Peões do tráfico de escravos

A escuna de guerra inglesa Fair Rosamond adentrou o rio Benim e começou a atirar em um navio negreiro ancorado. Foi um salve-se quem puder. O capitão Antonio Gomes da Silva pulou na água do jeito que estava: foi preso completamente nu, agarrado às correntes do leme. O mesmo aconteceu com João Batista Cezar, chefe dos traficantes no local, detido sem roupas enquanto nadava rumo à praia.

Por Marcus J. M. de Carvalho*

Bilhete encontrado em navio negreiro - Arquivo Nacional de Londres

Não era a primeira vez que os ingleses capturavam um navio negreiro no litoral africano. O surpreendente, nesse episódio ocorrido em 1837, foram as circunstâncias: eles chegaram sem aviso e atirando, o que permitiu a apreensão de documentos preciosos para se entender as rotinas de uma “feitoria” do tráfico de escravos.
 
A ira do comandante da escuna inglesa tinha justificativa. Dois dias antes ele avistara o brigue Veloz saindo do rio Benim (na atual Nigéria) com 217 cativos para levar para Pernambuco, mas o comandante do navio negreiro espertamente deu meia-volta e desembarcou os africanos, ficando à espera de um momento melhor para zarpar. Como o rio Benim era raso para os pesados barcos de guerra ingleses, o comandante da Fair Rosamond mandou um escaler armado para tentar capturar o Veloz, que estava ancorado ao lado de outro navio negreiro, o Camões, pertencente ao mesmo grupo de traficantes. Só que os tripulantes do Veloz, em vez de se renderem, reagiram, usando os dois canhões que tinham a bordo. Os ingleses tiveram que recuar, com feridos e ao menos dois marinheiros mortos. Por isso é que voltaram atirando. 
 
Os documentos obtidos no ataque eram de uma empresa dirigida a partir do Recife por José Francisco de Azevedo Lisboa, traficante de escravos mais conhecido como “Azevedinho” [ver RHBN n. 87, p. 46]. A companhia havia estabelecido uma feitoria para comprar gente no rio Benim e levar para Pernambuco. Entre os papéis estava a correspondência dos funcionários na África, relatando suas rotinas, seus problemas e até os fuxicos que costumavam brotar daquele negócio ilegal. 
 
Entre os textos mais reveladores estão simples bilhetes, alguns sem data ou mesmo sem indicação de destinatário, escritos em caligrafia sofrível por gente muito simples – como Antonio Candido da Silva, funcionário encarregado de vigiar, alimentar e cuidar dos escravos que seriam embarcados para o Brasil. Os cativos eram trazidos a ele por outros empregados da firma, que viajavam pelo rio Benim negociando com a nobreza africana a compra de mais gente. O local onde ficavam aprisionados era próximo ao litoral, nas imediações de um povoado conhecido por Bobi. Ali começava o trabalho de Antonio Candido. São muitos os seus bilhetes pedindo milho e carne seca (“carne do norte”) ao comandante do Veloz. Em um deles diz que precisa de 216 espigas de milho para uma refeição de 118 pessoas – ou seja, menos de duas espigas para cada cativo, às quais acrescentava uma “isca de carne”. Segundo seus relatos, os escravos tinham duas refeições por dia. Por vezes, ele próprio cozinhava o “pirão”.

Os navios da empresa funcionavam como depósitos de alimentos e de produtos para trocar por gente. Além dos mantimentos para servir a comida, Antonio Candido requisitava artigos variados, como pratos, xícaras, canecas, navalha, aguardente, vinho, unguento branco, unguento confortativo, óleo de rícino, pedra-pomes, pus vacínico e medicamentos. Cabia-lhe cuidar da saúde dos cativos, a quem também cortava o cabelo para evitar piolhos. No mercado local era possível adquirir produtos como inhame, bananas, lenha e cabritos. No rio havia barcos para alugar, remados por empregados da companhia e “forros do rei” (do Benim), o que indica que a economia local estava bem adaptada aos negócios do tráfico. 

A “casa” onde os africanos estavam aprisionados era antiga e insegura, dizia uma das cartas. Não surpreende, portanto, que houvesse fugas. Em um bilhete sem data, o principal empregado da feitoria no rio Benim, o “primeiro feitor” João Baptista Cezar, revela sua preocupação com o problema da segurança e mostra-se muito irritado com Antonio Candido. “Até ontem” estavam faltando sete cativos, “hoje” soube que apareceram oito e, no entanto, ainda faltavam outros.

Para Cezar, se a conta não fechava, era por culpa de Antonio Candido, um “pateta”: “Parece-me que não tenho aí ninguém e que os escravos não têm fugido todos porque não querem. Diga-me já quantos existem e de noite irei eu lá ficar, já que não vejo outro remédio”. De fato, numa ocasião, Antonio Candido relatou aos superiores que, antes do almoço, havia contado duas vezes os cativos sob sua guarda, mas depois percebeu que um “moleque” havia desaparecido. Em compensação, em outro bilhete contou que havia encontrado um fugitivo no mato. Como castigo, deu-lhe 12 bolos (punição que utilizava uma palmatória feita de madeira ou de ferro). A recaptura foi possível graças à ajuda de uma “rainha” africana, que em troca exigiu uma recompensa.

A nobreza africana participava ativamente das negociações. São muitas as cartas falando da compra de cativos, geralmente pagos em tecidos, aguardente e fumo de rolo. Além do poderoso rei do Benim, aparecem personagens como o rei de Oeri, o “príncipe Jale”, a tal “rainha” e outros menores da hierarquia local, como o “governador” de Goto, os “bocas do rei” e o “capitão do feitiço”. Todos cobravam por seus serviços.

Mas a maior preocupação dos traficantes do rio Benim era com a mortalidade. Não a dos escravos, mas a sua própria. As cartas sempre falam de doenças e febres altas. Durante os poucos meses da correspondência capturada pelos ingleses, morreram pelo menos um empregado espanhol (cujo nome não sabemos), o “marinheiro” Urbano e Joaquim Teixeira Alves Bastos, chefe imediato de Antonio Candido da Silva. 
 
Do “Senhor Bastos”, sabe-se que contava com a confiança do “primeiro feitor”, mas bebia muita cachaça, hábito que prejudicava os negócios, segundo o capitão do Veloz. Acometido de febres altas, chegou a pedir um padre para se confessar. A correspondência indica que havia um padre na região, pois foi ele quem hospedou dois empregados a caminho da cidade do Benim, capital do reino, onde foram comprar gente. Por essa ajuda, o padre recebeu um garrafão de aguardente. Certo dia, Bastos aparentemente desistiu de tentar se curar na feitoria e escreveu para o comandante de um dos barcos da empresa pedindo para ser embarcado. Não foi autorizado a partir, sob o argumento de que um empregado da firma não podia “desamparar a feitoria por qualquer motivo que seja”. 
 
Não sabemos se foi enterrado, mas quando morreram uma pobre menina cativa e o tal empregado espanhol, Antonio Candido disse que jogou os corpos no mar, pois a “rainha” cobrava “20 panos” para autorizar um enterro no território sob sua suserania. Talvez o corpo de Bastos também tenha ido parar no fundo do oceano, economizando os cobres da empresa.
 
O tráfico deixou a marca da brutalidade em suas vítimas, marcadas a ferro no corpo e na alma. Brutalidade que transbordava para além dos porões dos navios negreiros. Um “moço” que trabalhava num dos barcos da companhia, o iate Especulador, segundo um diário de bordo capturado pelos ingleses, morreu “botando sangue pela boca” devido às “pancadas” que lhe deram no brigue Camões. Como não há mais nada sobre isso na correspondência, talvez ninguém tenha achado essa ocorrência tão grave ou inusitada.
 
A opulência dos patrões que viviam no Recife, em seus luxuosos sobrados, contrasta com a pobreza dos empregados no rio Benim, como o marinheiro Urbano, que pouco deixou a inventariar além de algumas “camisas rotas”, e o “Senhor Bastos”, que também não deixou nada digno de nota. O tráfico legou uma memória quase mítica de seus grandes beneficiários, gente rica e enobrecida no Brasil, na Europa e na África. Mas para seus empregados dos escalões mais baixos, o destino pouco reservava além de miséria, violência e morte.