Há 13 anos, perdemos João Amazonas; seu Partido lhe diz presente

O dia 27 de maio será sempre lembrado pelos comunistas brasileiros com lágrimas e uma sensação de corte no coração. Nessa data, há 13 anos, faleceu o camarada João Amazonas, o líder político e ideólogo do PCdoB por quase meio século, seu refundador, quando ocorreu a divisão provocada pelo revisionismo entre 1958 e 1962.

Por José Reinaldo Carvalho*

João Amazonas ao se pronunciar no 10º Congresso do PCdoB l Foto: Arquivo

Lembro-me como hoje. Estávamos o Renato Rabelo e este modesto camarada, em missão em Cuba. Era a delegação de mais alto nível que nosso Partido enviara à ilha socialista desde que, 40 anos antes, lá estivera, na companhia de Maurício Grabois, o próprio camarada Amazonas, logo após a ruptura com os oportunistas de direita do então PCB.

Naquele momento, Renato acabara de assumir a Presidência do Partido e este jornalista um dos vice-presidentes do Partido, responsável pelas Relações Internacionais. Eram quatro as vice-presidências do PCdoB à época, propostas pelo camarada João. Completavam o time de vice-presidentes os camaradas Haroldo Lima, Jo Moraes e Aldo Rebelo.

Naquele 27 de maio, estávamos em audiência na Associação Nacional dos Economistas de Cuba, quando a camarada Maria Antonia, destacada funcionária do Departamento Internacional do PC Cubano, responsável pelo acompanhamento da delegação, saiu da sala atendendo um discreto sinal de uma funcionária da entidade. O ar triste com que voltou à sala demonstrava que algo grave acontecera. Comunicou-nos a funesta notícia, que encerrou não só a audiência, como alterou o programa da nossa visita ao país socialista irmão.

À noite, fomos recebidos pelo líder histórico da Revolução, o comandante Fidel Castro, ainda no exercício da direção do Partido e da República socialista cubana. Transmitiu-nos as condolências, comunicou-nos sobre o envio de suas homenagens por meio da representação no Brasil e sustentou conosco uma conversação fraterna sobre temas da conjuntura mundial e latino-americana. 

Poucas semanas antes, bateram à nossa porta, na Alameda Sarutaiá, onde funcionava a sede do Comitê Central do Partido, em São Paulo, os companheiros Lula e Zé Dirceu. Já narrei o episódio em outros artigos e conferências que pronunciei em diferentes ocasiões. Textualmente, disseram-nos os companheiros petistas que começavam pelo nosso Partido a série de encontros com as forças aliadas para pedir apoio à candidatura de Lula à Presidência da República. O velho João não teve cinco meses a mais de existência para viver o resultado da decisão que tomou naquele dia, em coerência com a campanha que liderou em 1989, quando, ao lado do próprio Lula e de Jamil Haddad, do PSB, foi criada a Frente Brasil Popular e lançada a primeira campanha de Lula.

Indelevelmente marcada em minha memória – e por que não dizer, também no coração – está a afirmação crítica, a última de tantas que lhe ouvi em cerca de 30 anos de convivência cotidiana – sobre a opção feita por um ou outro comitê estadual de apoiar candidaturas a cargos majoritários de políticos ideologicamente incompatibilizados com o Partido, porque em algum momento tinham sido membros do partido e foram expulsos das nossas fileiras. Nisto radicava um traço da personalidade político-ideológica do saudoso João. Tendo sido um mestre da tática e da estratégia, guardava antes e acima de tudo os princípios e a unidade ideológica e orgânica do Partido. Tinha ojeriza a toda a sorte de oportunismo e liquidacionismo.

Cuidar do Partido

Zé Duarte, João Amazonas e Arruda quando Amazonas volta do exílio.

Ao homenagear o camarada João Amazonas no 13º aniversário do seu falecimento, quisera precisamente falar disto, do cuidado com o Partido. Ele considerava, com base nas leituras que fizera de Lênin e na própria experiência do movimento comunista internacional e da trajetória do PCdoB, que o partido comunista é o principal fator subjetivo da revolução socialista, porquanto é o fator que se relaciona com a consciência de classe e a teoria revolucionária.

É o camarada Batista, durante mais de duas décadas membro do Secretariado nacional e hoje presidente do Partido no Rio de Janeiro, quem conta sobre as suas memórias com o velho João. Já falou disso em intervenções públicas. Num debate sobre os erros e acertos de um partido, segundo a narrativa do Batista, o João dizia que o Partido deve evitar os erros políticos, mas inadmissível mesmo era o desvio do caráter e da essência comunista. Inevitável conclusão: o pressuposto da existência do Partido Comunista e de suas vitórias políticas é a ideologia e a identidade comunista. 

O caráter do Partido

A memória vem a calhar num momento em que o Partido realiza mudança tão significativa em sua vida política e orgânica – a sucessão no principal cargo dirigente, a presidência nacional, em Conferência a realizar-se nos próximos dias.

A deliberação sobre a composição dos órgãos dirigentes do Partido e a designação dos seus titulares não são atos de rotina, nem burocráticos. Como indica a experiência, trata-se de decisão ligada às lutas e atividades que o Partido desenvolve em todos os domínios.

O PCdoB pode orgulhar-se de que desde a legalização, há exatos 30 anos, alcançou e consolidou conquistas históricas em vários âmbitos, como talvez nunca tenha alcançado em outros períodos da sua longeva existência de quase um século. São conquistas na luta política, de massas, na batalha das ideias e no exercício do internacionalismo proletário. É um acervo que fez com que tenhamos dado enormes passos adiante na construção de um partido comunista de quadros e de massas, dotado de uma linha política justa, com ampla ação política, institucional, eleitoral e de massas, portador de uma teoria de vanguarda – o marxismo-leninismo, o socialismo científico.

É porque pretendemos perseverar nesse caminho e construir uma força que integrará a vanguarda do processo de emancipação nacional e social de nosso povo e da luta pelo socialismo, que igualmente, com o indispensável espírito autocrítico que caracteriza uma força comunista, constatamos que o nosso Partido padece de um déficit ideológico, orgânico, político-eleitoral e na sua ligação com as massas trabalhadoras e populares. João Amazonas há tempos advertia para isto. 

A força do Partido emana, ou deve emanar, da sinergia entre a justa linha política, o poder dos princípios ideológicos, a solidez da estrutura orgânica e a profundidade dos vínculos com o povo.

Um grande legado

Não queria concluir esta breve memória sobre o velho João sem me referir ao aspecto principal da sua vida e obra. Nunca é demais lembrar seu papel de formulador político e teórico, como ideólogo marxista-leninista, agitador, propagandista e organizador do Partido.

João encabeçou o processo de refundação do Partido Comunista do Brasil, em 1962, quando atacado pela onda revisionista, liquidacionista e oportunista de direita. Como poucos, o velho compreendia o papel da organização partidária na luta política e dedicou o melhor dos seus esforços para forjar o PCdoB como organização de vanguarda estruturada, ligada às massas e independente. Um vivo organismo de classe para a luta de classes.

Amazonas foi o ideólogo e o dirigente político da reorganização revolucionária do PCdoB. Sob sua direção, os comunistas atravessaram o período mais difícil da existência do Partido, a ditadura militar (1964-1985), na mais estrita clandestinidade.

Amazonas viveu intensamente e enfrentou o período contrarrevolucionário de liquidação do socialismo na URSS e países do Leste europeu, em fins dos anos 1980, começos da década de 1990. Ajudou o Partido a extrair as lições daquela viragem histórica, que marcava a existência de profunda crise na teoria e na prática do movimento revolucionário e comunista. Comandou a autocrítica antidogmática, a partir do 8º Congresso (1992), sem cair no canto de sereia do oportunismo de direita nem do liquidacionismo.

O camarada João dirigiu a formulação de uma estratégia revolucionária, baseada nos princípios do marxismo-leninismo, e de uma tática ampla, combativa e flexível. Ensinou-nos que o partido deve enraizar-se entre as massas, inserido no curso político, enfrentar os grandes e pequenos embates políticos do cotidiano e acumular forças revolucionariamente.

João fazia uma análise implacável sobre as classes dominantes brasileiras. Dizia, na redação do Programa Socialista aprovado na Conferência Nacional de 1995 e ratificado no 9º Congresso (1997): “O desenvolvimento deformado da economia nacional, o atraso, a subordinação aos monopólios estrangeiros e, em consequência, a crise econômica, política e social cada vez mais profunda são o resultado inevitável da direção e do comando do país pelas classes dominantes conservadoras. Constituídas pelos grandes proprietários de terra, pelos grupos monopolistas da burguesia, pelos banqueiros e especuladores financeiros, pelos que dominam os meios de comunicação de massa, todos eles, em conjunto, são os responsáveis diretos pela grave situação que vive o país. Gradativamente, separam-se da nação e juntam-se aos opressores e espoliadores estrangeiros. As instituições que os representam tornaram-se obsoletas e inservíveis à condução normal da vida política. Elitizam sempre mais o poder, restringindo a atividade democrática das correntes progressistas. A modernização que apregoam não exclui, mas pressupõe, a manutenção do sistema dependente sobre o qual foi construído todo o arcabouço do seu domínio”.

Percebendo que a luta democrática e patriótica pelo desenvolvimento, a soberania nacional, em defesa da nação ameaçada pela voragem neoliberal, era no fundo um aspecto da luta de classes, inseparável da luta pelo socialismo na fase peculiar que o Brasil vivia, Amazonas era taxativo em suas conclusões acerca da evolução desse combate. No mesmo documento, o Programa Socialista, dizia: “Tais classes não podem mudar o quadro da

Comício de 1º de Maio de 1989 Lula com João Amazonas.

situação do capitalismo dependente e deformado.
Sob a direção da burguesia e de seus parceiros, o Brasil não tem possibilidade de construir uma economia própria, de alcançar o progresso político, social e cultural característicos de um país verdadeiramente independente. Na encruzilhada histórica em que se encontra o Brasil, somente o socialismo científico, tendo por base a classe operária, os trabalhadores da cidade e do campo, os setores progressistas da sociedade, pode abrir um novo caminho de independência, liberdade, progresso, cultura e bem-estar para o povo, um futuro promissor à nossa Pátria”.

Amazonas tinha um agudo senso tático, fazia diuturnamente análise concreta da situação concreta. Por isso foi, como assinalado acima, um dos pioneiros da candidatura de Lula em 1989, tendo-se destacado como um dos fundadores da Frente Brasil Popular.

Vivemos um momento grave da vida nacional, em que faz falta a presença e a palavra prudente e lúcida de um líder como João Amazonas. Num momento em que é indispensável mobilizar as energias do povo brasileiro na luta pelas reformas estruturais democráticas, como passo para a revolução socialista, e em que a força de vanguarda precisa reafirmar sua essência e identidade, seus camaradas, seus militantes, seu Partido dizem presente ao saudoso camarada João.