Dia internacional da mulher: oito poesias sobre 8 de março

O colaborador do caderno Prosa, Poesia e Arte, Claudio Daniel, fez uma seleção de oito poetas que abordam a questão da mulher com sensibilidade, determinação e força. 

Confira os oito poemas:

Micheliny Verunschk

Diante do altar dos sacrifícios

Em memória das mulheres mortas
no campo de algodão
cantemos a semente inviolada.
Em memória de Verônica adormecida
em sua infância eterna
cantemos a casa indestrutível.
Em memória de mim
e de minha irmã
e de minha prima
e de minha amiga
que tombamos
entre o ranger dos ossos
e o assobio dos tiros
cantemos ainda.
Cantemos a memória
e a nossa antiga avó
pega a laço.
Cantemos a memória
e as unhas extirpadas
no quarto de despejo
da velha ditadura.
Cantemos a memória
essa cadela
que
[22 balas
11 perfurações à faca
àcido no rosto
carne infibulada]
não morre
não morre nunca.

Micheliny Verunschk, poeta e historiadora, nasceu em Recife (PE), em 1971. Publicou os livros de poesia Geografia Íntima do Deserto, O Observador e o Nada e A cartografia da noite.

Priscila Merizzio

jaz ali uma centelha lasciva
estuprada pelo cara mais velho
e jogada à necrópole das meninas
que trocaram a candura por rugas

* * *

meu vizinho me olha com uma luneta
aceno por trás das petúnias

palavras esparsas
na BR-116
funestos vacilos

eu barganharia perdão
e você saberia, finalmente:
carnavais fabricam nébulas

a férula de Eros tolhe nossa sinastria

(Poemas do livro Minimoabismo)

Priscila Merizzio nasceu em Curitiba (PR). Publicou poemas em blogues, sites e revistas de literatura na internet, entre elas Germina, Cronópios, Mallarmargens e Zunái. É autora do livro de poesia Minimoabismo (Ed. Patuá, 2014).

Nina Rizzi

e danço um tango com você

eu li nas tls do mundo que mazombos e mazombas
acham bem normal um estupro, que as mina tão se entregando
assim facim facim
e eu lembro que os afegãos estupram mulheres de burca
porque elas exageram no kajal e rímel
eu ouço que uma menina de 8 dá rindo o que eu não dou chorando.

tenho vontade de vomitar enquanto olho o vão do metrô que nunca vai chegar.
não sai nos jornais, inúmeras gentes – essas mulherzinhas também –
se jogam ali todos os dias.
eu não vomito. hoje é aniversário da maria e quero enfeitar seu corpo
de flores, de cheiros e uivos.

toda vez que penso na maria tenho vontade de chorar.
eu perdoo o mito da superioridade de kipling. perdoo o esquerdismo do ggm.
eu perdoo o oportunismo dos poetas do meu tempo.
você, peço licença ao seu pai exú, te perdoo não.
não engulo a sua arte e te mataria por isso,
sr. polanski, sr. brando, sr. aleijadinho.

penso nas normalidades desses senhores

ela se insinua
é pelo cinema, é por amor
por deus, deixe – viver a vida

ora, uma maria assim tão dada
uma maria assim tão nua
uma maria assim com virgindade tão apertada

uma maria como todas as outras, pronta pra violação.

maria, seus olhos imensos duas amêndoas me comovem.
sei que não sei dar amor a quem me estende a mão
eu amo o feio e a deformação
mas olha, você me olha
e eu só quero encher seu corpo das flores mais lindas

eu te amo maria
seu território também é meu
seu silêncio também é meu
amo você todos olhos moles, todas as marias violadas,
anônimas.

Nina Rizzi, paulista radicada em Fortaleza/CE. É escritora, historiadora e arte-educadora. Tem textos e poemas publicados em antologias, revistas e em várias páginas da internet, entre elas, Germina e Zunái. Publicou os livros de poesia Tambores pra N’zinga e A duração do deserto.

Greta Benitez

Finíssima

A mulher gigante chega à cidade
no centro tropeça em prédios
quase cai
mas arruma a fivela da sandália
sentada sobre o Edifício Itália.
Com o tédio de sua beleza iluminada
logo pela manhã
enrola seu interminável cachecol
acende um cigarro no sol
e lixa as unhas no Copan.
Por seus passos a cidade estremece
quando anoitece
sem que ninguém veja
espia por trás da igreja
a noite acesa na Praça Roosevelt.
A cidade cuida dela
para que nada maltrate seu imenso coração
já que uma lágrima apenas
causaria uma inundação.
Finíssima:
champagne e ternura
um olhar que vai além.
Assim ela cuida da cidade também.

Greta Benitez (Curitiba-PR) é poeta, colaborou em diversos sites e revistas literárias e publicou os livros de poesia Rosas Embutidas (1999), Café Expresso Blackbird (2006) e Canção antique (2014).

Mar Becker

Perséfone

I

penso na mulher que é inacessível como uma estrela de sal. um cálice, uma chaga em backing vocals no cair das horas. penso na mulher que pensa na palavra

e a palavra se faz aos poucos nas bocas das demais mulheres. com a matéria das flores sonâmbulas e do marfim.

II

sonho ou assédio
lunar,

meninas que se desgarram de si mesmas,

meninas que flutuam como abajures mortuários em torno das bonecas. depois se abaixam para beijá-las na testa e imantar seus corpinhos de pano com relâmpagos.

*

meninas que não falam, magras,
inacessíveis,

tantas meninas, e são altas, e cheiram a algodão e lágrimas.

nos cabelos um nevoeiro de teias de aranha. na pele os sinais em sete eclipses: lua ilícita, lisérgica. a sombra no púbis, no ânus, nos covis das axilas. uma única e mesma noite atravessa os séculos pela boca das mães até a boca das meninas,

e das meninas às bonecas,

num processo difícil de perpetuação
da fome.

Mar Becker (Passo Fundo–RS) é poeta. Publicou a plaquete Perséfone pelo selo Poesia Viva, editado pelo Centro Cultural São Paulo, e colaborou em diversos sites e revistas eletrônicas de poesia, entre elas Zunái, Cronópios, Germina e Mallarmargens.

Andréa Catrópa

a cabeça doce
de sua mãe tem cabelos
nas ventas e pensa
em receitas
saudáveis ou açucaradas e jamais
resolve essa contradição
complementar, é fato
entre doce salgado, o que pode o que deve,
o que quer ou não
a cabeça de sua mãe
doce pretende ser também
saudável mas quando lhe ataca
a dor
de cabeça fica fraca
doida obsessiva
(assoma-se sua vontade
Insubordinada)
ela pensa em cristalizar-se na calda
fumegante que borbulha no tacho
como uma forma edulcorada
de suicídio ela pensa em perseguir
com sua colher de pau
alguns meninos
meninas malvadas
promete anota em seu caderno
secreto de receitas pensamentos
fazer litros de cicuta amarga
tornar-se doce mãe terrorista cozinheira
que persegue escroques
na falta de herois que o façam
ela fode e pare e nutre
todo um berçário
que crescerá em sua escola

Andréa Catrópa (São Paulo – SP) é poeta e doutora em Letras pela Universidade de São Paulo. Publicou o livro de poesia Mergulho às avessas.

Andréia Carvalho

atrás de cada olho esterilizado

o corpo lúteo rendado
para o velorio das teias
em overdose lunar

os folículos, as púrpuras constelações,
despedem-se do respeitável público
antes púlpito

as trompas são serpentes
enjoadas do éden
loucas de lua
e hóstias cruas

no silvo do espelho pituitário: a partenogênese
da virgem circense
volátil e viril

quem disse que o anjo estrógeno
ainda será o rei paterno?
nesta roda de nascimentos
eunucos
seus olhos de anunciação
são terríveis conta-gotas
uma nuvem de gafanhotos
anticolisão

quantos ovos carbonizados
serão ainda necessários
para que o sol descanse
andrógino e sem coroa
no império dos venenos
luteinizantes?

hormônios em êxtase de ocasos,
digo-vos: o aplauso do cosmos
arrebenta o tímpano
do manto niquelado
e canta:
o manso salvador não nascerá
humano
de meu parto eloquente

ele sibila / cobra / criptonita

adeus

Andréia Carvalho (Curitiba-PR) publicou os livros de poesia A cortesã do infinito transparente (2011), Camafeu Escarlate (2012) e Grimório de Gavita (2014), todos publicados pela Lumme Editor. É editora de arte da Zunái, Revista de Poesia e Debates, e uma das editoras de Mallarmargens.

Adriana Zapparoli

Segundo ato

frustrado-gris em quarta-feira nublada.
a ambiência era fétida, rota de drogados e adictos, e mijo entalhado nos muros..
ela: "- estou em são paulo…."
ele – (silêncio) e pensava… sua essência de pacto com mutismo … melhor não dizer nada. não disse. nada disse. e pensava – que diabos é isso agora!
ela "- beijo, bom dia. " (seguindo o que previa porque o que ela gostava, mesmo, era de promover leves taquicardias)
ele: ' – beijo, bom dia…"

então, ela viu o cinza, ainda mais cinza, tão predominante na estação da luz. mesmo aquela hora do dia a sua essência era de rotas, fatos, hiatos e campinas.

* * *

são 5 segundos para abafar toda semente no cio. são 5 segundos, em um segundo, para afiar a moleira no fio. são cinco segundos para estripar da foice o cabelo em cútis e o seu arrepio (tão) óbice-cúmplice… são 5 segundos para não surgir com o mesmo olhar de um pássaro imbecil. são 5 segundos para pingar a língua em fastio-febril e o estado cálice-ápice em calafrio,

são os cuspes … os seus. por um estado "mutis" em dia gris.

* * *
é besouro tec-tec castanho escuro. é pirilampo em escroto diminuto. é caminho oblíquo em colisão de inseto confuso; é cudelume em rota de fuga, e passado sem volta e sem contrafuga… porque em estradas estão inclusos os vaga-lumes, manchas apagadas e cantos protusos. há avessos difusos. há mentiras obscenas, noctiluzes reclusos em copos de sisos, de cerveja em antidepressivos e em fumo. são insetos de luz, sem órgãos …

pagãos bioluminescentes

e

luciferina oxidada em oxigênio, em cortina de fumaça.

e não temos muito tempo, nem tons, nem abusos – luzecus então,

não se atrase, amor … não se atrase.

Adriana Zapparoli (Campinas–SP) é escritora e tradutora. Publicou os livros de poesia A Flor da Abissínia (versão bilíngue) em 2007, Cocatriz em 2008, Violeta de Sofia em 2009, Tílias e Tulipas (versão bilíngue) em 2010, O Leão de Nemeia em 2011, Flor de Lírio (versão bilíngue) em 2012, Flor de Lótus em 2013, a tradução poética para Mosaico Fluido em 2014, todos publicados pela Lumme Editor (Bauru-S.P). Em 2012 publicou a plaquete poética Lontra Corola Libido editada pelo Centro Cultural São Paulo.

Do Portal Vermelho