D.R. Almeida: A criatura

O bar estava cheio, mas não lotado. Era a hora neutra da tarde, quando a noite ainda não caiu, mas ninguém mais quer trabalhar. Momento ideal para tomar um drinque pensando nas cagadas que se fez na vida, e planejando as próximas.

Por D.R. Almeida, exclusivo para o Vermelho*

Ilustração para o conto A criatura - Reprodução

Tudo ia muito bem até que chegou a criatura. No exato momento em que ela entrou, a atmosfera do bar mudou radicalmente. Era quase visível a onda de eletricidade que passou a envolver o ambiente.

Descrever a criatura é perda de tempo. Direi apenas que era linda. Mas devo acrescentar, em nome da verdade histórica, que era uma mulher em sua plenitude, mas jovem o bastante para conservar um jeito de menina travessa, o que a fazia transbordar de encanto lírico e sensual.
Havia outras mulheres no bar. Não sei o que pensavam. Mulheres são misteriosas e indecifráveis. Já os homens estavam claramente admirados e com medo. Principalmente com medo, pois eles adivinhavam que cair nas garras desta criatura é estar condenado ao martírio. Mesmo assim, tudo o que se deseja é ser capturado.

Pois o homem é um ser fraco e manipulável. Sabe da provação que o aguarda, da tortura que sofrerá, mas luta pela agonia como se nela estivesse o segredo da vida eterna.

O garçom, por exemplo. Era até então o retrato do funcionário insatisfeito com o trabalho, com o salário e com a própria existência. Quando a criatura entrou no salão ele curvou um pouco o corpo, como quem quer diminuir a resistência do ar e andar mais depressa, e – de um jeito que ele jamais faria de novo mesmo que vivesse cem anos – puxou a mesa a uma distância colossal da cadeira, para que ela sentasse confortavelmente. Curvado ainda ouviu, concentrado, o pedido: um cappuccino pequeno. Partiu célere como um homem que realmente tem uma missão a cumprir.

Todos acompanhavam com nervosismo o desenlace da história. Ninguém jamais poderá explicar a razão, mas servir com presteza o cappuccino era agora uma questão de honra. Se o pedido demorasse erámos capazes de assassinar o garçom e os copeiros, em desagravo à nossa musa.

Felizmente tudo correu bem, e o cappuccino foi servido. Ela, majestosamente, agradeceu com um sorriso que conseguia ser, ao mesmo tempo (!), superior, tímido e afetuoso. O garçom ficou petrificado. O homem da mesa perto da porta, de boca aberta, olhou para o homem da mesa perto do balcão, também de boca aberta e todos os homens do bar, naquele instante, se entreolharam, com o mesmo pensamento assustado: “esta, é das mais perigosas”.

* D.R. Almeida é escritor e jornalista

A criatura é um conto livremente inspirado em Raymond Chandler