Gonzalo e Machuca no Chile de Allende

Santiago, 1973, poucos meses antes da queda do presidente Allende. Gonzalo Infante e Pedro Machuca são pré-adolescentes, alunos do tradicional colégio inglês Saint George e vizinhos de carteira. São amigos. Gonzalo é filho de funcionário da FAO, vive com a família em bairro de classe média – Las Condes. Pedro Machuca é muito pobre e mora numa das favelas da periferia da cidade que são emolduradas pelas montanhas nevadas dos Andes. É bolsista do colégio.

Por Léa Maria Aarão Reis*, na Carta Maior

Cena do filme Machuca - Reprodução

Como pano de fundo, a turbulência política, desestabilização forçada do governo, terrorismo econômico, manifestações histéricas de mulheres, protestos, boicotes, o racionamento de alimentos e o próspero mercado negro acessível aos ricos e aos influentes. Em seguida, os confrontos cada dia mais violentos.

Num grande painel escondendo o terreno baldio por onde passa Gonzalo, diariamente, na sua bicicleta, para visitar os amigos da favela, no começo do filme vemos os dizeres Não à guerra civil. Mais adiante, a palavra “não” está riscada. No final, a frase inteira foi apagada. Apagaram-se as luzes da democracia. A longa noite da ditadura e do horror de 25 anos desce sobre uma geração inteira do Chile.

Machuca (2004, coprodução com França e Espanha) é um filme que já vimos no Brasil – nas telas e nas nossas ruas. Atualmente, há os que desejam reprisá-lo aqui; mas não nas telas. Por isto revê-lo, neste caso sim, nas telas, faz-se atual. É refrescar a memória para tentar que o golpe e a derrubada de governos não se repitam.

Andrès Woods, o diretor, é cineasta, economista de formação, tem 50 anos. É um filho da ditadura de Pinochet. Em 73 era um garoto de oito anos, estudava no St. George’ College, até hoje um ícone da educação católica (e europeia) dos filhos da elite no país. O roteiro que Woods escreveu é inspirado em suas lembranças da época. Seus pais, um arquiteto e uma professora, eram conservadores e formavam contra Allende; mas os estudos de Andrès (na PUC chilena) de algum modo lhe proporcionaram uma visão de mundo solidária e progressista.

Premiado em diversos festivais, Machuca é reconhecido como um dos clássicos do cinema latino-americano. Um dos vinte maiores filmes já realizados no continente e a terceira bilheteria, no Chile. Com seus paradigmas, ele apresenta o monumental abismo que separa, ainda hoje, os pobres e os ricos nos países do continente – situação que teima em se perpetuar com a ajuda dos que, de dentro e de fora do continente, não querem perder o status quo apesar dos esforços dos governos de esquerda e centro-esquerda das últimas décadas.

De um modo singelo Machuca narra também o amadurecimento e o doloroso despertar do menino Gonzalo para a vida adulta através da sua relação de cumplicidade amiga com Pedro Machuca, o garoto da favela. O reconhecimento de um mundo ‘diferente’ do seu, que ele passa a frequentar – o mundo dos miseráveis e dos despossuídos -, e a existência de outras crianças e outros indivíduos que, ao contrário dos habitantes do seu, vivem toda sorte de privações.

Em paralelo, ele observa o universo dos adultos, dos pais burgueses, das suas mazelas, segredos, mentiras, traições e violência, incapazes e desinteressados em enviesar o olhar narcísico do umbigo para o outro mundo, aquele ‘diferente’.

Numa reunião do colégio fino em que a maioria dos pais protesta porque os rebentos estão sendo educados na companhia de meninos favelados, uma mãe modesta e desalentada observa: “É muito difícil as pessoas mudarem para algo ‘diferente’.

Vestidas com roupas estrangeiras, penteadas e maquiladas para a ocasião (um inimaginável ridículo semelhante ao que se viu, em São Paulo, no domingo dos coxinhas) as mulheres paneleiras, em Machuca, perdem a compostura – aliás, nunca tiveram – e xingam meninos e meninas populares: ”Parasitas do estado! Vagabundos, vadias!”

O conflito, na história, se inicia quando o reitor do St. George informa aos alunos que, dali para frente, eles terão como colegas algumas dezenas de garotos ‘diferentes’. Apresenta à classe os garotos pobres. Um dos meninos exclama: ”Mas eu conheço esse! É o filho da lavadeira lá de casa!” Os cotistas de baixa renda cumprem determinação do governo socialista e é assim que Gonzalo e Machuca se tornam amigos.

Enquanto a irmã de Pedro Machuca procura ajudar na renda, em casa, vendendo bandeirinhas nas manifestações de rua e nos panelaços, os meninos passam a acompanhá-la no que lhes parece uma brincadeira, uma aventura. O trio vai se tornando inseparável, a primeira pulsão sexual dos garotos e da menina os deixa mais unidos e é muito bonita a sequência em que os três brincam de se beijar, sentados num lixão da favela bebendo leite condensado nas duas latas racionadas, compradas por Gonzalo e destinadas para a família.

Segundo Woods, a sua influência maior é do cinema neorrealista italiano. Mas é clara também a de Truffaut do Les 400 cents coups. Há histórias escritas e filmadas sobre o período dos anos de chumbo no Cone Sul e narradas sob a ótica infantil tão bons ou melhores. O brasileiro O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburguer é um deles. O argentino Infância Clandestina, de Benjamin Ávila, é outro.

Mas as imagens finais de Machuca não largam o espectador durante algum tempo: as latinhas de leite condensado vazias e pisadas no lixão, e o campo de futebol de várzea agora deserto separam definitivamente Gonzalo do seu amigo. O filme vale uma visita.

Assista ao filme na íntegra: 

*Léa Maria Aarão Reis é repórter da Carta Maior