Urariano Mota: Apresentação do Recife 

Manuel Bandeira, no fundamental poema Evocação do Recife, declara trazer de volta um Recife sem história, um Recife que era feito apenas pela infância do poeta, pelo que declara.

Por Urariano Mota*, especial para o Vermelho 

Colunista da Rádio Vermelho concorre ao Prêmio Oceanos 2015

“Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
— Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância…”

Como poderíamos contestar a poesia? Seria como uma absurda luta contra uma estrela, pela vida inteira. Na verdade, na construção dos versos de Evocação do Recife, a história referida pelo poeta é a história dos livros didáticos e escolares, daquela história dos grandes feitos, dos grandes personagens e heróis, dos grandes nem sempre grandes, mas sempre disformes e ausentes de humanidade. Enquanto fala “o Recife sem história”, o poeta afirma a sua história particular, de um tempo ressuscitado pela evocação. Ou invocação do que parecia perdido, do que mais sentimos.

Como seria bom evocar e invocar, mastigar, beber, respirar e acariciar o Recife.

Os mortais comuns somos consolados pela salvação de que, se não possuímos a felicidade da poesia de Bandeira, também temos uma história do Recife, e não somente a história que temos vivido, mas a do sentido de dar voz a um Recife que amamos, e que tem nesse amor também uma história, um registro digno de ser gravado, pois tudo é histórico, até mesmo aquilo de que não nos damos conta. E por isso a contamos, à maneira de cantar.

O Recife tem várias cores e tons. O Recife tem várias estações em um só dia. Quando eu ia para o trabalho no centro da cidade, por força de mudança de turnos dos expedientes pude ver o Recife em diferentes horários. Então eu me dizia que o Recife também tem vários turnos. Óbvio, burro, ou mais óbvio e mais burro eu então estava. Hoje corrijo aqueles turnos para os diferentes tons e estações da cidade em um só dia. Assim é. Pela manhã cedinho, mas antes do sol luminoso, antes de escancarar sem pudor o seu dia, antes do aborrecimento das oito horas, quando sobem calor e agitação nas ruas, antes do burburinho de vozes e buzinas e sons de carrocinhas de CDs com os últimos sucessos que não se divulgam nas rádios, antes dessa necessária hora, por volta das seis da manhã o Recife é uma cidade que se olha em ruas quase desertas, mas não como uma cidade vazia.

Às seis, quando se ergue a pleno ver, sem risco de esbarrar em pessoas ou de bloquear a passagem de outras, o centro do Recife é de uma cidade de sobrados, de casarões do século passado, dos séculos dezoito e dezenove, que antes não se notavam. Nas ruas da Imperatriz, Nova, Direita, da Praia, do Rangel, lembro bem, vi uma vez o que era impossível ser visto na agitação das horas adiante. Na Rua do Rangel número 99, no primeiro andar se pendurava uma placa. Nela, a concordância verbal era um detalhe plástico:

“Aluga-se quartos para casal
Entrada e saída para casal
Aluga-se quartos para rapaz
Hospedaria Santo Antonio
Amor só para nós dois ao vivo
Deus proteja esta casa”

Mas a partir das oito, e num crescendo até o meio-dia, a cidade é muita gente na altura do rosto. Mal se vê o que ela esconde em edifícios e solidão, só os rostos. Mesmo quando entramos em uma loja e perguntamos, à procura daquela fresca lavanda de 1958, naquelas lojas que vendem de tudo na Imperatriz, e como se tentássemos recuperar um sonho, e como crianças descrevemos a busca com as palavras “é uma lavanda muito famosa, muito perfumada”, e a vendedora, coitada, nos olha de cima a baixo, e só vê um homem aflito e náufrago, mesmo aí a gente do Recife, por ser grande o tumulto e a luta para ganhar o pão, urgente desde ontem, apenas não mostra um rosto claro e preciso, como antes, no nascer do dia. Mas ainda assim as vendedoras nos acolhem, de outro modo, pela voz, pelo impulso generoso de ajuda, pela simpatia até o limite da inconveniência, santa, bendita e enganosa inconveniência:

– Olhe, o preço é tanto, mas para o senhor eu faço mais barato.

Por que para mim, ou para nós, nem perguntamos, porque fomos eleitos como os caras preferenciais. E continua a vendedora:

– Olhe, eu não posso fazer isso não, mas vou fazer.

E por não nos agradar o retórico desconto, eis que acontece o melhor. Naquela sinceridade que pode lhe custar a perda do emprego, ela nos fala num sussurro:

– O preço aqui tá muito caro. Nas lojas da Rua das Calçadas é mais em conta.

E assim agradecidos vamos.

Em alguns bares no Mercado Público da Boa Vista, existem donos que nos veem o cliente trazer a bebida de casa, e fazem de conta que nada veem, porque, sábios, por experiência sabem que gastaremos muito mais e com mais afeto. Nessa estância e lugar o Recife é a sua gente. O melhor do melhor do melhor. Eu seria capaz de tomar todas as páginas com a cara dessa gente. Com esse povo que é sempre o melhor da cidade.

No outono, quando a tarde morre, e com ela a esperança de que o dia fosse único para vencer toda carência e ambição, eis que a cidade renasce para a noite. Não sei bem se à noite é a primavera numa cidade de tanto calor. Mas a temperatura refrescada pela brisa termina por ser um renovado verão. É encantador. O melhor da noite da cidade é a sua juventude, toda ela, muito experiente pelo que ela mesma se quer e exibe, na força dos seus longos 20 ou 25 anos. Ela, a cidade, a juventude, está nas livrarias, teatros, cinemas e bares. Nestes, falar alto, descer às mais íntimas e vexatórias confissões se faz antes que o álcool das 22 horas suba.

– Fale baixo, fale baixo – ouvimos na mesa vizinha.

– Menino, eu num tou dizendo o nome dela não, tá ligado?

Sim, estamos todos ligados com o ar mais sonso da noite. Essa gente do Recife, essa encantadora gente do Recife, essa gente provinciana e cosmopolita do Recife, às vezes mata a gente de emoção e ternura, de um carinho que rasga o solo como uma flor no asfalto duro. Esse povo tem um rasgo natural de decência que é contra até a própria necessidade, quando em estado natural de pobreza. E de tal modo, que nós, metidos a generosos, mas que pensamos duas vezes antes do abandono ao coração, nos surpreendemos e ficamos tontos. Como a generosidade de um vendedor de graviola na cidade, que eu vi oferecer o suco da fruta a uma turista e se negou a receber o pagamento. “Não, é um presente pra senhora, que não conhece o sabor da fruta”, ele respondeu. Como a de amigos que emprestam parte da sua biblioteca, construída em muitos anos , a escritores de dicionários. Assim, desse modo agiu o professor de história e pesquisador Givaldo Gualberto para que eu escrevesse o Dicionário Amoroso do Recife.

Este é um Recife, em resumo, que está mais em seu povo que em todos os monumentos, pontes, rios e edifícios. Este é o Recife que visto de cima, no avião que chega, acende um calor, uma alegria e uma felicidade sem palavras, somente fogo íntimo. “Estamos de volta, Recife”, suspiramos em silêncio, e pouco importa se estivemos fora um mês, um ano ou dois dias. Quem é do Recife, quem já viveu no Recife, quem passou um tempo no Recife, sempre dirá: eu tenho um caso pessoal com esta cidade.