Marcelo Ariel: Meu nome é nuvem    

Marcelo Ariel é poeta, performador e dramaturgo. Já publicou diversas obras, entre elas, Tratado dos anjos afogados (2008), O Céu no fundo do mar (2009), Conversas com Emily Dickinson e outros poemas(2010), A segunda morte de Herberto Helder (2011) e Teatrofantasma ou o doutor imponderável contra o onirismo groove (2012).

 

 

Ariel Marcelo - Arquivo pessoal

Nesta semana Marcelo contribui com a sessão Letras Vermelhas, do Prosa, Poesia e Arte com o poema Meu nome é nuvem que será publicado como plaquete pela Lumme Editorial.

Leia o poema na íntegra:

Meu nome é nuvem
(Urchatz Gaza)

Para Mahumud Darwich, Samih Al Qassim, Tawfik Az-Zayad, Fadwa Tuqan, Salim Jabran, Fawzi ‘ Abdallah, ‘ Issa Al Lubani, Muhammad Al Qissi, Khaled Houssein, Claudio Daniel, Hayil Assaqilah, Um ‘ Ammar Hammuda Az-Zaghid, Habib Zaydan Chwikri, Rachid Hussein, Hannah Ibrahim e para todas as crianças mortas

I

Esta criança incendiada
em Gaza
é a mesma que está brincando
nos trilhos do trem no Brasil
em alguns minutos
também será assassinada,
não, não são cães
são índios
vagando pela estrada
alguns irão morrer de fome
deitados na calçada
Leonardo Da Vinci
disse para a senhora
que os aldeões
chamavam de ‘ a mais feia ‘
que ela tinha aquilo que um dia
iria ser chamado
de ‘ o que é maior do que a beleza
por ser único e singular’
enquanto os outros cadáveres
tinham todos o mesmo rosto.
Agora vemos a mãe da criança
por causa do cansaço
parar de chorar

II

Em nossa ausência
floresce
em vão
essa devastadora expansão
que ainda é vida,
destino das coisas
que desconhecem
vossa presença.

A visão da árvore
em Jerusalém,
memória
de um vôo imóvel
que em teu olhar
se move.
Ausência e memória
que se tocam
como o Sol

Sua é a morte
se erguendo no ar
como luz alada,
colunas finas,
nossos raios
caindo na enseada,
se deitam
no leito
de terra,
que és
muito longe
do rio
que o oceano quer

Tudo conter
sem corpo algum ter.
Eis a sina dos divinos
Que o tempo
sempre cessando
ousava conter
e a vida
sempre cessando
ousava ser
águas que são fogos
olhando

III

Você é a luz
sentada
no banco da praça
transformada em esquecimento
feito de sonhos
com sementes de poemas dentro.
Paisagens que jamais serão escritas,
frases para o vento
que ainda é carne,
para as luzes
que ainda são olhos,
para as Estrelas que se levantam
milímetros por século
para ver o que está em volta,
Estrelas-animais
olhando de baixo para cima,
sentadas como Lázaro,
se apagando rápido demais
como cidades.

Luz acordando pássaros
pousados nos galhos da árvore
que liberta do sono incendiado.

Canto que é alegria desmaterializada
deslizando dentro do tempo
o oceano girando
no escuro cada vez mais espacial
até que num momento
para de girar e depois de completar
uma Galáxia
em volta de todos os sonos,
de tudo e de qualquer coisa,
se cobre de explosões
e volta a se deitar
no banco da praça
que será em instantes
absoluta
porque não estará mais lá

IV

Com as chaves no sangue
Eles se levantarão de seus túmulos
Como o mar caminha até as montanhas
em seu corpo de nuvem
e entrarão
novamente em suas casas

Com as chaves dentro
dos ossos
Eles irão acordar
do sono vertical
do tempo passado contido neste tempo
e entrarão
novamente em suas casas

dentro do Sol

V

Um anjo não veio segurar as mãos
do soldado
disse a pedra
ao se lembrar de Abraão.

Não há mel
dentro do cadáver
das crianças
como naquele Leão
que foi até o fim
um enigma para Sansão
antes que ele
sem olhos em Gaza
com o pensamento
nessa criança
ao aproximar suas mãos
das colunas
por séculos e séculos
que virão
unisse com a força de suas mãos
justiça e vingança
como se fossem
o mar e sua espuma

VI

Ame o que você odeia
cantam as hostes celestes
não podemos ouvir
e seguimos
disseminando
a peste
chamada
Guerra
Asas trituradas em trincheiras
improvisadas
com tijolos, sofás
e restos de ruínas
Não são asas
são corpos de criancinhas,
de suas cabeças
separadas
o brilho do orvalho
se refaz
e sobe até
um jardim
onde cresce
sem alarde
uma flor
que nenhuma bota de soldado
esmagou
que nenhum raio de explosão
alcançou
‘ Palestina’
diz o poeta
‘Você é esta flor’

VII

O Arcanjo Gabriel comenta sobre os corpos dos soldados mortos

Primeiro aparece uma escada
e os corpos entram uns dentro dos outros
O corpo do assassinado dentro do corpo do assassino
como se fossem nuvens,
depois eles se convertem em orvalho
e aparecem nos seus sonhos
onde não existem
fronteiras, porque não existem países
Teus sonhos são a verdade

VIII

O Anjo Azrael responde ao comentário do Arcanjo Gabriel

Os corpos dos soldados mortos
Eu os cubro com minhas asas
depois o tempo para eles desaparece
os projéteis brilham
quando os toco com meus dedos
de névoa
o sangue é transformado em luz
o rosto deles descola e eu visto a pele
de todos os mortos
Sou uma escada que sobe pelo oceano
Até que aqueles que
esquecem seu próprio rosto
cheguem finalnente nos céus
e contemplem A face
e ao contemplar a face entendem que
Seu nome, seu País e seu corpo
Sempre foram nuvens

Do Portal Vermelho