Sobre o Relatório "Julgando a Tortura"

Há poucos dias foi divulgado o relatório “Julgando a tortura: análise de jurisprudência nos tribunais de justiça do Brasil (2005-2010)”, produzido por cinco ONGs, dentre elas a Conectas Direitos Humanos e o Núcleo de Pesquisas do IBCCrim. O relatório nos mostra como a tortura é vista, julgada e tolerada no Brasil, e os desafios de fazer pesquisa empírica no campo do Direito.

Por Andrei Koerner e Heloisa Fernandes Câmara

- Foto: Rafaela Ely / Creative Commons

A vedação da tortura é caracterizada internacionalmente como jus cogens, ou seja, ela não pode ser suspensa em nenhuma hipótese, pois tal expediente teria como finalidade a completa submissão do indivíduo. Assim, saber como o Judiciário (em via recursal) tem analisado casos envolvendo a tortura é também uma forma de apreciar o comprometimento brasileiro em seguir suas obrigações internacionais.

Uma questão relevante é a distinção dos réus entre agentes públicos e privados. Como aponta Flávia Piovesan no prefácio, as normas internacionais definem o crime de tortura como crime próprio, que só pode ser cometido por um autor específico, no caso, um agente público, o que impede a desclassificação do crime. Isso porque a tortura é vista como um ato no qual os Estados extrapolam e usam a força física e intimidação como forma manter uma relação de hierarquia com aquele que foi torturado. A adoção da definição internacional evidenciaria que a lei nacional faz parte de um conjunto de políticas do Estado para controlar os seus próprios agentes, de acordo com seus compromissos internacionais. A lei penal seria associada a um conjunto de medidas de alcance muito mais amplo, cujo resultado não dependeria apenas de condenações em processos individuais.

No Brasil, entretanto, o crime de tortura não tem configuração tão clara, uma vez que a lei 9.455/97 estabelece que ele pode ser cometido também por agentes privados. Daí que os casos têm perfil dual: de um lado, agentes públicos geralmente acusados de praticá-la contra pessoas sob sua custódia; e, de outro, agentes particulares, em geral acusados de exercê-la contra crianças em ambiente doméstico. A ampliação da hipótese legal acaba por promover um esfumaçamento do que é considerado tortura, ato cometido em uma relação profundamente desigual, na qual uma das partes tem os aparatos institucionais e a outra, muitas vezes, é privada de qualquer acesso aos canais de cidadania. O alcance mais amplo da lei acaba por minimizar o impacto da criminalização.

Para a pesquisa empírica, a combinação resulta em um universo mais complexo e mais rico para a análise. O relatório mostra as diferenças de tratamento dos casos e padrões de julgamento, a nível nacional e por regiões. Os tribunais de justiça apresentam distintas proporções de condenações, absolvições e conversões de decisões de primeiro grau, segundo se trate de casos que envolvem agentes públicos ou agentes privados. Mas isso não significa sua parcialidade ou condescendência com a violência estatal, nem indica certo padrão de impunidade. A esse respeito, pesquisas sobre casos de corrupção também mostram que, ao contrário do que diz o senso comum, é bastante alta a proporção de condenações em relação ao total de casos julgados. Mas deve-se considerar outros aspectos, como a desproporção entre o número de denúncias e de julgamentos, e as inúmeras variáveis que intervêm no andamento dos processos. A título de ilustração, o relatório levantou 455 acórdãos nos seis anos pesquisados, enquanto o relatório anual (2015) da Human Rights Watch (HRW) informa que a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos recebeu 5.431 denúncias de tortura entre janeiro de 2012 e junho de 2014.

A diferença do tratamento dos casos de agentes públicos e privados indica as dificuldades para comprovar, nos processos penais, os atos de tortura praticados pelos primeiros. O relatório sugere algumas pistas a respeito, como o fato de a tortura ser praticada em espaços de custódia, por agentes públicos que mantêm ligações de confiança entre si, contra sujeitos que não têm capacidade de se defenderem e, depois de sofridos, enfrentam limitações de toda ordem, do acesso a informações e recursos aos próprios estigmas que lhes são dirigidos. Outro ponto é o tempo, que corre em desfavor da vítima, por dificultar a comprovação dos fatos, levando à absolvição por ausência de provas, ou à descaracterização do crime.

Essas observações mostram a dimensão institucional, social e histórica das práticas de tortura no país. Primeiro, a sua disseminação, dado o número de denúncias, sem contar na cifra negra, os casos que não chegam a ser denunciados; segundo, os filtros que se colocam no sistema judicial criminal; e, enfim, que a prevenção e punição da tortura dependem de medidas muito mais amplas. As políticas já adotadas são importantes, mas o quadro ainda é desolador, e são necessárias novas iniciativas para tornar menos iníquas e violentas as relações de poder em nossa sociedade.

O relatório apresenta importantes recomendações, de modo a tornar mais efetivas estratégias nesse sentido. Essas sugestões hão de ser urgentemente examinadas e incorporadas pelas autoridades. Um ponto mostra essa urgência: dos 455 acórdãos, apenas 23 citam a Convenção da ONU de combate à tortura, o que mostra que os tribunais não consideram as normativas internacionais ao tratar violações de direitos humanos, o que é apontado por outras pesquisas. Ele mostra ainda que a esfera judicial atua de forma desvinculada das políticas, administrativas e ações culturais de combate à tortura.

Concluímos com observações sobre alguns aspectos metodológicos do relatório, que detalhou os obstáculos para o levantamento de informações e as escolhas e estratégias adotadas. Primeiro, a impossibilidade de acessar as decisões de primeira instância, e menos ainda cruzar dados de diversas fontes. Só assim se poderia conhecer o fluxo dos casos, das denúncias ao julgamento e à execução. Segundo, a pesquisa verificou que não há padronização da busca nos sites dos tribunais, o que obrigou os pesquisadores a tentar diversos termos. Os sites dos Tribunais de Justiça de Alagoas, Rio Grande do Norte e Maranhão não puderam ser acessados. Outra dificuldade foram processos que estavam em segredo de justiça (no TJ-RJ) que chegaram a 10% do total. Essas observações representam sugestões para os tribunais aprimorarem os seus sistemas de informações.