Onde Hemingway deixou clássicos e sua história

A cidade de cerca de 2,4 milhões se une à região metropolitana como tantas outras capitais do mundo. Bem perto de Havana, em São Francisco de Paula, a mais ou menos meia hora de táxi, está a Finca Vigia, onde o escritor Ernest Hemingway viveu.

Por Clarissa Pont*, na RBA

Casa de Hemingway em Cuba - Eduardo Seidl

Nesta casa e no Hotel Ambos Mundos, na Habana Vieja, o escritor morou em território cubano por 28 anos, entre idas e vindas. Ali escreveu, em pé, Por Quem os Sinos Dobram, Através do Rio, Entre as Árvores, O Velho e o Mar, Paris é uma Festa e As Ilhas da Corrente.

O Ambos Mundos foi uma residência quase permanente quando Hemingway voltou da Guerra Civil espanhola. A vista do quarto que mais frequentou, no quinto andar, era assim descrita por ele: “Suas janelas davam para a antiga catedral, e para a entrada do porto e para o mar pelo norte, e ao sul para a península de Casablanca e para os telhados das casas que se estendem até o porto”. Agora, em frente à janela está um enorme edifício que fere um pouco a paisagem de arquitetura predominantemente colonial. Neste quarto, uma exposição que muda a cada ano marca sua estadia. A de 2014 era sobre bebida, marca registrada na vida do escritor. A deste ano sobre quando ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, em 1954.

Hemingway chegou pela primeira vez em Havana em abril de 1928, junto com Pauline Pfeifer, que estava grávida. Iam em direção a Cayo Hueso. O escritor tinha 28 anos e terminaria na praia seu segundo romance, Adeus às Armas, depois de ter sido correspondente na Europa e ter dirigido ambulâncias durante a Primeira Guerra Mundial. Pauline abandonou o quarto e o escritor ainda no Ambos Mundos e dizem que foi Martha Gellhorn, com quem ele se casou pouco tempo depois, quem encontrou e comprou a Finca Vigia.

É de Gabriel García Márquez a abertura da principal biografia sobre Hemingway, escrita pelo jornalista cubano Norberto Fuentes. “Havana era naquele tempo – e continua sendo até hoje – uma das cidades mais belas do mundo”, descreve García Márquez em Hemingway em Cuba. “O passeio pelo Malecón, a avenida a beira mar, cujas obras de proteção e embelezamento tinham sido começadas em outra época, estava sendo prolongado até sua dimensão atual, e novas avenidas com árvores e mansões de milionários surgiam ao oeste da cidade velha”, prossegue o colombiano, relatando exatamente o que se vê ainda hoje sendo restaurado em Habana Vieja.

A casa da Finca Vigia permanece intacta. Até a biblioteca do escritor, com 9 mil volumes, está ali. É possível farejar cada recanto através das janelas e portas – só não é permitido circular na casa. Ali Hemingway teve, além dos livros, quatro cães e 59 gatos. As peças de caça, os sapatos e sandálias do escritor, os óculos de armação metálica, as espingardas e as varas de pescar. A Finca está em um dos lugares mais altos da região e a vista desde lá sobre Havana é magnífica. Atrás da casa, o escritor mantinha um mirante que também é aberto à visitação.

Em Cuba, Hemingway foi fiel freqüentador do Floridita, um bar com restaurante nos fundos que existe no final da Rua Obispo. Ali turistas de todo o mundo ainda hoje se sentam para tomar o daiquiri, uma combinação de rum cubano com gelo picado e limão que o escritor ajudou a divulgar pelo mundo. Segundo Hemingway conta em artigo escrito logo após receber o Prêmio Nobel, ir ao Floridita significava sentir-se em casa. “Eram pessoas de todos os Estados Unidos e de muitos lugares onde morei.” De marinheiros a agentes do FBI, entre alguns cubanos, todos frequentavam o Floridita. Dizem que o escritor também frequentava a Bodeguita Del Médio, intacto até hoje e onde se podem ver as assinaturas de milhares de visitantes que cobrem as paredes, ali estão o autógrafo de Salvador Allende e um poema de Nicolás Guillén.

Sobre o escritor, o que os cubanos dizem é que seu pensamento político, tão expresso durante a Guerra Civil espanhola, parecia um enigma frente ao drama que vivia Cuba antes da Revolução. Suas relações eram com estadunidenses que visitavam a ilha e com alguns cubanos, mas não há indícios de que tenha tentado fazer contato com o ambiente cultural local – e tampouco conheceu muito mais da América Latina.

Ainda no livro de Norberto Fuentes, há uma passagem interessante. “Quase um ano depois do triunfo da Revolução e quando já estava evidente a hostilidade do governo dos Estados Unidos, o jornalista argentino Rodolfo Walsh fez uma entrevista rápida com Hemingway, aos empurrões e gritos de uma multidão engarrafada no aeroporto de Havana. Nessa entrevista, Hemingway teria dito em espanhol correto: "Vamos a ganar, nosostros, los cubanos, vamos a ganar". E acrescentou em inglês: "I'm no a yankee, you know".

De toda forma, pelas ruas de Havana, nenhum escritor – a não ser é claro José Martí – parece ser alvo de tantas homenagens. Difícil encontrar um bar ou restaurante de Havana que não tenha uma foto de Hemingway pendurada na parede. Fidel Castro foi quem, junto à última esposa de Hemingway, se comprometeu em manter a Finca Vigia intacta e transformá-la em museu. Em 1977, Fidel teria declarado a um grupo de jornalistas estadunidenses que Hemingway era seu autor preferido.

Como era a vida de Hemingway em Cuba foi justamente a pergunta que se fez o então jovem jornalista cubano Norberto Fuentes em julho de 1961, quando seu chefe de redação chamou-o até a Finca Vigia para que escrevesse um artigo sobre o escritor que na semana anterior tinha se dado um tiro de rifle no céu da boca. O livro, que foi editado em português pela L&PM, conta inúmeras histórias sobre Cuba e é um ótimo guia para conhecer a Finca Vigia e a Habana Vieja.

*Clarissa Pont é jornalista