Osório Alves de Castro, o romancista do velho Chico

O Brasil recebe, nesta sexta-feira (21), uma importante obra da engenharia nacional. Um novo trecho da transposição do Rio São Francisco, que deve estar totalmente finalizada em um ano, será inaugurado pela presidenta Dilma Rousseff. Esta obra vai contribuir para amenizar as consequências da seca no Nordeste brasileiro. Diante deste fato, Prosa, Poesia e Arte fará uma cobertura especial sobre a seca que por muito tempo foi tema de grandes obras e clássicos da literatura e da música nacionais.

Rio São Francisco - Eliz Brandão

Neste artigo o escritor e jornalista Carlos Barbosa* traz com excelência a obra do alfaiate e escritor comunista Osório Alves Castro.

Leia o artigo na íntegra:

O alfaiate estendeu o rolo de tecido do São Francisco sobre a mesa de trabalho. Mediu e cortou. Riscou na peça seus riachos e rios tributários, fazendas, povoações, eitos e capoeiras, fez cortes precisos da história e do perfil do seu povo; alinhavou, tendo em mente o preparo de um traje de gala incomum; recolheu e guardou na prateleira o rolo e as sobras com cuidados de mãe que tem mais filhos a vestir; e, ali, assentado em sua Alfaiataria Rex, costurou com engenho particular aquelas peças memoriais em um indiscutível monumento da literatura brasileira, Porto Calendário: “Firmo desavença devez por todas. Comigo não, minhocão. Tenho represadas na cabeça vozes e vozes confirmando, crescendo aqui no pensamento, como lagamá nas águas. Um dia nem queria saber… e da sua imaginação atormentada, o espetáculo soltava-se nos desabafos marcados pelo delírio, gesticulando e bradando.”

Ali pulsava e ainda pulsa, a fala viva de um povo desvalido, que o alfaiate Osório Alves de Castro deixara para trás no sertão baiano do São Francisco, antes de se firmar em Marília, interior de São Paulo. Entre um arremate e outro, o alfaiate remoia suas vivência e conhecença em anotações feitas em papeluchos retirados da gaveta. Causos que enredava seus romances, nos quais a poesia sempre ponteou.

“Sim senhor lhe digo: quando chega o ano novo as canelas-de-velho, no cocuruto dos altos, são como tigelas de louça branca. E vão como uma contagem, caminhando no tempo, amarelado, encardindo até sumir. É só olhar”.


Construído em duas partes, o romance sumariza em linguagem preciosa de vivente da terra e bebedor das águas do velho rio, o distorcido mundo comum, a movimentação do povo de Santa Maria da Vitória, banda de lá do rio São Francisco, porto do rio Corrente, nesta nossa antiga Bahia, às portas do século 20.

“A barra do dia já clareava o vulto das benfeitorias. Pesadas, as embarcações com os ventres arredondados, pareciam grandes peixes mortos estirados na ribanceira.”



Perplexidades

As histórias se sucedem, uma puxando a outra, tendo o lenhador Pedro Voluntário-da-Pátria como guia sensível e cru. Um homem desprovido de bens, até mesmo de um nome de família. Ganhou o seu no alistamento para a guerra do Paraguai, onde lutou e de onde voltou repleto de cicatrizes e mínimas glórias. Pai de muitos filhos esfaimados, Pedro Voluntário arrasta suas dores e perplexidades aos brados: “porque tenho afirmação: vem dos antigos sem rodeios”. A mesma afirmação que fez de Osório o escritor da saga ribeirinha.

Dos feixes de lenha pra vender na rua à construção da grande barca “Século Vinte”, acompanha-se também com Pedro as tramas políticas e jurídicas dos poderosos da região e conhece razões e pecados de personagens únicos como João Imaginário, Bê Martins e Tia Gatona que abriga e prepara jovens desamparados para a migração, coisa que os grandes fazendeiros tentam impedir por considerarem “fujança”.

“O sertão é como a onça. Pode amansar, não fazer conta das unhas e das presas e viver como um gato de casa ou cachorro de colo. Mas se se espanta!”.

Preciso em sua crítica social, Osório veste de “Liberdade” a filha de Pedro Voluntário, Aninha, e a faz desfilar pelas ruas da cidade em festa cívica, para depois ser estuprada no escuro da noite pelos filhos dos coronéis. E nos miolos do velho Pedro:


“Gosto de falar consigo, machado, olho a olho. Veja só: velho como eu. O esmeril é como a fome; nos rói e prostra. Você é meu amigo. Lustro no seu aço luz da olhada dos meus. Vou lhe falar: quando acabou a guerra fiquei só. Disseram: deixe a espingarda e vai para sua terra. Antes o batalhão passou diante do Imperador Pedro II, lhe juro: o riso da princesa não era tão inocente como o de Aninha, minha filha”.
 

Osório Alves de Castro migrou para o sul do país nem bem completara 21 anos, mas carregou consigo aquele rolo de tecido sanfranciscano, verdadeira enciclopédia de vozes e quadros existenciais. Rolo de tecido que baixou da prateleira mais vezes para escrever dois romances: Maria fecha a porta prau boi não te pegar (Editora Símbolo, 1978) dedicado à bravura da mulher barranqueira, encarnada em Maria e sua inusitada trajetória: oleira, candidata a conselheirista, santificada na tragédia pessoal em Juazeiro e líder de uma revolucionária comunidade ao retornar à terra natal; e Bahiano Tietê (EGBA, 1990), que retoma personagens do primeiro livro e aborda o drama do baiano que migra para o sul do país. Neste livro, Gey Espinheira viu condição de
“romance de identidade nacional, o encontro de um povo na imensidão e no tempo”.

Porto e Rosa

Porto Calendário estava pronto no início dos anos 1950. Seus originais foram reescritos em várias ocasiões por conta das apreensões que a polícia fazia, na alfaiataria de Osório, de material considerado subversivo sempre que o arrastava para a delegacia. Osório era comunista militante. E sua alfaiataria era ponto de encontro e prosa tanto de escritores quanto de membros do Partido Comunista. É possível apontar a leitura de Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, lançado em 1956, como provável vetor que impulsionou o alfaiate a se tornar público escritor. Osório escreveu uma carta, em março de 1957, a J.Herculano Pires tratando do livro de Guimarães Rosa. Essa carta foi publicada na edição de novembro daquele ano na revista Diálogo.

Na carta, Osório disse ao amigo:

“O São Francisco é uma liberdade. Agora que o mistério vai se desbulhando, e entrega as suas reservas à linguagem de um romancista, ficamos maravilhados ante esta peleja de medir o universo. (…) Nasci na mesma região, ouvi dentro de minha casa, a subversão da semântica fazendo as conversas como se cavaca nos troncos dos cedros e dos tamboris, o oco das canoas. Decifrando o destino e ranzinzando contra a tristeza, nossa imaginação esparrama-se na terra como as águas da enchente. (…) Riobaldo foi como o rio na enchente. Avançou, tomou as várzeas, engoliu baixadas, rodeou os morros, até que as chuvas cessaram nas cabeceiras. Os marimbus esvaziaram-se na liquência dos buritis. No meio da terra enxuta da lama seca e do mato ralo, Riobaldo virou lagoa.”


E anunciou ao encerrar:

“Como você sabe, venho há vinte anos, com minha incapacidade, procurando reunir, a meu modo, o que sei das coisas de lá. Senti uma ajuda agora com a coragem e a inteligência de J.Guimarães Rosa”.


Guimarães Rosa tomou conhecimento da carta de Osório antes de sua publicação. Em agosto de 1957, em carta a Paulo Dantas, não deixou por menos:

"A espantosa, a estouradora carta, mensagem dos cem mil cavaleiros: aquilo é o sertão do São Francisco, nosso, inteiro, despejando gente célebre, e lugares enrolados, tudo com os respectivos foguetes, tiros, relinchos de cavalos: a carta de Osório Alves de Castro”.

E ao próprio Osório endereçou apelos, em carta de fevereiro de 1958:

“Espero seu livro, o Porto Calendário. Há de ser irrupção e benção, tumulto fecundo, rajada de chuva”.

 

Guimarães Rosa registrou em carta a condição humana que os unia, tratando Osório por
 
“companheiro proclamado, amigo ‘prévio’…mano-velho sãofranciscaníssimo, barranqueiro”



J.Herculano Pires destrinçou bem o vínculo entre eles:

 

“Osório sai de Guimarães, não porque aprendeu dele, mas porque atravessa as suas páginas, vindo de bem antes delas”.


Porto Calendário veio a lume em 1961, pela Livraria Francisco Alves, e recebeu o prêmio Jabuti de melhor romance do ano. Rendeu também ao autor uma curta notoriedade: aparições na televisão, palestras e até viagem a Moscou.

Eliana Pestana, em sua dissertação de mestrado (Unesp/Assis/2004) sobre biografia e fortuna crítica do escritor baiano, que alimentou bem esse texto, revela que Osório deixou prontos dois originais de romances, escritos em seus últimos anos de vida: Nhonhô Pedreira e A cidade do velho. Nascido oficialmente em 17 de abril de 1901 – teria chegado ao mundo em 1898 – Osório morreu em 9 de dezembro de 1978.


Osório Alves Castro | Foto: Arquivo 


A voz de Osório Alves de Castro é como a água do velho Chico: por mais que tentem impedir, sempre reponta dizendo: “presente”. Eu deveria ter lido no ginásio, lá em Ibotirama, ou no colégio, aqui em Salvador, o Porto Calendário. Mas somente provei da prosa osoriana dois anos atrás, bem depois de ter lançado meu primeiro romance. Mais que espantoso, isso é um absurdo engendrado pelo silêncio que cobre o sertão baiano em todos os círculos do poder. O sertão existe, está dentro de nós, mas depois que calaram Conselheiro, Horácio de Matos, Lampião e o apito a vapor, tem estado quieto feito onça amansada. Mas o sertão continua lá, onde sempre esteve, a corroer nossa alma.

Códigos

Os romances de Osório Alves de castro expõem o drama existencial do sertão baiano do São Francisco com uma linguagem rica, encantatória e prenhe de belezas terríveis. São livros destinados a quem busca contato com os códigos genéticos de nossa história campesina e de sua linguagem única, preservada no tempo por séculos de isolamento; e a quem busca enriquecer e maravilhar seu mundo interior com episódios arrebatadores da verdadeira história da nossa gente. Não é possível encontrá-los em livrarias. Mas em sua terra natal, Santa Maria da Vitória, a memória de Osório e sua obra tem um defensor ferrenho em Joaquim Lisboa Neto, responsável pela Casa da Cultura Antônio Lisboa de Morais (casacultura.alm@bol.com.br). Lá é possível encontrar – ao lado de fotografias e documentos – exemplares dos romances de Osório para comprar, inclusive por via postal.

Barranqueiro, autodidata, alfaiate de profissão, Osório Alves de Castro publicou apenas um livro em vida. Experimentou solidão, glória e esquecimento. Mas escreveu até próximo do fim. Penso que o espírito que sempre o moveu, foi sintetizado por Osório ao criar a etiqueta da sua alfaiataria, com versos , em italiano, de D’Annúnzio, traduzidos como:

“tudo ambicionei/
e tudo tentei/
aquilo que não consegui/
eu sonhei”.