Eduardo Galeano: “O primeiro gesto humano é o abraço”

Uma das últimas obras de Eduardo Galeano foi a poesia El viaje, gravada na introdução do álbum Multiviral da banda porto-riquenha Calle 13. O escritor da América Latina fala sobre o abraço como o mais importante gesto humano.

Eduardo Galeano e René Pérez - Divulgação

Logo depois da morte do escritor, na última segunda-feira (13), a banda publicou em sua página oficial no Facebook uma carta onde o vocalista, René Pérez, relata como foi seu encontro com Galeano.

Na ocasião o cantor iria fazer a proposta para a participação no álbum e o encontro encerrou com um olhar sincero de Galeano dizendo “voltaremos a nos ver”.

A Viagem

Oriol Vall,

Que cuida de recém nascidos
Em um hospital em Barcelona
Diz que o primeiro gesto humano é o abraço
Depois de chegar ao mundo
Nos primeiros dias
Os bebês manoteiam

Como se buscassem alguém

Outros médicos
Que se ocupam dos já vividos
Dizem que os velhos
Ao fim de seus dias
Morrem querendo alçar os braços

E assim é a coisa
Por mais voltas que demos ao assunto
Por mais palavras que coloquemos
A isso, assim de simples
Se reduz tudo
Entre a agitação
Sem mais explicação
Transcorre a viagem

No final Galeano ainda “convida” os ouvintes a “caminhar pela Calle 13” porque estarão “muito bem acompanhados”.
 

Leia a carta de René na íntegra:

“Eram como duas horas da tarde. Logo depois de responder vários e-mails o encontro se tornava real. Estava prestes a conhecer, não só um dos maiores escritores da América Latina, mas também o único escritor que foi capaz de capturar a atenção de uma criança índigo, que agora, depois de adulto, carrega um déficit de atenção e vive em uma nuvem de um país que não existe.

Depois de três quadras, dobrando sempre à direita, nos refugiamos em um pequeno restaurante italiano. Na mesa havia massas ao dente, pão, azeite, um pouco de pimenta e vinho. A princípio me sentia nervoso, não sabia como começar, sobre quais temas falar. Tinha em minha frente um livro aberto enquanto tomava vinho e ia me sentindo com um livro sem letras.

Como se não bastasse, em minha cabeça se fazia cada vez mais recorrente o aviso de que sou um tipo que reprovou por cinco vezes em Porto Rico antes de me graduar, sem nenhuma credencial intelectual, com pouquíssimas leituras na cabeça e com uma facilidade incrível para me perder em qualquer conversa. Sabia que ao final seria delatado por meus olhos distraídos que olham sem olhar e atendem sem atender.

Só tinha um jeito de sobreviver a este encontro, então decidi confessar meu ‘padecimento’. Por alguma estranha razão, neste momento todos os pratos e copos deixaram de falar para me ouvir dizer: ‘Eduardo, tenho um problema, sou muito distraído e às vezes é muito difícil seguir uma conversa’. Ao que ele prontamente respondeu: ‘eu também sou distraído, e dos piores’. Deste momento em diante tudo fluiu de forma natural, como se fossemos amigos de anos. Eduardo começou a falar enquanto minha esposa e eu escutávamos. Foi como escutar o tempo narrando histórias.

Compartilhou os escritos que tinha em uma de suas cadernetas em miniatura, onde escrevia uma ideia por página. Nesta época andávamos pela cidade de Nova York. ‘As cidades resolvem 90% dos problemas que causam’, lia em um dos escritos naquela pequena caderneta.

Nos contou sobre todas as suas viagens pela América Latina, o período em que esteve acampado com os mineiros do Chile, as histórias de seus amigos que foram lançados de um avião com as vísceras ao ar durante a ditadura na Argentina, seus anos de jornalista, seu tempo na Espanha. Nos falou sobre sua família, sua companheira, seus filhos, sua sobrinha, seus amigos escritores, seus não tão amigos escritores, seus encontros, suas despedidas; toda uma vida contada frente a uma mesa que criou raízes e ramas que romperam as janelas daquela tarde que já era noite.

O vinho não acabava e nunca acabou, porque seguiu em nossas cabeças até nossa saída daquele pequeno restaurante. E assim, abraçados ombro com ombro, como se fossemos companheiros de toda uma vida, o acompanhamos até chegar a seu hotel.
Lhe perguntei se precisava de ajuda para chegar a seu quarto e me olhou com uma cara de alguém que sobreviveu a momentos muito piores que uma subida de elevador com três garrafas de vinho na cabeça. O compreendi totalmente e então decidi apenas lhe dar um abraço. Logo depois do abraço, apertando com força a mão com a qual escrevo e quase falando com os olhos me disse ‘voltaremos a nos ver’. Assim me despedi de uma das melhores histórias que vivi, o melhor dos contos.

Obrigada por este dia, Eduardo. Te queremos muito, René, Sol e Milo*”.

 

O disco, lançado em 2014, contou também com a participação especial de Julian Assange, Tom Morello, guitarrista da banda Rage against the machine e da cantora palestina Kamilya Jubran.

*Sol e Milo são, respectivamente, a esposa e o filho de René.

Ouça a poesia El Viaje, recitada por Galeano na introdução do disco:

 

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Do Portal Vermelho,
Mariana Serafini