Estados Unidos: o mundo fraturado de William Faulkner

William Faulkner é o maior romancista do século 20. Essa foi a minha sensação ao reler, meses atrás, Luz em Agosto, publicado no Brasil pela editora Cosac Naify. É claro que se trata de um juízo subjetivo, já que essas listas de maiores e melhores da literatura são mais úteis para as conversas de botequim do que para um debate literário sério.

Por Júlio César Vellozo, para o Portal Vermelho

William Faulkner (1897-1962)

O primeiro encantamento do bom leitor de Faulkner é a prosa áspera e densa que o escritor encontrou. Muitos escritores do século XX tentaram esse caminho, buscando uma sofisticação que vinha da densidade da narrativa. Alguns tiveram bons resultados, mas ninguém, penso, alcançou o mesmo efeito estético que o escritor estadunidense.

A força dos romances de Faulkner ficou óbvia aos seus contemporâneos, que o consagraram em vida. Mesmo vendendo pouco, o escritor ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1949, além de outros prêmios importantes, como dois Pulitzer, por exemplo.

Um dos efeitos dessa percepção da grandeza do autor foi o uso que os Estados Unidos fizeram de sua obra com vistas a propagandear a cultura do país em meio à guerra fria. Sem ter pesquisado o assunto de modo suficiente, arriscaria dizer que o Departamento de Estado viu nele alguém em condições de oferecer resistência ao romance russo do século 19. No ambiente da disputa com a URSS, contrapor-se aos feitos culturais do grande país eslavo era tarefa fundamental. Imaginemos que não era simples encontrar adversários que ombreassem autores como Tolstói, Dostoievski e Tchekhov. A literatura de Faulkner poderia almejar esta estatura.

Faulkner aparentemente gostou deste tipo de reconhecimento, tendo feito, inclusive, viagens de divulgação com esse sentido. Entretanto, como acontece em muitos casos, se o autor se adaptou às benesses do patriotismo, a sua obra cumpre papel inverso. A sociedade descrita em romances como Sartoris, Luz em Agosto, Absalão, Absalão, para ficarmos em três exemplos, é muito pouco lisonjeira aos Estados Unidos.

O mundo do Condado de Yoknapatawpha, local do sul inventado por Faulkner, parece funcionar no tempo de um lento pesadelo, marcado pela impossibilidade de qualquer compreensão mútua. Os Estados Unidos de Faulkner são uma paisagem na qual as pessoas não parecem partilhar de uma gramática social comum. Se uma nação, como quiseram autores como Ernest Renan e Edmund Burke, é um pacto entre os mortos, os vivos e os que ainda estão por nascer, o país narrado pelo autor de O Som e a Fúria é um projeto frustrado. Não há pacto, não há entendimento, nem qualquer ligação relevante entre as gerações, que se sucedem, mas não se harmonizam.

Os instrumentos que o autor usa para realizar a sua narrativa são inventivos e se encaixam no momento de experimentação que o romance viveu desde o início do século 20. Apesar de Faulkner não reconhecer qualquer influência sobre o seu romance, salvo a de Sherwood Anderson, é inegável que sua obra está no mesmo caldo de cultura literária que a de James Joyce, Marcel Proust e outros autores dessa cepa. Entretanto, no caso de Faulkner, a experimentação não é um fim em si e nos parece estar a serviço de um projeto narrativo mais amplo. A experimentação de Faulkner, acreditamos, é muito mais um veículo para potencializar este projeto do que um elemento a ser analisado per si. 

Também é possível ver a literatura do autor de O som e a fúria dentro de um ambiente mais amplo, de narrativas que buscavam explorar as possibilidades estéticas de um mundo arcaico que se perdia diante da modernização. Assim, talvez seja uma chave interpretativa frutífera, olhar a obra de Faulkner em comparação com a de autores como o poeta argentino Leopoldo Lugones, o romancista peruano José Maria Arguedas e o paraibano José Lins do Rego. Pensando em arcaísmo e escravidão, até mesmo Gilberto Freyre – lembremos que ele gostava de ser pensando mais como escritor do que como sociólogo – é um parâmetro interessante para se pensar de modo comparativo.

No mundo de Faulkner, entretanto, não há o recurso a uma nostalgia que opera como um elogio do passado. O mundo arcaico de Faulkner se espatifou: trata-se de um ambiente prismático e confuso, do qual não se divisa futuro, dada a tragédia do pós-guerra civil, e não há passado, já que as tradições perderam o sentido, por não poderem mais guiar o porvir.

O resultado como obra de arte é impressionante. Talvez, como dissemos no começo, constitua o ponto mais alto que a arte do romance alcançou no século 20.