O Jovem Malcolm X, uma ferramenta da luta contra o racismo no Brasil

“Nós vamos usar a chave que Malcolm X colocou na nossa mão para fortalecer a luta por justiça social aqui no Brasil”. Foi com essa frase que o autor da obra O Jovem Malcolm X, Jeosafá Fernandez Gonçalves, explicou o objetivo de seu livro. Não que uma obra literária necessite de explicação, mas neste caso, a palavra transcende o papel e se torna mais uma ferramenta de luta contra o racismo e as injustiças ainda hoje cometidas em nossa sociedade.

Jeosafá Fernandes - Arquivo pessoal

O Jovem Malcolm X foi lançado na noite desta terça-feira (9) em uma livraria no centro da capital paulista. O evento contou com a participação de intelectuais, artistas, lideranças do movimento negro e jovens curiosos que, apesar de saberem da existência deste símbolo da luta contra o racismo nos Estados Unidos, têm pouco acesso às informações sobre ele.

Isso porque a história de Malcolm X, que marcou gerações e continua inspirando pessoas por todo o mundo mesmo depois de 50 anos de sua morte, não têm muitos registros no Brasil. De acordo com o autor do livro, há apenas dois exemplares da Autobiografia de Malcolm X nas bibliotecas públicas de São Paulo, na internet também não é acessível e há apenas edições antigas vendidas a preços exorbitantes em sebos pelo Brasil. Afora isso, pouco se publicou no país a respeito do jovem estadunidense que se tornou um símbolo da resistência negra no mundo.

Durante a pesquisa, Jeosafá entrou em contato com pesquisadores do legado de Malcolm X nos Estados Unidos e teve acesso às gravações de discursos, entrevistas e debates que ele participou no rádio e na TV. Depois de uma extensa pesquisa, o livro resgata a história de vida e o legado deixado por Malcolm Little, um jovem norte-americano que passou por toda má sorte desde muito cedo e encarou as dificuldades sempre em busca de justiça e quebra de paradigmas.

Para Jeosafá, a situação em que viveu Malcolm nos Estados Unidos está bastante relacionada à realidade do Brasil hoje. Ele foi um jovem que perdeu o pai, de forma trágica, muito cedo; já aos 4 anos de idade sofreu na pele as brutalidades do racismo, quando a família Little teve sua casa queimada pela organização racista Ku Klux Klan; a mãe, ao se ver sozinha com os filhos, entrou em uma profunda depressão, e por não ter condições financeiras foi internada de forma cruel num manicômio, de onde saiu anos mais tarde completamente transtornada; desde muito jovem, Malcolm trabalhou em diversos empregos de baixa remuneração, como engraxate e limpador de trens, até se envolver com atividades criminosas e ser preso.

“Foi um bom aluno, mas parou de estudar devido às dificuldades, depois disso foi engraxate, até se tornar traficante, assaltante e ser preso”, conta Jeosafá. Esta história que se passou há mais de meio século nos Estados Unidos é uma realidade de boa parte da juventude brasileira ainda hoje e por isso há tanto interesse na obra do escritor brasileiro.


Foto tirada de Malcolm X quando foi detido pela primeira vez 


Jeosafá se surpreendeu, durante o evento de lançamento de seu livro, com o público extremamente consciente e ávido por mais conhecimento acerca da luta anti-racismo norte-americana que ele atraiu. A divulgação da atividade foi feita em livrarias, bares e regiões da cidade onde tem grande concentração do movimento negro e essas pessoas participaram em peso, em busca de conhecer quem foi Malcolm X.

O sucesso foi tamanho que durante o lançamento já foi estabelecida a realização do Semestre Malcolm X. Trata-se de uma série de atividades, ainda não definidas, mas que serão debatidas e realizadas em parceria com lideranças do movimento negro em comunidades, escolas e espaços culturais da capital paulista e contarão com apoio da Secretaria de Promoção Racial da prefeitura de São Paulo.

“A ideia é usar o livro para contribuir com a luta por justiça social, para combater o racismo, a xenofobia, o preconceito”, afirma Jeosafá. Segundo ele, durante a pesquisa, teve muito contato com pessoas ligadas ao movimento Hip Hop, isso porque há uma forte identificação desta vertente cultural com a história de Malcolm X em todo o mundo. “Malcolm X viveu no gueto, representa muito bem isso, ele é alguém que mora no repertório intelectual e no coração deles [integrantes do movimento Hip Hop]”.

Segundo Jeosafá, o objetivo do Semestre Malcolm X é trazer para a luta cotidiana o legado de Malcolm X e fortalecer a resistência com este material. “Vamos poder abordar diversos temas, como por exemplo, a religião, a situação da mulher, a redução da maioridade penal, a questão das drogas, a chacina dos jovens negros na periferia, são temas que Malcolm X tratou com radicalidade e empenho e podemos amarrar com a luta concreta”.

Jeosafá é professor doutor em Literatura Africana pela USP, O Jovem Malcolm X é seu segundo livro biográfico, anteriormente já havia publicado O Jovem Mandela, ambos pela editora Nova Alexandria. As obras podem ser encontradas em livrarias físicas e na internet nos links: O Jovem Malcolm X e O Jovem Mandela.

Leia um trecho de O Jovem Malcolm X enviado pelo autor:

Já sabe como cheguei a Boston: terno verde, calças pelas canelas e um sobretudo cinturado que eu podia jurar já ter tirado da loja desbotado. Minha meia-irmã Ella, que me hospedou, morava na parte bacana de Boston, onde negros endinheirados esfregavam na cara de caipiras como eu suas belas conquistas pessoais. Foi instintiva minha aversão por essa parte da cidade.

Ella não queria que eu trabalhasse logo de cara. Sua expectativa era a de que eu me preparasse, com seu auxílio, para realizar um sonho difícil para os negros deste lindo país chamado “American way of life”: o de me tornar advogado. Com isso, eu seria um lindo protótipo de vencedor, não acha? Não seria mais um desses fracassados jogados por aí.

Porém, para isso, eu teria de me concentrar na região de Hill, frequentar os espaços de Roxbury, das avenidas Waumbeck e Humbold, me misturar com aqueles que, com vergonha de revelar suas verdadeiras profissões, se vestiam com mais arrogância do que seus próprios patrões – retorno a esse particular daqui a pouco. Pare de me cutucar, senão derrubo esse prato.

Ah! Tem um desses metidos a bacanas passando ali fora, olhe. Conheço, esse. É garoto de recados, embora diga que é “expert” em comunicação. Mas não me cutuque mais… se eu quebrar um copo, você é quem vai pagar.

Porém, Hill, muito parecida com a região de Sugar Hill, aqui da Big Apple, me dava nos nervos. Ainda mais depois que, tendo perambulado por toda Boston, conheci os bairros negros, com seus becos e “gatos” parados nas esquinas, a exibir trajes amigo-da-onça cheios de bossa, que me deixaram totalmente envergonhado de minha roupa de matuto. “Ah, Red Little, você é um caipira”, eu me dizia, olhando os rapazes, com pouco mais da minha idade a andarem gingando em seus estonteantes sapatos coloridos, como se a vida fosse, a qualquer hora do dia, uma pista de dança.

Não teve por onde, só passei a dar as caras em Hill para dormir. Ella não se preocupava comigo, pois, afinal, queria que eu conhecesse como era grande o mundo fora de Lansing.

Ella me deu muitas dicas. Por exemplo, quando andávamos pelas ruas metidas a besta de Hill, ela dizia: “Está vendo aquele ali de paletó impecável e sapatos engraxados até refletirem o sol?”. “Sim”, respondia eu, “é o senhor fulano de tal, gerente de uma concessionária de automóveis”.

Então, Ella estourava de rir e dizia: “Little, como você é inocente. Isso é o código que ele usa para disfarçar sua verdadeira profissão: lavador de carros na mansão de não sei quem, lá no lado branco da cidade”.

Palavra, me senti um total idiota. “E aquela ali, toda emperiquitada e coisa e tal?”, me cutucava minha meia-irmã com seu cotovelo pontudo – como você acabou de fazer – e apontava com uns olhos enviesados muito engraçados.

“Sim, a dona do salão de beleza que foi tomar café na sua casa outro dia”, eu lhe respondia do alto da minha inocência. Será que pode rir com mais decência, Lory? Ora, eu tinha apenas 15 anos! Você deveria se apiedar e se envergonhar dessa sua atitude – quiá quiá quiá, você é uma figura, Lory!

Aí Ella emendou: “Menino, como pode acreditar em tudo que ouve? Se não converter sua inteligência em malícia, vai passar muita vergonha por aqui – e vai virar alvo de boas risadas”.
Como vê, Lory, Ella é, entre outras coisas, vidente.

Mas, não precisa socar o balcão enquanto ri. O Ed ou o Charlie vão jogá-lo na rua se continuar a se comportar como se estivesse num desses botecos pés-sujos que a ralé como nós frequenta.

Então Ella continuou: “Essa umazinha aí é ‘dona de salão de beleza’ só aqui no Harlem. Ela é faxineira na casa de Beltrana da Silva, lá para os lados do Bronx. E olha que a patroa dela também não nada em dinheiro, não, Red!”.

Meu mundo caiu nessa hora. Eu tinha essa dona como um exemplo acabado de negra bem-sucedida.

“Ella”, falei-lhe duramente, “então aqui só tem pobretão metido a rico por vergonha de ser pobre e preto?”.

“Aí você falou uma verdade, Little Red”, disse ela, invertendo meu nome por gozação, arregalando os olhos e estufando a boca numa careta hilária: “Ela acha que quem tem grana deixa de ser preto. Ser faxineira e limpar o banheiro dos brancos dá uma certa grana, que permite a ela ter uma casa modesta, um casaco de vison falsificado e enganar almas puras e santas como a sua, seu mané!”, sussurrou Ella em meu ouvido, antes de explodir numa gargalhada sonora de grandes e lindos dentes brancos.

Depois que Ella se recompôs do acesso de riso, enfrentei a fera: “Ella, pode ir me passando esses códigos, que não quero mais passar vergonha, e muito menos ver os outros rindo da minha cara”.

“É pra já”, ela respondeu, assumindo ares de professora, ou irmã mais velha muito camarada: “Quando algum desses das bandas de cá se dirigir a você contando vantagens, fique sabendo, é pobre, pois os ricos não se dirigem a nós de maneira nenhuma, a não ser para dar ordens ou chamar a polícia. Se um desconhecido de ‘boa aparência’ não ordenou nada a você, nem chamou a polícia por causa de sua cor, é pobre disfarçado – seja preto, seja branco”.

“Tou entendendo, ‘Big’ Ella, pode continuar…” – ironizei-a, que nisso também não fico atrás de ninguém, é só me cutucarem para ver.

Ella prosseguiu sua aula de malícia: “Se uma moça lhe disser que é administradora de salão de cabeleireiros ‘chic’, fique sabendo, esse é o código que ela usa para ‘manicure’. Mas não faça a bobagem ou a indelicadeza de devolver-lhe na cara o ‘manicure’ – seja gentil com todos, principalmente com as moças de nossa cor, que são oprimidas por tudo quanto pesa sobre os negros e ainda muitas vezes por seus pais ou namorados machões”.

Senti naquele momento que Ella falava de si mesma. Minha meia-irmã retomou: “A ‘dona’ do ‘haute coiffure’ sabe que está pregando uma mentira – e espera que você também saiba e tenha a delicadeza de não zombar”.

“E se um cara disser que é, por exemplo, dono de loja de móveis?”. “Então ele é, na melhor das hipóteses, marceneiro”.

Devolvi a Ella: “Por essa lógica, se um fulano disser que tem um posto de gasolina, então, é frentista!”.

“Viu?”, Ella sorriu magnanimamente. “Não é difícil traduzir esse código, não é mesmo?”.
Fui-me escolando nessas conversões de código, de tal maneira que, depois de algum tempo, andando pela rua, ia competindo com Ella: “Esse é carpinteiro.” – “Isso!”; “Aquela é babá.” – “Isso!”; “Lá na frente vai um mensageiro.” – “Isso!”; “Atravessando a rua, vai uma balconista.” – “Isso! Isso! Isso!”.

Depois de um mês, já tinha toda uma tabela de conversão de profissões na cabeça. Não havia mais amigos de Ella que eu não submetesse a meu raio X, para escrutinar seu verdadeiro “status social”.