Humberto Alencar: Dynamo Berlin, fantasma que reluta em desaparecer

O Portal Vermelho publica a segunda parte do artigo do jornalista Humberto Alencar sobre o clube de futebol Dynamo Berlin, da antiga República Democrática da Alemanha. O artigo faz parte do blog "Pela Esquerda do Campo", que pretende abordar o futebol a partir de um ponto de vista comunista.

Faixa da torcida do Dynamo Berlin

Leia abaixo a íntegra do artigo:

Enquanto o amistoso entre a equipe principal do Dynamo e o segundo quadro do Union Berlin prossegue, os torcedores mais velhos compreendem que o passado glorioso de seu time dificilmente será revivido. Dizem as más línguas, aquelas que venceram o muro e se apropriaram da RDA, que o time do apito, o time da Stasi, o mestre do assalto e outros apelidos menos jocosos não vai sobreviver, quanto mais alcançar um átimo sequer do que teve na década de 1980.

O time joga num estádio acanhado. Por incrível que pareça, o Stadion der Weltjugend, no Jahnsportpark, onde jogava na RDA, foi desmantelado para dar lugar à sede da polícia secreta da Alemanha Federal. Hohenschönhausen é a parte de Berlim onde está o estádio que o Dynamo sedia seus jogos. O único apelido que a torcida suporta e que tem ligação com o passado é "recordista de títulos", graças ao decacampeonato da Oberliga. Hoje, o clube promove a si mesmo como "der etwas andere club" (algo como "um tipo diferente de clube').

Em um país em que o esporte era amador soa estranho falar em juízes comprados. Era o que se dizia na época para se justificar a predominância do Dynamo. O futebol da Alemanha Democrática não era, como já disse, comparável ao da Alemanha Federal. Por vários motivos. Um deles era o valor que se dava aos esportes olímpicos, que recebiam mais incentivos que o futebol. Dizem que os árbitros no lado oriental eram comprados com produtos agrícolas. Bananas caras. Laranjas que não se encontravam facilmente nos mercados. Mas quem os comprava? A Stasi? Eles não eram da Stasi? Por que se comprava quem já estava comprado? Essas questões são feitas por torcedores do Dynamo.

O esporte na RDA era visto como uma maneira de o indivíduo, em uma sociedade coletivista, se sobressair. Não existia ali a competitividade por um emprego que se vê na sociedade capitalista. Apesar dos problemas que o socialismo alemão apresentava, as pessoas viviam bem, sem precisar pisar no pescoço do vizinho para viajar na janelinha. Portanto, para o cidadão se transformar em uma figura nacional, era bom que tivesse talento na arte ou no esporte. Era assim que sobressaía.

Sendo assim, nos anos 1970 o Dynamo, que é um clube multiesportivo, reúne os melhores atletas de vários esportes em Berlim. Suas instalações são de ponta e atraentes para a juventude. Teoricamente deveria transformar essa qualidade em um atrativo para a população, teoricamente deveria ser "querido" por ela. Só que a história do futebol em Berlim é anterior à Segunda Guerra. O leste da cidade era a base da torcida do Hertha Berlin, que acaba ficando no lado ocidental, apartado de parte importante de seus torcedores.

Os torcedores não mudam de time de um dia para o outro. Como o Dynamo é uma construção artificial, é mais difícil ainda que se torne querido. E ainda mais em uma condição como essa: o time da polícia. O público do Dynamo oscila sempre nos 20 mil torcedores, que é quase a capacidade do antigo estádio em que jogava. E a razão disso é que as pessoas gostam de ver o jogo bem jogado.

Isso era algo muito comum no Brasil do passado, muita gente ia ao estádio para assistir um time jogar, mas não necessariamente torcia por ele. Aconteceu com o Dynamo. Entretanto, evidentemente, havia torcedores fanáticos. Que ainda hoje acompanham o time, com um saudosismo exacerbado do período de 1979 a 1988, quando o campeão da RDA era sempre ele. Ano após ano.

Andreas Gläser e Steffen Larisch são da velha guarda. Fanáticos há mais de 30 anos. Conhecem muito bem a fama do time e repelem a acusação de que o BFC não vencia de forma justa nenhum campeonato.

Steffen é um dos baluartes da torcida do BFC. É aposentado da construção civil e hoje se dedica a garantir a sobrevivência da associação. Usa óculos, é um escritor. "O BFC foi culpado pela construção do Muro" cita em um de seus trabalhos. Ele afirma que é, ainda hoje "um filho orgulhoso do proletariado".

Diz que em algumas ocasiões, apesar de ser comunista, tinha vontade de ganhar dinheiro na outra Alemanha. Só não deixava seu país por causa do Dynamo, seu grande amor. "Não", diz Steffen, "os campeonatos não eram dados pra gente. Bem, às vezes os árbitros deixavam o jogo rolar um pouco mais que os 45 minutos. Mas dizer que os jogos chegavam aos 55 minutos era mentira. Um clichê. Um dos muitos. Uma invenção da mídia ocidental".

Steffan admite que essa conversa sobre o BFC o deixa perturbado, o deixa triste, pois ele viu a lenda ser construída. Ele e Gläser acompanharam a longa trajetória do clube após a anexação, trajetória deprimente. A perda de jogadores da equipe, a impossibilidade de disputar a Bundesliga, por causa da voracidade ocidental e do "desejo de vingança", segundo eles, a dura e rápida transição de um grande para um pequeno, as quedas de divisão e a ausência de um futuro semelhante ao passado. Houve também a falência, a perda do distintivo.

Os dois e mais outras centenas de torcedores são vistos pelos mais novos como saudosistas dos bons tempos da RDA. O fato de que eles estão entre aqueles que viviam em melhor situação antes da anexação não significa nada para eles. "Bobagem", diz Steffan. "O desejo de viver novamente na RDA não foi maior entre os torcedores do Dynamo que entre aqueles orientais que sequer gostam de futebol. Eles também constataram a triste realidade que vivemos", lamenta.

O jogo mais lembrado, o episódio épico, a Odisseia, é a partida contra o Werder Bremen pela Copa dos Campeões da Europa de 1988. A partida de ida foi 3 a 0 para o Dynamo, para êxtase da torcida. A partida pode ser vista no YouTube. É um jogo épico, de fato. Pode-se ver que o Dynamo possuía um bom time, de qualidade. Alinhava Andreas Thom, Thomas Doll, Frank Pastor, Frank Rohde, Rainer Ernest. Tinha um excelente goleiro, na figura de Bodo Rudwaleit. Mais tarde, Thom e Doll jogariam pela Alemanha unificada.

O estádio estava lotado. Nas tribunas à frente das câmeras, percebe-se que boa parte do SED, o partido dirigente, estava ali. Funcionários do governo também. Muitos deles estavam no estádio apenas para ver o jogo. À esquerda, a torcida do Werder, com suas faixas e seus cânticos. À direita, a torcida do Dynamo. Com faixas, cânticos e gritos. Ambiente típico de uma partida de futebol.

Olhando para o nada, para além das arquibancadas, Andreas Gläser relembra com tristeza a partida de volta. Eles não puderam viajar para assistir o jogo em Bremen, apesar de alguns torcedores terem obtido permissão. Isto é algo que incomoda os dinamistas, pois os torcedores do Union, opr exemplo, tinham muito mais facilidade para acompanhar o time pela Europa que os do Dynamo.

O jogo em Bremen foi catastrófico, com um 5 a 0 que eles não esperavam tomar, jamais. Eliminação após a sensação de que vinha algo brilhante pela frente. Sensação de que era a vez deles. "Havia algo errado com a criação da equipe, o jogo foi muito estranho", lamenta Steffen. "Estranho", uma palavra que descreve a história do clube de futebol muito acertadamente.

Atualmente, lamentam o fato de o clube ser visto como de torcedores de extrema-direita. Isso justifica a presença de um forte contingente policial na partida contra o Union. Apesar da rivalidade, são dois clubes com torcidas não muito numerosas, mas com tradição de disputas violentas, principalmente nos últimos 25 anos.

Uma das coisas que mais marcam os torcedores é quando os dinamistas mais velhos começam a cantar canções da época da RDA, como os hinos da FDJ, a juventude comunista. "Muitas vezes, as pessoas riem das canções que cantamos", sorri Andreas Gläser. "Outros ficam zangados", completa.

O árbitro apita o final da partida e o placar é de 3 a 1 para o Union Berlin B. Os torcedores começam a recolher a bandeira gigante com o retrato de Erich Mielke. Outros colocam as bandeiras da Stasi, e do Dynamo, sobre as costas. Faixas são recolhidas. Os poucos torcedores do Union cantam enquanto deixam o estádio. Os jogadores do BFC Dynamo dirigem-se sem muita tristeza no rosto rumo ao vestiário. Afinal, trata-se de apenas um amistoso, e a quinta divisão da Alemanha está aí para começar.

Entre eles – e os torcedores – não há nenhuma ilusão de que o Dynamo Berlin é apenas um fantasma que reluta em desaparecer, ainda atormentado pelo estigma que os vencedores lhe impingiram. A luta de classes continua. Não existe mais entre alguns orientais o sentimento de que a Alemanha foi "reunificada", ou que a Alemanha Democrática foi libertada. O que há é uma sensação de que algo bom e ruim foi perdido e o que veio em seu lugar é infinitamente mais trágico.