Humberto Scavinsky: Dynamo Berlin, ou o time do inferno 

No estádio modesto da zona leste de Berlim, capital da Alemanha, torcedores se agitam para assistir a mais um jogo de futebol. No canto direito da arquibancada principal descansa uma bandeira gigante, de fundo vermelho com o retrato de Erich Mielke. Torcedores agitam bandeiras da Stasi. Amarrada no alambrado, uma bandeira branca com um dístico circular azul contém as bandeiras da Alemanha Democrática e da União Soviética.

Por Humberto Scavinsky*

Berliner FC Dynamo

Não, apesar de tudo isso não voltamos no tempo e não estamos na Republica Democrática da Alemanha. O ano é 2014 e o jogo envolve dois arquirrivais: O BFC Dynamo, outrora poderoso, e o segundo quadro do Union Berlim, que outrora sofreu nas mãos do Dynamo e hoje… bem, hoje desconta todo seu ódio pela freguesia em doses nada homeopáticas de gols. Há alguns anos, o time principal do Union enfiou um 8 a 0 no recordista de títulos da Alemanha Democrática e seguiram-se goleadas vexatórias nos cada vez mais raros encontros entre os dois clubes.

Na imprensa ocidental o Dynamo é o time do Inferno. A frase que mais lemos ao pesquisar sua história é "o time mais odiado". É um mantra. Dos bons aos maus jornalistas, o time é descrito como o time da trapaça. Aquele que nunca venceu uma partida jogando bola. Sempre venceu com o apoio do juiz. Caso preciso fosse, o juiz daria mais dez ou sei lá quantos minutos para o Dynamo fazer o gol de empate ou o da vitória.

Mas… foi assim mesmo? Alguém, algum dia, se perguntou se todas essas histórias eram de fato verídicas? Meses a fio vasculhei a internet para encontrar informações que pudessem mostrar o outro lado da moeda. Não esqueçam que faz parte da história do jornalismo capitalista esculhambar qualquer coisa que faça parte do mundo socialista, portanto, não há que esperar outra coisa dos meios de comunicação que não sejam más referências.

 

A história começa com a fundação na RDA da Sociedade Dynamo, no ano de 1953. Um clube nacional, tendo sede em diversas cidades, e que proporcionava a seus associados a prática de quase todos os esportes. Um deles era o futebol e seu expoente, naqueles dias foi a seção de Dresden do Dynamo.

O esporte na RDA segue uma estrutura semelhante à criada na União Soviética antes da Segunda Guerra. Sindicatos, categorias profissionais, setores da produção, da segurança, do comércio, todos eles tinham seus clubes. O Dynamo, como na URSS e nos outros estados socialistas, pertencia ao Ministério da Segurança do Estado, a famosa Stasi (diminutivo de Ministerium für Staatssicherheit – MfS). Era o time da polícia, da agência de Segurança, das milícias populares. Era assim na URSS, na Romênia, na Alemanha e na Iugoslávia.

O Dynamo Dresden alcança a glória em 1953, quando conquista a Oberliga pela primeira vez. Em Berlim, o time que se destaca é o Vorwärts, o time das Forças Armadas. Como em todos os países da Europa, o futebol galvaniza as atenções. Não poderia deixar de ser diferente na RDA. A diferença é que no lado socialista o futebol é reorganizado sob bases amadoras. No lado capitalista, o profissionalismo acontece na década de 1960, apenas.

Erich Mielke, que ilustra o bandeirão desfraldado no acanhado estádio do Dynamo, é o chefe da Stasi. Ascende ao cargo em 1958 e fica nele por 32 anos. Como outros alemães, adora futebol. Mas não tem time para torcer em Berlim. Há o Vorwärts, mas é time do Exército. Tem também o Union, mas o time pertence à juventude comunista da Alemanha e é dirigido por membros do SED. A solução que o ministério encontra é trazer para Berlim a equipe do Dresden, o que causa – naturalmente – tristeza e mágoa entre os torcedores. Mas é preciso lembrar que os jogadores dinamistas são, antes de tudo, funcionários do Ministério da Segurança do Estado. Para eles seria honroso servir o MfS na capital do país.

Antes da chegada destes jogadores, a polícia berlinense já tinha um time de futebol. O predecessor do Dynamo foi criado em 1949, como o time da Polícia Popular, o Sportgemeinde Deutsche Volkspolizei Berlin. Em março de 1953 o time ocupou o lugar do SC Volkspolizei Potsdam na segunda divisão do país, a DDR-Liga. Os dois times foram oficialmente fundidos em 27 de março de 1953 e passaram a jogar como seção do SV Dynamo, com o novo nome de SG Dynamo Berlin. Rebaixado para a terceirona na temporada de 1953-1954, o clube foi rebatizado Sport Club Dynamo Berlin, em outubro de 1954.

Nesse mesmo ano, o MfS determina que os jogadores de Dresden se mudem para Berlim, para fortalecer o Dynamo Berlim. Curiosamente, jogadores como Johannes Matzen, Herbert Schoen e Günter Schröter acabam voltando para a cidade. Eles tinha ido para Dresden justamente para fortalecer o Dynamo de lá e reocupar o espaço que pertencia ao time da burguesia local, o Dresdner SC.

Terminando os campeonatos do fim da década de 1950 nas três primeiras colocações, mas sem conquistar título, o Dynamo vai bem até 1963, quando começa a titubear, enfraquecer e finalmente cair para a segunda divisão em 1967.

Pouco tempo antes há uma reformulação no futebol do país e o clube dá lugar, em 15 de janeiro de 1966, ao Berliner Fußball Club Dynamo, nome que carrega até os dias atuais. Depois de um ano na segundona, volta em 1969 e começa a preparar o que viria a ser o melhor time de futebol no lado oriental da Alemanha.

Essa reformulação cria no país algo que existe até hoje e que, de uma forma indireta, contribuiu para a vitória da seleção germânica na Copa do Mundo de 2014 no Brasil. O famoso e vexatório 7 a 1 tem raízes nos centros especiais de formação de futebolistas da SV Dynamo, espalhados por toda a RDA. Os centros contribuíram para gerar jogadores de ponta para o futebol do país e, apesar da fúria privatista alemã-ocidental que não poupou quase nada da RDA, foram conservados e copiados pela Bundesliga, pois estavam muito à frente do que existia na então República Federal Alemã à época da anexação – vulgo "reunificação" – da RDA.

O clube que mais se beneficiou destes centros foi o Dynamo Berlim. É assim que forma a equipe que, de 1978 a 1987 termina com a medalha de ouro no peito em dez ocasiões. Sim, o time foi decacampeão da RDA. E isso significa hegemonia, o que traz antipatia – por fim, ódio – dos adversários. E, junto com o ódio, vieram as lendas.

A mais famosa é a do pênalti contra o Lokomotiv Leipzig. O time dos ferroviários vencia a partida por 1 a 0 e o "time da trapaça" foi ajudado pelo juiz no último lance da partida, aos 50 minutos da partida. Juizão apita pênalti pro time da polícia. Escândalo. Dizem que o jogador caiu sozinho. Pênalti convertido e, duas rodadas depois, o Dynamo é eneacampeão alemão. Dizem que o caso repercutiu no país, que a cabeça do juizão rolou. No entanto, anos depois uma emissora de televisão alemã entrevista os envolvidos na partida. Mostra cenas do jogo e, pasmem, mostra justamente o lance que originou o gol de empate dinamista.

Tudo que é mostrado desmonta a teoria da conspiração que se desenvolveu a partir daquele lance. O pênalti existiu, caro leitor. O zagueiro da equipe dos ferroviários alemães empurra um atacante do Dynamo, enquanto a bola viaja sobre as suas cabeças. Quando ela cai, em seguida, é tocada pelos braços do zagueiro. O lance lembra a "manchete" do voleibol e é tão claro que, mesmo com a baixa qualidade do vídeo, percebe-se com clareza a falta.

Veja o vídeo, a partir de 40 segundos:

Os centros formadores, ou o que chamamos de "categoria de base", criaram grandes jogadores para o Dynamo. A lenda diz que a Stasi trazia para o Berliner Dynamo os melhores jogadores do país, mas basta consultar as biografias dos jogadores para perceber que as transferências eram normais. Thomas Doll deixou o Hansa Rostock, que havia acabado de cair para a segunda divisão, para jogar no Dynamo, porque era um clube vitorioso.O clube dava apartamento, carro, destaque na mídia, tudo que um atleta de ponta desfruta. Menos salário milionários ou fortunas em contratos.

Estamos acostumados a ver transferências de jogadores por dinheiro, só que na RDA o futebol – como os demais esportes – não era profissional e o jogador deveria ser contratado pela organização que mantinha o clube, sendo assim, todos os jogadores do Dynamo eram "agentes da Stasi". Andreas Thom, um expoente da fabulosa equipe do final dos anos 1980, foi acusado de ser agente da Stasi. Thom foi revelado nas categorias de base e com a anexação da RDA acabou sendo contratado pelo Hamburger, de Hamburgo, junto com outra estrela da equipe, Frank Rohde. O Dynamo Berlin não obteve nenhum lucro nessa transferência.

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No próximo artigo serão tratados os títulos do Dynamo Berlin, seus grandes jogadores, jogos históricos e a tragédia que se abateu no futebol do lado socialista após a anexação da RDA pela Alemanha Federal.