Precisamos de heróis sem nenhum caráter?

 

Vivemos tempos difíceis. A economia e a política tem falhado em resolver os problemas mais elementares dos brasileiros. O 15 de março ainda arde na retina e outras mobilizações já se articulam para o mês de abril. Tais datas podem ficar marcadas na história do Brasil, assim como ficaram outros dias de março de 1964, marcados pelas marchas com Deus Pela Família e Liberdade em São Paulo e outras cidades do País. Aquelas marchas de outrora lastrearam os articuladores do Golpe Militar que duraria 21 anos no país e que culminou com o amordaçamento da imprensa, a tortura e assassinato daqueles que levantavam vozes contra a ditadura.
Além da euforia e uma certa histeria gerada pelos acontecimentos recentes, há uma série que questões que decorrem destas mobilizações: Que fatores levam a sua ocorrência? As motivações estão claras? E principalmente, quais podem ser as consequências destes atos políticos? Haverá, de fato, o Impeachment? Este artigo refletirá sobre estas questões. A começar sobre os eventos que levam às mobilizações.

Alguns especialistas e políticos profissionais tem se manifestado buscando identificar uma relação entre os protestos recentes e aqueles ocorridos em junho de 2013. A relação, contudo, tem sido desmentida pelos dados que mostram que os atores dos dois atos não representam exatamente os mesmo substratos populares[2].

Por outro lado, acredito que seja mais razoável estabelecer relação dos protestos de março 2015 com o processo político de 2014. A eleição presidencial afunilou-se em níveis de acirramento e polarização inéditos no Brasil. Este acirramento culmina com novas tecnologias que permitem o contato em rede e a disseminação de informação curta e instantânea. Contudo, tal acirramento não seguiu-se, necessariamente, de uma politização ou aprofundamento de debate político. Para dizer de outra forma, não constituiu-se naquilo que os filósofos políticos chamavam de esfera pública comunicativa. Como espaço de amplo e aprofundado debate político, salutar para as democracias.

O alto nível de disputa observado na eleição presidencial de 2014 gerou táticas eleitorais presentes inclusive nos debates, repreendidas moralmente por parte da população. Logo depois de encerrada a apuração pode-se viver a ressaca advinda desse processo. Apenas uma semana depois do resultado das eleições, já no 1º de novembro, se organizaram os primeiros protestos pela deposição da presidente[3] (FOLHA SP- 01/11/2014).

É certo que a convocação dos protestos do dia 15 se fez PRO-IMPEACHMENT. Porém, não há exatamente uma clareza sobre quais sejam as pautas de reivindicação/insatisfação. Há uma série de discursos que revelam insatisfação com a corrupção, uma parte do coro pede a saída imediata do PT do governo, outros contentam-se com a queda da presidenta, e há ainda aqueles que pugnam pela reforma política. Os desdobramentos desta ampla pauta são inimagináveis, e não tem sido discutidos, quer me parecer, suficientemente.

Vejamos, se houver o Impeachment, qual seria a sua motivação jurídica? Quem assumiria o poder? Há muitos que reivindicam novas eleições sem imaginar que tal não ocorreria, e que, de acordo com a Constituição, quem assumiria seria o Vice-Presidente, ou no seu impedimento, o Presidente da Câmara. Quanto a reforma política, não se tem uma idéia clara de como seria essa reforma e qual o seu conteúdo, já que ela pode inclusive caminhar para um modelo mais restritivo da participação popular. Por exemplo, os protestantes são favoráveis ao chamado voto em lista fechada? Ou ao financiamento publico exclusivo de campanhas eleitorais? E quanto ao voto distrital e o fim das coligações ou a imposição de cláusulas de barreira? Seria o fim do pluralismo político? Como se vê, as questões estão longe de ser simples, e a sua complexidade, as consequências concretas de sua materialização, exigem um amplo debate, que parece, está longe de ocorrer, diante da completa ausência de diálogo entre as opiniões políticas divergentes.

Quanto as consequências, dos atos previstos a ocorrer no dia 15, estas são incertas. A futurologia é um exercício pouco recomendável para cientistas políticos. O que podemos fazer é prever, sob um horizonte ainda bastante nebuloso, é quais são os campos de possibilidades. Exercitarei duas: 1) a mobilização popular permanece nas ruas mobilizando grandes contingentes de pessoas e a partir daí pressionariam não somente o Planalto mas também o Congresso, o que poderia resultar numa mudança de posição dos partidos que sustentam o executivo. A começar pelo PMDB, que por ora, tem expressado rechaçar a idéia de impeachment. Entendendo-a descabida como manifestou o vice-presidente no dia 13 de março. (FOLHA DE SP- 13/03/2015). Essa mudança de posição poderia abrir os flancos de defesa da Presidente no Congresso, o que a colocaria em péssimas condições políticas de sustentação; 2) apesar do apelo popular, os partidos da coalizão governista no congresso podem ter estímulos políticos mais fortes para continuar apoiando o executivo. A presidente atende aos desejos dos partidos da base aliada, como vem fazendo, e abre mão de sua agenda política enquanto durarem as manifestações, a mobilização popular, e a fase de apuração e enquadramento da operação lava jato. Este processo levaria a um desgaste lento e gradual do governo que seria testado nas eleições de 2016. A partir daí poderia ter lugar uma nova reconfiguração política, que poderá levar, a depender desse processo à perda de apoio político da presidente no Congresso. Este sim, seria um cenário bastante adverso, e no mínimo, o ciclo de poder do PT seria interrompido em 2018.

Independentemente dos resultados, o certo é que a população brasileira ainda está aprendendo a viver sob um regime democrático, mal saídos que somos de uma ditadura que minou o exercício da cidadania por mais de 20 anos. O que é presente, é uma "Insatisfa mãe" para usar a expressão de Macunaíma, nosso herói sem nenhum caráter, com as instituições democráticas vigentes (Partidos, Congresso, Executivo, Judiciário).

Por fim, colhe-se deste protesto que o cidadão brasileiro, tem dado mostras de não ser exatamente o "homem cordial" de que falou Sérgio Buarque de Holanda, no livro Raízes do Brasil. Mas, por outro lado, ainda está aprendendo a canalizar esta insatisfação. O que não podemos, em nenhuma hipótese, é esperar que desçam dos céus aqueles heróis que virão a salvar a pátria de forma rápida e eficiente, como se fosse magicamente possível em um ato expurgar todos os problemas políticos e econômicos que nos assolam. Principalmente se foram heróis daquela categoria que tem pouco apreço pela democracia e pelas suas liberdades. Somente segundo os métodos democráticos assegurados na constituição é que pode-se esperar que possamos ver-nos livres de tais problemas. Isto porque os problemas políticos não podem ser debelados de forma instantânea como muitas vezes se espera. As questões são complexas, e as respostas dependem de relações de força ainda mais complexas. Somente a persistência democrática, com o controle e a vigilância constante, acompanhada do debate necessário podem levar o Brasil para o próximo e mais aprofundado nível de democracia. As democracias não se fazem com heróis, individualmente, mas coletivamente, com a maciça participação de todos através da pluralidade de formas asseguradas na Constituição.

Jeison Giovani Heiler
Graduado em Direito (CATOLICA SC)
Mestre em Sociologia Política (UFSC)
Doutorando em Ciência Política la UNICAMP
Autor do livro "Democracia o Jogo das incertezas" (2014)

[2] A comparação pode ser feita com dados colhidos pelo instituto de pesquisas Datafolha. Para conferir dados de junho de 2013, disponível: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1296886-em-protesto-de-sp-maioria-nao-tem-partido-diz-datafolha.shtml e março de 2015: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/03/1603885-maioria-foi-as-ruas-contra-corrupcao-diz-datafolha.shtml

[3] http://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/30082-protesto-pede-impeachment-de-dilma