Quando a ideologia atinge a obra de arte e limita a sua beleza

O fenômeno artístico pode ser compreendido em termos lógico-conceituais ou escapa de toda compreensão racional? As lições estéticas hoje dominantes propendem claramente para a segunda abordagem, ou seja, para a tese do caráter incompreensível e inexprimível do belo: o que não deveria causar surpresa se se considera o sucesso que conheceu e continua a conhecer o pós-modernismo.

Leonardo Pegoraro*, para o Portal Vermelho

Nutrindo-se da assim dita Nietzsche-Renaissance e do heideggerianismo, este movimento se opôs ao “pensamento forte” do moderno, criticando a fé na possibilidade de conhecer a realidade na sua essência mesma e de atribuir-lhe um sentido.

Visto desta perspectiva, mostra-se decididamente contra a corrente o ensaio de Emiliano Alessandroni, Ideologia e strutture letterarie (Aracane, Roma, 2014, 432 p.), um corajoso “livro de crítica marxista” ̶ como o define Emanuele Zinato no prefácio ̶ que,desde a primeira página convida o leitor a revalorizar a lição hegeliana sobre arte enquanto manifestação sensível e corpórea da ideia, ou seja do inteligível, do espiritual. A ser reivindicada é a centralidade daquela razão a qual os pós-modernos tomam distância.

Rejeitando a ideia segundo a qual o juízo estético seria sempre e só subjetivo, Alessandroni reconduz assim o belo a critérios predominantemente objetivos. Sim, a decodificação em sentido objetivo do belo pode ser difícil, mas nunca impossível: se trata, em síntese, de individualizar quanta ideologia está presente na obra de arte. Ou, em uma relação inversamente proporcional, de apreender como, de fato, quanto mais forte é a ideologia na obra e na sua estrutura, tanto mais limitado corre o risco de ser o seu valor estético.

Uma boa parte do ensaio é portanto dedicada a análise da categoria de ideologia, de Marx e Engels a Pareto, de Gramsci a Rossi-Landi. Alessandroni propõe limitar o significado de ideologia a sua acepção negativa, como sinônimo da marxiana “falsa consciência”. Partindo da celebre tese hegeliana segundo a qual “a verdade é o todo”, a ideologia é assim definida como “unilateralidade que absorve o todo ou que assume através dele um comportamento invasivo”. Uma ideologia é então mais ou menos forte (e assim mais ou menos evidente) segundo o seu “nível de invasividade”. Neste quadro, a obra esteticamente mais bem sucedida é aquela menos ideológica: aquela que melhor sabe apreender e retratar a multiplicidade da verdade em todas as suas partes (aí incluído, portanto, o momento do falso).

Seria esse, por exemplo, o caso do Fausto de Goethe. Um grande exemplo literário de “realismo” e de “paixão viva pela realidade”, capaz de representar o universal sem nunca sacrificar o particular. Uma “síntese global da totalidade”: do universo objetivo e concreto do “trabalho físico” àquele subjetivo da “mobilidade interior” dos personagens. Crítico é, ao contrário, o juízo de Alessandroni sobre autores como Shakespeare, Conrad ou Calvino, os quais ̶ na sua diversidade e na sua grandeza ̶ resultariam “aproveitados… no interior da lógica cultural do próprio tempo”: as suas “representações cronotópicas” parciais e unilaterais ̶ Alessandroni fala de “maniqueísmo geográfico” e “esmagamento temporal” ̶ terminariam de fato por limitar objetivamente o todo, ou seja, o verdadeiro e, consequentemente, o belo.

Não obstante algumas ausências, por exemplo o confronto com as concepções estéticas de Benjamin e de Adorno, Ideologia e strutturre letterarie constitui uma proposta original, capaz de mover-se entre filosofia e literatura, uma relação mais que nunca fecunda na época das especializações acadêmicas.

Doutor em “Filosofia – dialética e mundo humano” pelo Departamento de Ciências do Homem da Universidade de Urbino, Itália. Tradução de Marcos Aurélio da Silva, geógrafo, Prof da UFSC e pós-doutorando em filosofia política na mesma Universidade de Urbino com o apoio do CNPq. Publicado originalmente na Itália em Il Manifesto – quotidiano comunista