante do Coletivo Cultural Troféu Periferia e estudante de Direito na Faculdade FMU.