Manobra e aprovação da PEC da maioridade penal é criticada

Eduardo Cunha (PMDB-RJ) conseguiu aprovar o projeto de redução da maioridade penal um dia após a derrota do mesmo no Congresso, em manobra condenada por juristas, políticos e profissionais ligados à defesa dos direitos da criança e do adolescente. Na tarde desta quinta-feira (2), o assunto #AnulaSTF já estava em primeiro lugar nos trending topics do Twitter no Brasil e entre as primeiras posições no mundo.

Especialistas e políticos ouvidos pelo Jornal do Brasil, denunciarem a ilegalidade da manobra da Câmara, eles voltam a reforçar a ausência de sustentação técnico jurídica do projeto, que ainda abre caminhos para uma criminalização ainda mais grave da pobreza neste país.

Mário Volpi, coordenador do Programa Cidadania dos Adolescentes do Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef), salientando que o posicionamento do Unicef desde o início desta discussão é de que se trata de um grande retrocesso, apontou para três instrumentos de proteção de direitos que ficam comprometidos com esse projeto — a convenção internacional dos direitos da criança, a Constituição brasileira (porque além de mudar uma regra do jogo quebra um princípio de que o adolescente precisa ter um tratamento diferenciado do adulto), e a visão do conceito de adolescência presente no estatuto.

"É um retrocesso que implica no país voltar a uma situação que vivia antes da Constituição de 1988. Nós perdemos praticamente 27 anos de história da cidadania com uma decisão muito ruim em relação à proteção dos direitos de crianças e, especialmente, dos adolescentes", disse Volpi em entrevista por telefone.

Para Volpi, o Brasil precisa agora analisar cuidadosamente os procedimentos que forem tomados, para ver as medidas cabíveis do ponto de vista jurídico, em resposta à aprovação do projeto. Ainda existem dois passos no processo legislativo, uma votação no segundo turno e uma votação no Senado. "Nós vamos continuar dialogando com os parlamentares no sentido de mostrar que essa não é uma solução e, para além de não ser uma solução, ela tem um componente de agravar a situação dos adolescentes mesmo com as restrições que fossem feitas — que não vão estar na mesma unidade de adultos, que é só para casos mais graves. Mas, mais importante é que ele quebra um princípio de direitos que garante uma proteção especial para adolescentes, precedente que pode ter implicações em outros direitos."

Questionado sobre o potencial ou o caráter de criminalização da pobreza que tem o projeto da Câmara, Volpi explica que há um viés discriminatório na medida. "Nós sabemos como funciona o sistema de justiça brasileiro. Nós ainda não consolidamos uma defensoria pública que garanta igualdade de condições para todo mundo se defender diante da lei. Então, obviamente que a justiça brasileira também reflete as desigualdades que existem no país. Então, a medida, sem dúvida, agrava essas desigualdades."

Karyna Sposato, consultora da Unicef e professora da Universidade Federal de Sergipe, chamou a atenção tanto para o descumprimento da Constituição Federal quanto para a propostas de atribuir penalidades a adolescentes de acordo com o crime cometido. Além disso, continua, só o fato da matéria ser aprovada mesmo após sua discussão já é um fato preocupante, que revela um descaso e desprezo com as regras democráticas.

Atribuir um critério de imputabilidade para uma parcela de adolescentes a partir do tipo penal, do crime cometido, ela explica, do ponto de vista jurídico, é extremamente frágil. Existe uma consideração de ordem político-criminal de que a resposta punitiva do adolescente deve deve guardar uma coerência com a idade e a gravidade da infração. Todo o modelo jurídico brasileiro, inclusive, está ancorado nessa premissa.

"A gente tem uma regra de inimputabilidade, fundada em critério de idade, em critério etário, e esse é o modelo que, digamos assim, vigora na maioria dos países do planeta. Então, o que a proposta subverte, o que ela perverte na lógica constitucional, é que a partir do crime cometido pelo jovem ele vai ser considerado imputável. Isso é uma distorção porque o critério, que é um critério de idade, cai por terra e quem passa a operar é o critério do tipo de crime praticado. Tira qualquer fundamento lógico jurídico de política criminal. Essa regra realmente não tem sustentação técnico jurídica alguma", esclarece.

"Mesmo os países que adotam sistemas mais severos não criam uma regra tão frágil como essa", completou. O conceito de imputabilidade tem a ver com o reconhecimento de que em diferentes tempos da vida o indivíduo tem diferentes realidades, é diferente ser criança, adolescente, adulto e idoso. Isso vale não só no Brasil como o direito contemporâneo tem dado passos significativos nesse reconhecimento.

Para Karyna, o Brasil tem total autonomia para decidir seus rumos, mas tem que olhar também para as experiências internacionais e aprender com elas. "Por que a maioria dos países não adota essa solução? Primeiro porque reconhece que o adolescente tem uma realidade sociojurídica distinta do adulto, e por isso não poderia responder como adulto, e também que a questão da infração cometida tem um perfil de criminalidade de rua. Pode até se dar crime grave, mas a motivação original tem um fundo socioeconômico de exclusão, de marginalização."

O deputado Chico Alencar (Psol-RJ) lembrou em conversa por telefone com o JB que o país tem 1,6 milhão de adolescentes entre 15 e 17 anos fora da escola. Colocar como essencial a redução da maioridade penal, acredita, é a visão onde" o banco dos réus predomina ao banco escolar". Ele ressaltou ainda que apesar do discurso favorável à medida sustentar que 80% ou mais de brasileiros querem essa redução, quase 100% dos brasileiros diria que a prisão não corrige nem ressocializa ninguém e confessaria desconhecer a diferença entre idade infracional e penal.

"A gente precisa no Brasil, menos do que fazer novas leis, mudanças na Constituição, é fazer cumprir a Constituição e as leis já existentes", disse. "No mérito, há um grande equívoco, não vai reduzir violência nenhuma, infelizmente. E, no método, da votação, aí foi completamente espúria, irregular, inaceitável, porque a bancada apreciou uma mesma matéria duas vezes no mesmo ano, que dirá no mesmo dia, como aconteceu, e sem amparo regimental para a emenda que foi apresentada."

Para deputada Jandira Feghali (PCdoB), em entrevista por e-mail, também destacou que o projeto aprovado é inconstitucional. "É uma emenda aglutinativa, forjada na madrugada da derrota do primeiro texto, com o mesmo conteúdo morto. Não poderia ter sido levada à Plenário da forma como foi. Por isso que se abre uma grande discussão de impedir que esse descalabro continue."

A deputada acredita que o projeto, principalmente, abre precedentes para uma maior criminalização da pobreza. "O jovem negro da periferia, mas também os filhos da classe média serão atingidos." Ela aponta que as mortes de jovens nas favelas ou periferias pode aumentar de forma avassaladora, assim como a exploração e o tráfico sexual, aliciamento de menores, mortes no trânsito e publicidade da indústria de bebida e fumo destinada a esses jovens.

"[A manobra de Eduardo Cunha] significa um enorme atropelo no rito regimental, na democracia do voto dado no dia anterior e das decisões que são feitas mediante o regimento interno da Câmara. É um absurdo que nós, comunistas, não iremos legitimar. É preciso resistir nos próximos passos, como o segundo turno da Câmara, o trâmite no Senado e, não por último, recorrer ao Supremo Tribunal Federal", afirmou a deputada.

Rita Freitas, professora da escola de serviço social e coordenadora do Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Proteção Social da UFF, comentou em conversa por telefone que, além da questão de que a redução da maioridade penal em nenhum lugar do mundo teve os efeitos proclamados pelos defensores da medida, esta só deve atingir adolescentes pobres.

"Se discute a maioridade penal mas não discute o que fazer efetivamente pra melhorar as condições dessas crianças, a culpabilização recai sobre as crianças, daqui para frente vamos ter que fazer creche em presídio, a experiência nos coloca isso", destacou. "Ainda hoje, apesar do eca falar em criança e adolescente, você vê ainda a nomenclatura 'menor', 'menor foi pego', 'menor realizou', que é o pobre, que não consegue chegar na escola, que os pais também não conseguiram. É o círculo da pobreza, vicioso e viciante."

Para Rita, a forma como o projeto foi aprovado é outra questão absurda, "um ataque fulminante, central, à democracia que estamos construindo há poucos anos".

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), em nota, disse que é grave o procedimento adotado pela Câmara dos Deputados ao levar para nova votação emenda aglutinativa idêntica à proposta reprovada pelo Plenário da Casa na noite de terça-feira. "Além da constitucionalidade material da PEC 171/1993 ser alvo de questionamento junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), a medida adotada pela Câmara fere o regimento legislativo e representa inconstitucionalidade formal à proposta."

Susto matinal

Caetano Veloso e Gilberto Gil, em vídeo divulgado nas redes sociais, se colocaram contra a PEC. "Hoje quando eu acordei eu vi que, embora não tivesse passado, numa manobra durante a madrugada na Câmara, passou a redução da maioridade penal. Eu sou contra", disse Caetano.

"Eu também. Eu não vejo vantagem nenhuma, ao contrário, tem uma série de implicações novas que vão surgir com essa coisa da redução da maioridade penal. Não é um bom projeto e, aliás, houve uma manobra política esquisita e tal para aprovar, então somos contra", completou Gil.

A nadadora Joanna Maranhão, detentora de vários recordes Sul-americanos, divulgou um vídeo pelo qual diz que não representará o Brasil Fundamentalista nos próximos Jogos Pan-Americanos. "Pensei bastante antes de fazer esse vídeo mas considero o desabafo necessário pra minha saúde mental. Estou a caminho do meu quarto campeonato pan americano mas não representarei esse Brasil que segrega e que não se compadece", escreveu a nadadora.

"Já é a segunda vez que eu amanheço e tomo conhecimento dessas manobras criminosas que Eduardo Cunha tem feito no Congresso e eu sinto um desgosto muito grande, muito grande. (…) A gente sabe que no Brasil quem vai ser preso é menor de idade preto e de favela, o menor infrator de família bem resolvida e com grana não vai para a cadeia e não vai pagar pelo crime, tendo em vista aquelas pessoas que queimaram índio em Brasília falando que pensavam que era mendigo e um deles hoje é policial civil", disse em trecho do vídeo.

"Eu vou para o Pan-Americano, eu vou defender o meu país, mas eu não vou estar representando essas pessoas que batem palma para Feliciano, Bolsonaro, Eduardo Cunha, Malafaia. Não são vocês que eu estou representando. A torcida de vocês eu não faço questão nenhuma de ter."

Na madrugada anterior à aprovação do projeto na Câmara, o projeto foi derrotado por cinco votos. Na madrugada seguinte, alguns deputados mudaram de “não” ou “abstenção” para “sim”, caso de deputados do PSB, PMDB, PDT, PSDB, PROS, PTB, PV, SD, PHS, DEM, PPS, PSC e PP. Outros faltaram na primeira votação e votaram "sim" na segunda (PMDB, PP, PSC, PSDB, PMDB). Também teve casos de deputados que votaram "sim" na primeira e faltaram na segunda — Francisco Chapadinha (PSD-PA); Francisco Floriano (PR-RJ); Genecias Noronha (SD-CE); Laercio Oliveira (SD-SE); João Carlos Bacelar (PR-BA); Mauro Lopes (PMDB-MG); e Wellington Roberto (PR-PB).