Urariano Mota: um escritor sempre pronto para refletir

Fazendo jus a sua pena que não deixa de tecer letra a letra uma nova aventura ou reflexão, o renomado escritor e jornalista pernambucano, Urariano Mota, que também é colunista do Portal Vermelho, está trabalhando em mais um livro e nos brinda, com exclusividade, com um cálice de uma nova história.

Urariano Mota - Reprodução

A seguir, o primeiro capítulo de uma obra que já promete muitas reflexões sobre os dias de hoje e as transformações que remodelam a sociedade. 

Urariano Mota: Bandeira do partido*

Ao caminhar para o necrotério, próximo ao necrotério, eu não estava preparado, porque ninguém está preparado para a surpresa da morte. Ela vem como se, de repente, o chão se abrisse e mergulhássemos no escuro de um espaço sem referência. Mas minto, porque mais próximo da verdade é isto: mergulhamos no espaço escuro com a consciência dilacerada, com a memória em terremoto, os miolos deslocados à procura de um ponto de abrigo. Isto: à procura de um norte no espaço quando estamos sem nave, sem sinal de planeta ou qualquer azul com o nome de Terra. Quero dizer: eu estava e não estava naquele enterro. Eu me via nele, mas o que chamo de meu corpo não estava ali. Quero dizer enfim do modo mais claro: o meu ser, o nosso ser ainda não havia sido respondido naquela morte. A nossa vida ainda estava sem reflexão ou resposta.

Eu me deixei sentar, antes, caí sentado num bar perto do necrotério. Eu me sentei como um pugilista atordoado senta no banquinho no intervalo do gongo. Haverá um próximo assalto, eu sabia, e como fera acuada via pelos cantos dos olhos, pelos cantos da consciência um ligeiro raio que passava gritando, no próximo assalto é você. Os próximos são vocês. Nesta altura da idade, fala o estúpido bom senso, somam-se as quedas biológicas. “Quedas”, um outro gênero de quedas, diferentes e iguais à morte na ditadura, porque morremos quando tudo está por se construir, antes e agora. Lembrança do poeta Alberto da Cunha Melo:

“Tudo condenado a nascer
e essa urgência de terminar
o que será realizado
de qualquer maneira a seu tempo”.

Mas é tão diferente, hoje. Estamos na legalidade, o partido, se não é o poder, é chamado ao poder pela força da sua militância. Sim, tudo é tão diferente, mas a morte do camarada nos expõe a fratura do que parecia confortável, estabilizado: “acorda, o ser não foi respondido”. O porquê da vida continua sem resposta. Acorda, porque o tempo é adverso, a duração do tempo é adversária, a resposta não virá andando, a resposta deve ser buscada.

Se assim nos chama a voz que reflete o raio fugaz, na hora não a ouvimos bem, ainda que se apresente pelo seu portador, o corpo morto de Luiz do Carmo. Por isso divagamos na mesa, eu, minha esposa e uma antiga namorada de Luiz. Tomamos distância das questões mais graves, apesar do abalo sísmico sob nossos pés. Em lugar da olhada de frente, evitamos a procura essencial: “onde está o nosso ser?”. Temos os olhos rápidos para os cantos, olhos de louco, de animal a farejar o inimigo que vem pular em cima de nós.

– Como ele morreu? – pergunto. E com isso gostaria de fazer de conta que as circunstâncias explicam a razão da sua morte.
– Foi de repente. Passou mal de repente – a ex-namorada me responde.
– Ele estava em casa?
– Não, foi num bar.
– Ah! – exclamo.
Ah, se não fosse num bar, se ele não estivesse levando a vida que levava, estaria vivo. E assim sou compreendido na mesa, e dessa forma somos iludidos.
– Eu soube que ele andava meio solitário – a ex-companheira fala. – Bebia muito.
– Ah! sei – fala minha esposa.

Peço outra bebida, eu não estou solitário, então eu posso pedir outra. Isso até pareceria cômico, mas está na fronteira entre a comédia e o trágico. Porque o conteúdo de “bebia muito”, e por isso morreu, quer nos convencer que se não fosse o álcool ele estaria vivo, quem sabe, se para sempre. Então a morte não é um ponto de encontro com o desencontro, não é uma fatalidade biológica, é apenas e só um produto das circunstâncias. Fossem outras, ah, teríamos a duração eterna, estamos convencidos, conquistados, sem que seja necessário qualquer murro lógico. Já estamos derrubados a nocaute na ilusão.

– Mas foi num bar? – Volto, e corrijo porque estou num também: – Ele estava de passagem pelo bar?
– Ele estava bebendo – a ex-companheira responde.
– Na hora, ele bebia o quê? Você sabe? – quero saber, porque devemos evitar o que pode ter sido a causa do seu falecimento.
– Acho que era vinho – ela fala, numa versão que mais adiante saberei ser falsa. Mas talvez se refira à bebida dos namorados nas histórias românticas.
“Vinho! Num clima quente não é bom”, penso.
– Com este calor… – completa minha mulher.

Isso mesmo, eu não falo, porque tenho a desconfiança do absurdo a que gostaria de chegar, que é: está explicado, com este calor, beber vinho é o mesmo que procurar a própria morte. Faz, faria sentido, sei, mas não como a causa, e causa de gênero terrorista, causa do óbito, como eu gostaria, para então afastar de mim tudo que lembre uva, com especial distância da maldita fermentação. Mas a minha comodidade não se detém, não a consigo parar na busca de uma razão para a morte de Luiz do Carmo.

– Ele morreu lá mesmo no bar?
– Sim – a ex-companheira me responde. – Eu soube que ele estava sentado, arregalou os olhos, e desceu a cabeça por cima da mesa. O garçom pensava que ele estava dormindo. Quando foram ver, estava morto. Ele morreu dormindo.
– Ah – consigo dizer, para nada dizer. Esse “morreu dormindo” é mais brutal que a imaginação anterior “arregalou os olhos”. O que pesquisarei meses adiante provará que os olhos saltados vêm de uma construção imaginosa. No entanto, apesar de mais dramáticos para uma cena teatral, na espécie de espetacularização da morte, esses “olhos arregalados” angustiam menos que “morreu dormindo”. Porque o ato de dormir é mais natural e comum que saltar os olhos, que pode significar uma falta de fôlego, uma obstrução. E dormir, por sua naturalidade inescapável, que se une a morrer, não é bem uma fórmula carinhosa, amenizadora, como se fosse o mesmo que “morreu sem dor”. Na hora, sinto, sentimos a lâmina que vai desabar também sobre as nossas cabeças. Então um homem não pode mais dormir. Que traição mais suja.

– Sei – falo, enquanto mergulho num gole longo do uísque, de vez. Eu quero me anular no álcool. E não consigo. Apenas atinjo o meu outro, fora de mim. –Sei – respondo, porque de nada eu sei. Não sei de nada e quero saber. Eu quero saber a mais elementar razão: por quê, para quê estamos vivos. – Sei – e viro o rosto de lado, talvez com aqueles olhinhos de louco, que voam rápido para os cantos, metidos em si e faros da fera que vai atacá-lo.

Na selva sem esperança recebo a cara de Luiz do Carmo no caixão, com bigode mexicano na face, que não era mais a do amigo que gritava Ula! Ula! em 1970. Do Carmo, que golpe à traição foi esse? Então a ex-companheira, como no verso de um tardio retrato 3 x 4 onde se dedicava “como prova de carinho, amor e amizade”, fala, como se nada dissesse na tarde:

– Ele estava comemorando a notícia da publicação do próximo livro.
– Um livro?
– Um livro, que a editora em Pernambuco vai publicar.
– Um livro – murmuro.
Um livro, sinto, eis uma razão para viver. Não sei agora se é um barco salva-vidas na hora do naufrágio, mas em mim, até o mais imo, sei que é uma razão de viver, e de morrer. Nesse momento o cidadão Luiz do Carmo se ergue sobre a mesa, e não é mais o ridículo bigode de filme de hollywood. Não. O senhor Luiz do Carmo é um homem que acredita num lugar mais alto que falecer na mesa de um bar, sozinho. O ex-falecido Luiz do Carmo é um escritor capaz de frases laminares que vão além da lápide, como aqui:

“Engoliu a metade da bebida e acendeu um cigarro oferecido por ela. Os dois fumando. O fio preto do querosene juntou-se à fumaça dos cigarros. Se houvesse relógio na parede, teria ponteiros desinteressados nas horas”.

E me vem, de 1970:
– Ula, Ula, o que você vai fazer com o disco de Ella Fitzgerald?
– Eu vou escutar Ella quando eu tiver um toca-discos.
– Ula, Ula, vamos ver a manhã nascendo no cais.
E depois, ele me pergunta na maturidade, na mais longa duração da juventude:
– Júlio, você já leu os contos de Memória de Caçador, de Turguêniev? É um autor do grande mundo da literatura.
Então, de repente, mais de repente que a sua própria morte, me atinge o pensamento como um raio na tarde:
– Luiz do Carmo tem que ser enterrado com a bandeira do partido. Ele não pode partir sem a bandeira do partido.

Para mim, no momento, é oculto o processo de luz, emoção, que resulta na necessidade do seu caixão se envolver com a bandeira vermelha da foice e martelo. Não sei como veio o salto do livro e da morte para a bandeira do partido. Mas sei que veio com força o desejo de ver a bandeira, que significava, “esta é a sua identidade”. E o cheiro de álcool, de bagaço, da cana esmagada de Goiana me chegou mais forte. E veio a fragrância da aguardente, de outra mesa, em outro lugar e dia, quando ele me falou que um dos valores máximos da sua vida era o partido. E a literatura, que ele não declarou, mas sei agora, como se fosse um amor escondido, clandestino, paixão pecaminosa, de tabu, que o fez morrer na mesa de um bar, comemorando a publicação do novo livro.

Na hora, o que me assalta em mistura de alegria, dor e angústia em mais um movimento absurdo, inexplicável, de dor e alegria em um só sentimento, é a urgência da bandeira do Partido Comunista do Brasil. Para os ateus, ou como falaria Luiz do Carmo, “para os materialistas históricos, dialéticos, sob as luzes de Marx, Engels e Lênin”, onde falta Deus há uma continuação da vida na luta histórica da militância. Quem é de fora não entende. É mais que a perpetuação de um só personagem, como o Fantasma do gibi, das histórias em quadrinhos. Na historinha, as gerações se sucedem e vestem o mesmo uniforme e máscara, de tal modo que serão sempre o mesmo Fantasma. Mas não como os militantes comunistas. Eles são mortos, falecem, caem, mas os que ficam vão para o lugar do que se foi ou partiu. E o que se foi continua em nova vida pelo fio histórico da atividade partidária. Isso eu compreendia, dentro de uma compreensão cética. Mas ali, quando me ocorreu a necessidade da bandeira do partido em seu caixão, os motivos eram outros. Os motivos não eram assim desse modo grandiloquente, ou pelo menos guardavam uma distância do extraordinário, do retumbante. Quero e preciso dizer: quando eu vagava em um vale de almas penadas sem uma razão para a vida, me veio a bandeira vermelha, que era uma razão para ele. Mas uma razão que traduzo de modo diverso, quando busco o terrorista a partir daquela noite no puteiro da Vigário de Tenório. O tecido vermelho se abre mais amplo e sobre ele caminhamos sem que nos tivéssemos dado conta, desde 1970. Como vou escutar Ella Fizgerald sem ter nem um toca-discos? A resposta parece vir agora, estendida na mais longa duração da juventude. A mais longa duração da juventude, observo à distância. Mas isso é tão grandiloquente, que melhor é dizer: enterrem Luiz do Carmo com a bandeira do partido.

*Capítulo de romance inédito.