Urariano Mota: Os ossos de Cervantes

Dos jornais à televisão todos falam de uma das melhores descobertas: os restos mortais de Miguel de Cervantes. Como aqui: "Pesquisadores dizem que ossadas são de Cervantes”.

Por Urariano Mota*, especial para o Vermelho

osso de Cervantes - Aranzadi Science Society

Restos mortais do autor foram descobertos numa igreja de Madri em janeiro. Lesões historicamente atribuídas ao escritor espanhol ajudaram os investigadores a identificar as ossadas.

Segue um trecho da reportagem feita em Madri pela jornalista Luisa Bellchior para a Folha:

“Pesquisadores afirmam que parte de fragmentos de ossadas encontradas nos fundos de uma igreja no centro de Madri são de Miguel de Cervantes. Foi o que disse nesta terça (17) o antropólogo Francisco Etxeberría, responsável por uma extensa operação do governo espanhol para encontrar os restos mortais do escritor espanhol.

Em conversa com a Folha, Etxeberría explica que todas as evidências, encontradas nas criptas da igreja do convento das Trinitárias, apontam para a descoberta, um fato histórico na cultura espanhola.

‘Apenas não há certeza absoluta por causa do teste de DNA, mas todas as outras evidências levam ao diagnóstico de que se tratam dos restos mortais do escritor espanhol’, conta Etxeberría".

Mas nada falam que a maior prova e pista vieram do autorretrato do autor, que ele, a seu modo irônico e verdadeiro, escrevera no prólogo do livro Novelas Exemplares. Veja o trecho original e traduzido:

“Éste que veis aquí, de rostro aguileño, de cabello castaño, frente lisa y desembarazada, de alegres ojos y de nariz corva, aunque bien proporcionada; las barbas de plata, que no ha veinte años que fueron de oro, los bigotes grandes, la boca pequeña, los dientes ni menudos ni crecidos, porque no tiene sino seis, y ésos mal acondicionados y peor puestos, porque no tienen correspondencia los unos con los otros; el cuerpo entre dos extremos, ni grande, ni pequeño, la color viva, antes blanca que morena; algo cargado de espaldas, y no muy ligero de pies; éste digo que es el rostro del autor de La Galatea y de Don Quijote de la Mancha , y del que hizo el Viaje del Parnaso , a imitación del de César Caporal Perusino, y otras obras que andan por ahí descarriadas y, quizá, sin el nombre de su dueño. Llámase comúnmente Miguel de Cervantes Saavedra. Fue soldado muchos años, y cinco y medio cautivo, donde aprendió a tener paciencia en las adversidades. Perdió en la batalla naval de Lepanto la mano izquierda de un arcabuzazo, herida que, aunque parece fea, él la tiene por hermosa, por haberla cobrado en la más memorable y alta ocasión que vieron los pasados siglos, ni esperan ver los venideros, militando debajo de las vencedoras banderas del hijo del rayo de la guerra, Carlo Quinto, de felice memoria”.

"Este, que aqui vedes, de rosto aquilino, de cabelo castanho, de testa lisa e alta, de olhos alegres e nariz adunco, ainda que bem proporcionado, de barbas de prata que, há mais de vinte anos foram de ouro, de bigodes grandes, boca pequena, dentes nem de mais nem de menos, porque são apenas seis e, ainda assim, em má condição, muito mal dispostos, pois não têm correspondência uns com os outros; o corpo, entre dois extremos, nem grande, nem pequeno; de cor viva, mais branca do que morena, de espáduas um tanto largas e de pés não muito ligeiros; este, digo, é o retrato do autor de A Galateia e de Dom Quixote de la Mancha e daquele que fez Viagem do Parnaso, à semelhança de César Caporal Perusino e outras obras que andaram perdidas por aí, talvez até sem o nome de seu dono, que se chama Miguel de Cervantes Saavedra. Foi soldado durante muitos anos, escravo por cinco anos e meio e foi aí que aprendeu a ter paciência na adversidade. Perdeu, na batalha naval de Lepanto, a mão esquerda com um tiro de arcabuz, defeito que, embora pareça feio, ele o considera formoso por tê-lo conseguido na mais memorável e difícil das ocasiões que os séculos passados jamais viram, nem hão de ver os séculos vindouros, lutando sob a bandeira vencedora de Carlos V, filho do raio da guerra, de quem se lembra com muita saudade”.

É mais um caso em que a literatura pode ser prova científica.

*Urariano Mota é escritor e jornalista pernambucano, colunista do Portal Vermelho