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Financeirização é o fenômeno nº 1 do capitalismo hoje

O sistema do imperialismo vive uma nova etapa nas últimas três décadas:a globalização neoliberal, ou mundialização financeira neoliberal. O mundo das finanças é pois tão velho quanto o capitalismo. Mas há novidades, a começar pelos recursos gigantescos qu

As leis gerais do funcionamento do sistema capitalista, suas contradições, agentes sociais e políticos, e seu papel histórico, descobertos por Marx e Engels, constituem-se em princípios permanentes, absolutamente fundamentais. Porém, o capitalismo, por natureza, está em constante mudança, é um regime de “revolução permanente nas condições de produção”, como diziam estes dois alemães geniais. Desta forma, quem pretende agir de forma conseqüente sobre a situação concreta deve ter abertura para examinar criativamente a realidade, levando em consideração as particularidades e especificidades históricas de cada período. Já se disse, com razão, que “as boas teorias são abstrações pertinentes, e a pertinência se altera quando a história evolui”.[1]



O sistema do imperialismo vive uma nova etapa, em desenvolvimento a partir dos anos 70 do século passado. O capitalismo de nossos dias tem os mesmos fundamentos e leis do velho capitalismo e, ao mesmo tempo, apresenta novas características tanto na sua base econômica, quanto nas suas orientações, estratégias, consensos etc. Mesmo no plano ideológico há nuances importantes. O conjunto desta situação pode-se chamar de globalização neoliberal, ou mundialização financeira neoliberal.



Passados mais de 30 anos da 2ª Guerra, havia sido reconstruída a base material nos países de capitalismo desenvolvido, EUA, Europa, Japão. O capitalismo regulado apresentava sérios problemas para sua acumulação em termos mundiais.



Taxas de lucros declinantes nos EUA, Alemanha, França e Reino Unido (veja o gráfico acima [2]), nova situação de concorrência, déficits no balanço de pagamentos dos EUA, déficits públicos de monta, configuram-se nas graves crises dos meados dos anos 70 e início dos 80. Uma situação de crescimento com relativa estabilidade dá lugar a uma situação tormentosa e instável. Os arranjos de Bretton Woods e a orientação keynesiana não mais podiam harmonizar-se com a situação objetiva. São fatos econômicos importantes deste período: fim da conversibilidade dólar/ouro, a adoção de câmbio flexível que resultaram em um novo padrão monetário dólar flexível, assim como as sucessivas e radicais manipulações das taxas de juros dos EUA.



Grandes volumes de capitais acumulados, concentração e centralização como tendências objetivas do desenvolvimento capitalista (empresas transnacionais espalham-se por todo o mundo). A financeirização ou domínio das finanças, advém daí, objetivamente, a fim de recompor as taxas de lucros dos monopólios em outros circuitos. Mais no sentido do que Marx falou sobre o capital portador de juros (parte do capital bancário), suas características e meandros, do que no sentido da descrição do processo de fusão do capital bancário com o capital industrial sob a égide do primeiro, sobre o qual Hilferding e Lênin  escreveram ao retratar a tendência crescente à monopolização capitalista do início do século 20, especialmente na Alemanha.[4]  A problemática abordada por Marx no livro III do Capital, sob categoria de capital monetário de empréstimos, portador de juros e dividendos,  envolve os créditos e o mercado acionário, tem características de ficticiedade, especulação e parasitismo. Autonomiza-se até certo ponto, relativamente à economia real, a partir de determinado volume e sofisticação com que se dá a distinção entre ele e o capital empresarial (industrial e comercial).[5]



O mundo das finanças é pois tão velho quanto o capitalismo, novos são:



Seus volumes gigantescos, suas novas instituições (várias das quais não bancárias), sua dinâmica mundializada;



O poder de domínio da oligarquia financeira (fração da burguesia) que o controla;



A velocidade de suas operações e os moderníssimos instrumentos telemáticos de que dispõe, a nova configuração das Bolsas de Valores;



A diversidade e complexa modalidade de seus papéis (incluindo derivativos e hedge funds);



A sua moeda dominante, o dólar norte-americano, flexível e tendo como lastro os papéis da dívida pública dos EUA, portanto, um inédito padrão monetário;



A tendência característica para formação de bolhas expansivas, que embutem especulações de toda a ordem;



Sua promíscua relação com os governos pela via de um novo papel dos bancos centrais que, além de instrumentos de aplicação rígida da política macroeconômica ortodoxa/monetarista, são emprestadores de última instância que não podem deixar quebrar os credores das gigantescas dívidas públicas de seus Estados nacionais;



Suas próprias avaliações dos riscos e securitização dos mesmos. Sua instabilidade crescente advinda das expectativas de lucros em estratosféricas apostas de realização futura de mais-valia;



Suas exigências à liberalização, à desregulamentação dos mercados financeiros de capitais para que o capital possa circular o mais livremente possível;



A imposição das privatizações e da chamada flexibilização das relações de trabalho, a fim de aumentar a massa e a taxa de mais-valia para os monopólios privados.



Em conclusão, há mudanças significativas nas formas históricas das finanças mundiais que as colocam em patamar superior, dominando a economia real e configuram uma forma (padrão) distinta de acumulação de capital. “O mundo contemporâneo – na visão de Chesnais – apresenta uma configuração específica do capitalismo, na qual o capital portador de juros está localizado no centro das relações econômicas e sociais … por acumulação financeira, entende-se a centralização em instituições especializadas de lucros industriais não reinvestidos e de rendas não consumidas, que têm por encargo valorizá-los sob a forma de aplicação em ativos financeiros – divisas, obrigações, ações – mantendo-os fora da produção de bens e serviços ”.



Os EUA construíram um portentoso e hegemônico mercado de capitais. Como a economia capitalista mais desenvolvida estão no centro destas transformações. Tanto sua economia doméstica real quanto as relações comerciais e financeiras dos EUA com o resto do mundo “passam” pelo seu mercado financeiro (funciona como um pivô). O mercado de capitais mundial atinge hoje US$ 150 trilhões dos quais US$ 48 trilhões dos EUA – ações, títulos das dívidas públicas e de empresas, ou seja, excluídos os derivativos – enquanto o PIB mundial é de aproximadamente US$ 50 trilhões. A moeda norte-americana, que denomina grande parte dos ativos mundiais, o Federal Reserve dos EUA, o FMI e o Banco Mundial têm um papel preponderante no funcionamento prático do atual sistema das finanças mundializadas. Através deles – e sempre apoiados no poderio militar – os EUA exercem influência decisiva sobre as taxas de juros, de câmbio, preços de mercadorias, de ações e outros títulos, condições de investimentos etc, ao redor do mundo.



Nos anos 70 e 80, ainda em situação de bipolaridade, os EUA jogam um papel central na nova configuração. O auge da ordem neoliberal situa-se nos anos 90, sobretudo com a queda da URSS e do Leste Europeu, quando os EUA, grandes beneficiários da globalização financeira, reforçam e elevam sua hegemonia a um novo patamar e perpetram poderosa ofensiva contra povos e nações por todos os continentes, já numa situação de unipolaridade Há, nesta ocasião crescimento econômico interno nos Estados Unidos e um equilíbrio relativo na economia mundial embora pontilhado por muitas e graves crises na periferia.



Sem entender a financeirização – fenômeno econômico mais importante do capitalismo contemporâneo – não se entende o funcionamento da economia mundial (basicamente como a China se insere no processo); a hegemonia financeira e monetária dos EUA, seus pontos fracos e fortes; as particularidades das crises capitalistas atuais, tanto no centro quanto na periferia do sistema. Não se compreende as repercussões de tal fenômeno na esfera geopolítica, cuja essência é o desenvolvimento de contradições que indicam mudanças nos equilíbrios estratégicos entre países e na correlação de forças entre revolução e contra-revolução – até há pouco vigentes. Algumas tendências importantes tais como lento declínio dos EUA, rápida ascensão da China socialista, fortalecimento de pólos de potências médias a partir da periferia, uma nova situação da economia internacional, crise econômica no centro do sistema, consolidação da tendência progressista na América Latina, derrota dos EUA no Iraque, entre vários outros, que estão levando a um maior questionamento da hegemonia unipolar norte-americana e de sua ordem neoliberal e apontando para uma transição a um mundo multipolar.



Há pontos de vista que parecem equivocados sobre esta questão. Um, fala insistentemente em “suposta financeirização” como se ela fosse criação da mente de ilusicionistas. Talvez, em primeiro lugar, por não distinguir o que Marx e Engels de um lado, e o que Hilferding e Lênin, de outro lado, quiseram dizer com a problemática envolvida no tema do capital financeiro: coisas de conteúdos diferentes, com dinâmica própria, embora não se contraponham e convivam entre si e se toquem. Em segundo lugar, talvez por não perceber a dialética nas palavras de Marx de que “no capital portador de juros, a relação-capital atinge sua forma mais alienada a mais fetichista. Temos aí D – D’, dinheiro que gera mais dinheiro, valor que se valoriza a si mesmo, sem o processo que medeia os dois extremos.” Ou ainda de que: “O lucro de todo capital, portanto também o lucro médio baseado na equalização dos capitais entre si, se decompõe ou é dividido em duas partes qualitativamente diversas, autônomas e independentes entre si, juro e ganho empresarial, ambas determinadas por leis específicas”. Ou ainda de que: “a classe dos capitalistas monetários se lhe confronta como espécie particular de capitalista, o capital monetário como espécie autônoma de capital, e o juro como forma autônoma de mais-valia, correspondente a esse capital específico.” (Grifos meus, Dilermando)



Do ponto de vista teórico é preciso considerar que a economia política francesa progressista – Chesnay, Duménil, Lévy, Brunhoff, Plihon e outros – e a economia política brasileira progressista – Belluzzo, Tavares, Braga, Mazzuchelli, Alonso, Cintra, Carneiro e outros – ambas com laços com o marxismo, são fundamentais para o entendimento do problema. Constituem-se em parte integrante, mais exatamente no pilar econômico, do que pode vir a ser uma compreensão marxista atualizada sobre o capitalismo contemporâneo, ou, dá no mesmo, um dos elementos para a luta pela superação da crise de estagnação teórica do marxismo.



* Jornalista, especialista em Economia, membro do Instituto Grabois e do Comitê Central do PCdoB; a proposição será exposta na próxima segunda-feira (19), em São Paulo, no seminário Capitalismo contemporâneo e a nova luta pelo socialismo (clique aqui para ver mais sobre o seminário).


 


Notas:



[1] Citação de Vitória Chick feita por André Lourenço da UFRN em O pensamento de Hyman Minsky: alterações de percurso e atualidade, Revista Economia e Sociedade, Campinas, dez. 2006.



[2] Gráfico extraído do artigo de Duménil e Lévy, Neoliberalismo – Neo-imperialismo, revista Economia e Sociedade, Campinas, abril de 2007; a taxa de lucros é a razão entre uma medida ampla dos lucros (produto menos o custo total do trabalho) e o estoque de capital líquido (subtraindo a amortização); assim, impostos indiretos e sobre os lucros, juros e dividendos ainda estão incluidos dentro dos lucros; fonte: Nipa (BEA); Fixed Assets Tables (BEA); OECI.



[3] Lênin, V. I. – O imperialismo etapa superior do capitalismo, OE, Vol. I, pág. 610.


 
[4] A esse respeito ver Duménil G. e Lévy D. – Les trois champs de la théorie des relations financières de Marx. Le capital financier d’ Hilferding et Lénine, chapitre de La finance capitaliste, Seminaire d’Études Marxistes, 2006.



[5] Ver diversos capítulos do Livro III do Capital – O Processo Global da Produção Capitalista – de K. Marx, tais como, no tomo 1, XXIII – Juro e ganho empresarial; XXIV – Alienação da relação-capital na forma do capital portador de juros;  XXV – Crédito e capital fictício; no tomo 2, XXIX – Partes constitutivas do capital bancário; XXX, XXXI e XXXII, Capital monetário e capital real I, II e III. Ver ainda os pontos 1 a 4 dos Aditamentos do volume III das Teorias da Mais-Valia: A renda (revenue) e suas fontes. A economia vulgar.



[6] Chesnais, F. – O capital portador de juros: acumulação, internacionalização, efeitos econômicos e políticos.