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A palavra revolucionária de Rubens Jardim

Prosa, Poesia & Arte traz nesta edição do Letras Vermelhas a poesia revolucionária de Rubens Jardim. O poeta e jornalista que faz da palavra uma ferramenta não só para os amantes da boa leitura apreciarem a poesia, mas também para homenagear a luta revolucionária dos povos.

Rubens Jardim - Arquivo pessoal

Aos 69 anos, Rubens já teve seus poemas publicados em diversas antologias no Brasil, Itália, Uruguai e Espanha. É autor de três livros: Ultimatum (1966), Espelho Riscado (1978) e Cantares da Paixão (2008). Promoveu e organizou o Ano Jorge de Lima (1973) e publicou Jorge, 80 Anos. Fez parte da Catequese Poética (1964) e da 1ª Bienal Internacional de Poesia de Brasília (2008).

Teve poemas publicados na plaquete Fora da Estante, coleção Poesia Viva, do Centro Cultural São Paulo (2012). Faz leitura pública de poemas, e publica seu trabalho em vários sites. As poesias de Rubens Jardim podem ser encontradas no portal oficial do poeta

Leia as poesias na íntegra:

As asas da palavra

Prefiro a palavra que inaugura
um espaço novo
na mente do leitor.
Aquela que o arranca do torpor
e o faz embarcar no trem,
na carroça,
no ônibus
ou avião.
A palavra que o arranca do chão
ou da poltrona.
No poema a palavra é
travessia.
Por isso, venha comigo

Vamos descarrilhar esse trem

Despertar em Paraty

Um homem desperta
sozinho
antes da manhã levar a noite.
Lá fora um galo grita
também sozinho.
Um outro galo responde
e outro atende o chamado.
E antes que a manhã
descubra
as sombras existentes na alma
das noites,
o poeta se levanta.
Vai ouvir a sinfonia dos galos
É ela que acorda o sol

Para o poeta russo Serguei Iessênin

Talvez eu tenha ingerido mais vodka do que você,
camarada Iessênin.
Mas isso só foi possível porque eu desisti
de me matar.
Nem sei como isso aconteceu:
mas desisti
e continuei a viver.
É claro que carregando
mais doses
e mais dores.
E me encantando
com a bunda da mulher
que passa
e com a flor sozinha
na montanha.
Tudo dissolvido em água,
lágrima,
espanto.
Às vezes em punheta.

Sinto que a vida,
a minha,
e de tantos amigos
que perdi
e outros que insistem
em estar aqui
está perto de uma tragédia
instantânea.

É certo: os deuses morreram
e eu mesmo
não estou passando muito bem.
Estou perplexo
diante de tantas mudanças,
tão rápidas
tão rasteiras.
Minha vida já não tem nenhum sentido,
nenhuma importância.
Por isso, agora,
aperto o gatilho
da palavra

Vou-me embora.

Revolução dos Cravos 

(lido no plenário da Câmara Municipal de São Paulo, nas comemorações dos 39 anos da Revolução portuguesa)

É aqui, longe das praias solitárias
que eu ouço a voz das águas
e as canções do mar. E o mar
que não é português, nem grego ou brasileiro
despeja suas ondas em meus versos
que se recusam a caminhar sozinhos.

Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

E é em pé e de cabeça erguida que
eu chamo os poetas da nossa língua:
Camões, Fernando Pessoa, Castro Alves
e todos que manifestaram nosso lirismo
sem esquecer que as palavras tem garras
e podem ajudar a transformar o mundo.

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!

Eis aí o mistério poético e marinho
que mistura nossas almas e nos torna
navegantes e resistentes. As cartas
de marear são belas mas a poesia está nas
ruas, nos seios das mães e nas funduras
sociais da língua. Importante é a travessia

Andrada! arranca este pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta de teus mares!

Sim, o mundo era outro. Eu também era outro.
Mas a voz do mar era sempre a mesma.
E apesar da terra girar, Portugal continuava
com Sal e Azar e as colônias africanas.
Mas às 22h55 do dia 24 de abril de 1974
as rádios de Lisboa tocaram a canção-senha
que deu início ao movimento libertário.

Grândola, vila morena
Terra da fraternidade

Na celebração desse Abril, um quadro
ficou famoso. Trazia um título sugestivo:
“A poesia está na rua”. E foi ocupando
as ruas que o povo português mostrou
com cravos vermelhos amansando fuzis
que a soberania popular pode ser
sufocada—mas não pode ser morta.

Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós!

Carta aos combatentes da Guerra Civil Espanhola

(lida no Instituto Cervantes de São Paulo em comemoração aos 70 anos da Guerra Civil Espanhola, abril de 2009)

A uma milha de Huesca sopra o vento
que vai roubar teu sonho
e tua luta.
Teu corpo será lançado em mais uma cova,
mas a tua Carta do Campo de Batalha
a Uma Milha de Huesca,
ainda está aqui, viva, para provar que este espinho
sangrento jamais se apagará da consciência humana.
John Cornford tinha apenas 23 anos, e vestia o
uniforme das Brigadas Internacionais quando foi morto
A uma milha de Huesca.
Alguém poderia perguntar:
Mas o que faz um jovem poeta inglês
arriscar a vida nos campos de batalha da Espanha?

Claro que a verdadeira poesia não é adorno, distração,
ornamento interior.
A verdadeira poesia é luta
com a palavra,
com o caos primordial do Verbo,
com a tirania da falsa linguagem
das palavras batidas e amassadas
da mesmice enganadora e das falas burocráticas.

A verdadeira poesia é uma viagem ao desconhecido.

A verdadeira poesia é uma arma carregada de futuro.
É fogo e fumaça. Passatempo e sacramento.
Punti luminosi.
Triunfo e derrota. Porta e abismo. Grito e silêncio.
Solidão e intercambio.
Gosto de pão e gosto de sangue.
Caminho solitário que cruza com o caminho de todos.
A verdadeira poesia é sobretudo a tentativa desesperada
de devolver ao homem sua dignidade.
Por esse motivo um jovem poeta inglês foi morrer
nos campos de Espanha.
Outros poetas também entregaram sua vida
pelo sonho de paz e liberdade.
E toda a poesia é quase sempre uma manifestação de paz
e de liberdade
Como disse Pablo Neruda: o poeta nasce da paz
como o pão nasce da farinha.
E foi o sangue espanhol que fez tremer a poesia daquela época.
Os fascistas espanhóis iniciaram a guerra assassinando
um de seus melhores poetas: Federico Garcia Lorca em 19 de agosto de 1936
A las cinco de la tarde. Eran las cinco en punto de la tarde.
Las heridas quemaban como soles
a las cinco de la tarde
El viento se llevó los algodones
a las cinco de la tarde
ya luchan la paloma y el leopardo
a las cinco de la tarde
en las esquinas grupos de silencio
a las cinco de la tarde
Quando el sudor de nieve fue llegando
a las cinco de la tarde
la muerte puso huevos en la herida
a las cinco de la tarde
A las cinco de la tarde.
A las cinco en punto de la tarde
Un ataúd con ruedas es la cama
a las cinco de la tarde
El quarto se irisaba de agonía
a las cinco de la tarde
Lo demás era muerte y solo muerte
a las cinco de la tarde
Ay que terribles cinco de la tarde!
Eran las cinco en todos los relojes!
Sessenta mil voluntários de 55 países alistaram-se
debaixo das bandeiras vermelhas da República.
Muitos eram poetas, escritores e artistas que nem sabiam manejar armas
Mas pegaram em armas, alistaram-se
e foram lutar em defesa da República Espanhola:
Pablo Neruda, Vicente Huidobro, Cesar Vallejo,
Rafael Alberti, Miguel Hernandez, León Felipe,
George Orwell, André Malraux, Arthur Koestler,
Octavio Paz, Hemingway, Pedro Garfias, Aragon,
Willy Brandt, Robert Capa, Simone Weil,
John dos Passos, Picasso, Bunuel, Pablo Casals,
Miró, Henry Moore, Rene Magritte,
Miguel Angel Asturias, Antonio Machado
e até o poeta nacional da Irlanda, Yeats
e a escritora sueca Selma Lagerlof, já bem velhinhos,
manifestaram desejo de participar do Congresso de Escritores Antifascitas.
Drummond, Bandeira, Vinicius e Murilo Mendes
também tomaram a defesa dos ideais republicanos.
Mas nada disso adiantou. Em 1 de abril de 1939
–dia internacional da mentira –o generalíssimo Franco
instalou-se, vitorioso, no poder. E por lá ficou– até morrer em 1975.
Hoje, passados 70 anos da Guerra Civil Espanhola,
nos não podemos esquecer de 1 milhão de mortos,
nós não podemos esquecer de 500 mil exilados
nós não podemos esquecer de 300 mil detidos políticos.
Não podemos esquecer também que a poesia
pode ser molestada, chicoteada, arrastada pela rua,
desterrada, encarcerada, apedrejada
mas nada, absolutamente nada pode sufocar a sua voz
sempre inadequada e surpreendente,
sem gaveta ou fichário, voz recém-nascida em um
constante descobrir,
em uma insubornável solidão,
em uma imensa companhia
E é em nome de todas essas coisas que eu,
Rubens Jardim, poeta menor, venho aqui lembrar
que a poesia é um estado de graça, um ato de amor do poeta com a linguagem
e como todo ato de amor ele une
autor e leitor
ouvinte ou espectador
em uma experiência única.
Mais ainda: com a sua linguagem primitiva e extrema
a poesia sempre caminhou e caminha de mãos dadas
com o povo
e com a língua.
E pra finalizar é preciso dizer bem alto:
na Guerra Civil da Espanha não foram só os poetas que morreram em pé
–todos que morreram pelos ideais republicanos morreram em pé —
e com um detalhe

de cabeça levantada!