Trinta anos sem Cora: poesia marcada por memórias de vida simples

“Este nome não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina. (…) Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade varia. (…) Assim é Cora Coralina, repito: mulher extraordinária, diamante goiano cintilando na solidão (…).”

Cora Coralina - Reprodução

Publicadas em 1980 no Jornal do Brasil, as palavras de Carlos Drummond de Andrade levaram a obra da poetisa Cora Coralina – que morreu há 30 anos, no dia 10 de abril de 1985 – ao restante do país.

Nascida na cidade de Goiás em 1889, Cora começou a escrever em 1911. Eram contos e crônicas publicados nos jornais da época. Depois da Semana de Arte Moderna de 1922, ela se reconheceu no modernismo e seguiu esse caminho, ficando conhecida como poetisa.

“O que Cora produziu está muito bem escrito no ideário modernista, ela trabalha com verso livre, busca o cotidiano, o coloquial, ela tem versos longos contaminados da prosa. Pensando que escreveu até as vésperas da morte, ela continua escrevendo em um tempo contemporâneo, mas persiste nesse ideário”, explicou a professora de literatura da Universidade Federal de Goiás (UFG) Goiandira de Fátima Ortiz de Camargo.

A pesquisadora diz que o tema da memória e a recuperação do passado foram recorrentes na poesia de Cora. “A cidade, a sua geografia, os casarios, os becos, as pessoas mais simples, a irmandade de Cora com os páreas, a mulher da vida, o presidiário, aquele que está à margem, a solidariedade, tanto que o aniversário de nascimento dela, 20 de agosto, se tornou o dia do vizinho em Goiás. Ela acredita que vivemos com o outro e temos que cantar o outro com uma responsabilidade social.”

“Cora é uma poetisa que tem uma linguagem mais rude, como as pedras da cidade de Goiás. Embora sua poesia transcenda limites de tempo e local, é uma poetisa de fala mais direta, as imagens dela são como incrustações no meio dos versos”, define Goiandira.

O primeiro livro de Cora, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais (1965), foi publicado quando ela tinha 76 anos. “A obra dela é uma obra real, ela toca as pessoas, não é uma obra voltada ao sentimentalismo, mas ela não usa palavras negativas em sua obra. ‘Não posso, nunca, jamais’ são expressões que não aparecem, mas aparecem as palavras dureza, pedra. A pedra é uma palavra recorrente na sua obra, no sentido de dureza, de enfrentamento da vida”, explicou a diretora do museu Casa de Cora Coralina, Marlene Vellasco.

A poetisa, que viveu até os 95 anos, ainda publica mais dois livros em vida: Meu Livro de Cordel, em 1976, e Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha, em 1983.

Para a professora de literatura da Universidade Estadual de Goiás (UEG) Ebe Maria de Lima Siqueira, Cora Coralina fez uma escolha pela simplicidade. “Ela escreveu sobre gente simples, sobre as mulheres que ela via passar pela janela, a lavadeira, a mulher roceira, a proletária, a linguaruda.”

Não Sei

"Não sei…
se a vida é curta ou longa demais pra nós,
mas sei que nada do que vivemos tem sentido,
se não tocamos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser:
colo que acolhe, braço que envolve,
palavra que conforta, silêncio que respeita,
alegria que contagia, lágrima que corre,
olhar que acaricia, desejo que sacia,
amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo,
é o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela não
seja nem curta, nem longa demais,
mas que seja intensa, verdadeira,
pura. Enquanto durar." 

Meu Destino

Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes –
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida…
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida…

O Cântico da Terra

Eu sou a terra, eu sou a vida.
Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.

Eu sou a fonte original de toda vida.
Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.
A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de teu gado
e certeza tranqüila ao teu esforço.
Sou a razão de tua vida.
De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da lida.
Só em mim acharás descanso e Paz.

Eu sou a grande Mãe Universal.
Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.

A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.
Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.

E um dia bem distante
a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu seio
tranqüilo dormirás.

Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.

Ofertas de Aninha
(aos moços)

Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.

Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.

Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências
do presente.

Aprendi que mais vale lutar
do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.

Cora Coralina

Com informações da Agência Brasil