Entre o fractal e a profundidade: a poesia de Cláudio Daniel

Claudio Daniel é o pseudônimo de Claudio Alexandre de Barros Teixeira nascido em 1962 em São Paulo, onde se formou em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Libero. Atualmente é mestre e doutor em Literatura Portuguesa pela USP.

Por Rafael Walter, para o Vermelho

Claudio Daniel - Arquivo pessoal

Sua bibliografia como poeta é composta por: Sutra (edição do autor, 1992), Yumê (Ciência do Acidente, 1999), A sombra do leopardo (Azogue editoria, 2001), Figuras metálicas (Perspectiva, 2005), Fera bifronte (Lumme, 2009), Letra negra (Arqueria, 2010), Cores para cegos (Lumme, 2013), Esqueletos do nunca e Cadernos bestiais, volume I (Lumme, ambos em 2015).

É responsável pela tradução de vários autores latino-americanos: José Kozer (Cuba), Eduardo Milán e Victor Sosa (Uruguai), Reynaldo Jiménez (Argentina), León Felix Batista (República Dominicana), os quais se encontram em antologias organizadas e traduzidas por Caudio Daniel. É também um agitador cultural e editor da revista virtual Zunái. Atualmente é professor de Literatura Portuguesa e colunista da revista Cult. Lançou dois livros de poesia no primeiro período de 2015, Esqueletos do nunca e Cadernos bestiais, ambos pela Lumme Editor, com capa, design e projeto gráfico de Francisco dos Santos.

Esqueletos do Nunca

Esqueletos do nunca reúne 54 poemas breves composições poéticas de dois a cinco versos, as quais levam títulos que colaboram para a compreensão do texto. O conjunto de poemas havia sido publicado em 2012 no site musarara.com.br, dedicado à memória de Wilson Bueno, e também na Revista Desassossego.

A epígrafe do livro é do autor francês Henri Meschonnic e dá ao leitor uma vaga ideia do que irá se sucederá durante a leitura: “Este livro é constituído por suas obsessões”, ou seja, um livro a ser lido/(re)construído diretamente pela obsessão do leitor.

Logo de entrada, num tom lírico, Claudio Daniel evoca o espírito do Carpe diem em seu poema Confissão: “No apodrecer de mim, caranguejos copulam em minhas órbitas”. Pode-se contemplar neste texto a fusão do poeta à natureza, numa unidade concisa de quem acerta um verso em cheio, como um gol de meio de campo, ou como a paisagem de um bonsai florido. Ao final deste poema há a referência a “(Mademoiselle Mélancolie)”, como uma assinatura do poema, uma espécie de heterônimo do poeta.

No poema Óbvio: “O desprezo ao óbvio de anúncios, epitáfios, crônicas, bilhetes,/ memorandos, maus poemas, sociologias, cartões-postais”, o poeta assume a condição de desprezo, de sujeito fadado à margem, como já anunciara Baudelaire ainda no século 19.

Há em seu texto uma consciência do jogo de preto e branco proposto pela construção do poema, através de sua concepção do verso na página, como assinala no poema Pessanha II (p. 24) último e penúltimo verso: “A página em branco rasura minha completa falta de imaginação”. A imaginação veiculada a musicalidade e a imagem é o que guia a construção de seu texto, o qual não se resume a palavra no papel, mas ultrapassa os limites da página.

Autorretrato demonstra um processo de introspecção em que o poeta reconhece seu caráter polivalente e multifacetado: “Funambulesco, funâmbulo, volantin, burlantin, volteador,/ aramista, equilibrista, fazedor de bicos.” Neste poema o autor realiza uma autorreflexão de seu fazer poético.

Ariadne I, II e III são um exemplo de três poemas que formam uma sequência, a qual não necessariamente foi concebida cronologicamente, o que caracteriza o árduo trabalho do escritor de colocar ordem no caos. É um poema composto em três tempos não sequenciais cronologicamente datados dos anos de 94 – 84 – 87, o que demonstra a circularidade do tempo e da poesia.

Paisagem é um poema no qual há predomínio da logopeia, podemos observar que a dança das ideias é de fato o poema, não há necessidade de mais palavras: “Flores amarelas. Sentado no banco do jardim, vejo a dança das/ três meninas e não escrevo nenhum poema. / (Num setembro qualquer)”. O silêncio da contemplação é a própria poesia neste instante de miragem.

A reflexão de Mallarmé da composição do poema, da colocação do verso e do uso do branco na página reaparece no poema Onde: “Onde o verde da palavra, onde o asco da palavra, caranguejo/ devora o espaço em branco da página. / (?)”. Pode-se notar nestes versos a ânsia pelo jogo de branco e preto na construção do texto.

Seu eu-lírico assume a perspectiva de um cão, assim como el perro de Maldoror chafurdando entre as palavras e ideias encontra a poesia no poema Difração (p. 48): “Difração é o tempo em que viajamos entre palavras e coisas,/ memórias e ressentimentos. Nossos focinhos avançam para além/ dos retratos e nada encontramos além de fungos, fiapos e fêmures.”

A poética de Claudio Daniel neste livro pode ser descrita pelo seguinte poema “volume e cor (…)”: “Navega-me, hidrófoba, acende linhas e planos com a paleta/ da língua; coxas expandem-se, laboriosas, quando tudo é pele,/ volume e cor, quando tudo é estrondo./ (Do Diário sentimental)”.

Estes versos levam à reflexão de que a poesia não é somente a palavra impressa, mas os sentidos que esta possibilita ao leitor em seu processo de descoberta no emaranhado de signos.

O livro é encerrado com dois intertextos-referências ao poeta César Vallejo e a Rimbaud. A proposta deste livro é a montagem de um quebra-cabeças poético, o qual pode ser visto como um mosaico e numa perspectiva caleidoscópica de decifração o leitor se vê em cheque a todo o momento na busca da significação do texto.

Cadernos Bestiais vol. 1

Cadernos bestiais é dividido em três partes: Infernais Fungos-de-Papiro, (Intermezzo) e Fabulação de outra margem. O livro, que reúne dezenove poemas de Claudio Daniel, tem por epígrafe o poema Sobre um leão chinês de raiz de chá de Bertolt Brecht, na tradução de Haroldo de Campos: “Os maus temem tuas garras/ Os bons alegram-se com teu garbo./ O mesmo quero ouvir/ de meus versos.”. O poeta dedica seu livro “ao desconhecido/ que sempre muda tudo.”

Este conjunto de textos tem por temática o rechaço ao golpe de 64, a ruptura ao normativo e à mídia. Este livro me faz recordar um graffiti manifesto numa parede argentina da cidade de Medonza: “La prensa es de ellos/ las paredes son nuestras”.

Infernais Fundos-de-Papiro traz poemas em sua maioria não-versificados e se encerra com um poema em prosa.

O poema Anônimos se inicia com o verso: “Há um louco solto na rua.” e se encerra com o verso: “(Poucos são os capazes de ler as mensagens ocultas no interior das nozes.)”. Uma possível leitura do poema é que o louco solto na rua é o próprio poeta que mescla a épica e o aforismo alternando isto através do uso de parênteses.

Antimídia II é um poema no qual encontramos os versos que dão título a esta parte do livro, neste poema o autor dialoga com a mitologia egípcia através da figura de Anúbis, deus da morte. O poeta critica São Paulo, cidade onde vive, através dos seguintes versos: “Esta é a cidade esfíngica / onde a desrazão / navega a insanidade. / Porco burguês. / Porca burguesa. / Chafurdam na mídia pré-histórica, / colecionando cifras. Onde, nesse caos aritimético, / há lugar para o infinito?”. Os dois últimos versos se repetem como uma espécie de refrão do poema.

Antimídia III pode ser visto como uma critica a metrópole e ao império burguês midiático, comandado por interesses mesquinhos. Este poema se encerra com os seguintes versos escatológicos: “Tua face, deserto em miniatura./ Tua voz, imagem-terracota./ Tuas mãos, alfabeto do escarro.”

No poema Antimídia IV há a criação de uma metáfora muito bem estruturada sobre a televisão denominando-a como “máquina/ para a produção do medo”, e encerra o poema reconhecendo a raiva produzida pela sociedade de classes. A voz da mídia a qual o poeta se refere neste poema é uma voz de uma boca costurada e desumanizada pela alienação que ela mesma gera.

Atimídia V é um poema dedicado às vitimas da tortura do Golpe de 64, como uma marca temporal dos 50 anos do fato que desnorteou o país e reprimiu a criação artística e o pensamento político, social e filosófico. O poeta se refere a legião dos que sofreram este duro período da história política brasileira.
Em seguida temos o poema Antimídia VI, o qual figura como uma manchete, ou um lembrete afixado na parede do tempo: “Jornais apoiaram a ditadura militar”.

Antimídia VII leva por subtítulo a mensagem entre parênteses: “macumba poética”. Neste texto o poeta realiza uma profecia patológica sobre “O Apresentador do Grande Telejornal”, figura central sobre a qual o poema é desenvolvido. Em Antimídia VIII o poeta apresenta “A Colunista do Grande Jornal Diário”, personagem que padece da ignorância midiática, que produz a “Massa mal-cheirosa,/ escura, ignara, que nunca leu Plínio Salgado,/ Afonso Arinos, Fernando Henrique Cardoso”, massa manipulada a qual vive a espera da “Vinda do seu Fühner”.

Antimídia X é uma prosa poética visceral que encerra esta parte do livro, um texto sem vírgulas somente dotado de ponto final. Através do elemento dramático, da representação da realidade ao extremo o poeta leva seu leitor refletir sobre a lucidez humana: “quando garotos racistas de São Paulo ateiam fogo na/ mendiga refugos de rastilhos de rebotalhos neste açougue onde repartem carne humana/ Tíbias são dejetos olhos são dejetos orelhas são dejetos nesta terra de ninguém que a/ terra há de comer”.

(Intermezzo) é composto de um só poema Cabeça de Não, onde aparece a verve metalinguística de Claudio Daniel já nos versos finais: “por isso –/ o poeta desafia –/ por isso –/ o poeta desafina –/ se alinha –/ junto a esses –/ e a essas –/ por isso –/ por aquilo –/ por tudo –/ por nada –”. Nestes versos o poeta realiza um canto de batalha e demonstra ao leitor a dualidade de sua trincheira poética no constante jogo de absoluto e vazio.

Fabulação de outra margem é a última parte do livro composta pelo poema Cantiga e por outros poemas curtos que não levam título, os quais também podem ser compreendidos como componentes de Cantiga, o qual tem por epígrafe versos de Tristan Tzara.

Este poema pode ser considerado o que mais explora o aspecto visual do texto, antes mesmo de anunciar que “Um minúsculo leão branco habita sua fenda.” o poeta constrói a fenda metafórica graficamente através de duas linhas tracejadas e a enche de gozo através da palavra.

Ambos os livros são curtos e de acessível leitura, a grande maioria dos poemas está na rede para o acesso do público. A escolha vocabular de Cláudio Daniel é minuciosa e a partir da criação deste universo poético próprio o poeta desafia seu leitor a imersão neste oceano de signos, onde o prumo está em suas mãos.

Referências
Daniel, Claudio. Esqueletos do Nunca. São Paulo. Lumme Editor, 2015.
Daniel, Claudio. Cadernos Bestiais, vol. 1. São Paulo. Lumme Editor, 2015.