Soledad Barrett na sexta-feira de Carnaval

Em ritmo de Carnaval, transcrevemos em nosso caderno cultural Prosa, Poesia e Arte um trecho do livro Soledad no Recife, de Urariano Mota, escritor de diversas obras que regularmente contribui com o Vermelho por meio de sua coluna Prosa, Poesia e Política.

Soledad Barret - Reprodução

O livro conta a trajetória da militante paraguaia Soledad Barret, especificamente o período em que ela viveu no Recife, em 1973. Delatada pelo próprio companheiro, o Cabo Anselmo, Soledad foi presa, torturada e morta na capital pernambucana, pelas mãos da equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury.

No livro, Urariano Mota faz um resgate, com a propriedade de quem sobreviveu aos anos de chumbo, dos vestígios da traição arquitetada contra Soledad. Veja a seguir um trecho da obra na íntegra:

Soledad Barrett na sexta-feira de carnaval*

Eu a vi primeiro em uma noite de sexta-feira de carnaval. Fossem outras circunstâncias, diria que a visão de Soledad, naquela sexta-feira de 1972, dava na gente a vontade de cantar. Mas eu a vi, como se fosse a primeira vez, quando saíamos do Coliseu, o cinema de arte daqueles tempos no Recife. Vi-a, olhei-a e voltei a olhá-la por impulso, porque a sua pessoa assim exigia, mas logo depois tornei a mim mesmo, tonto que eu estava ainda com as imagens do filme. Em um lago que já não estava tranqüilo, perturbado a sua visão me deixou. Assim como muitos anos depois, quando saí de uma exposição de gravuras de Goya, quando saí daqueles desenhos, daquele homem metade troco de árvore, metade gente, eu me encontrava com dificuldade de voltar ao cotidiano, ao mundo normal, alienado, como dizíamos então. Saíamos do cinema eu e Ivan, ao fim do mal digerido O Anjo Exterminador. Imagens estranhas e invasoras assaltavam a gente.

A vontade que dava de cantar retornou adiante, naquela mesma noite. No Bar de Aroeira, no Pátio de São Pedro, naquela sexta-feira gorda. Como são pequenas as cidades para os que têm convicções semelhantes! Estávamos eu e Ivan sentados em bancos rústicos de madeira, na segunda batida de limão, quando irromperam Júlio, ela e um terceiro, que eu não conhecia. Ela veio, Júlio veio, o terceiro veio, mas foi como se ela se distanciasse à frente, diria mesmo, como se existisse só ela, e de tal modo que eu baixei os olhos. “Como é bela”, eu me disse, quando na verdade eu traduzi para beleza o que era graça, graça e terna feminilidade. Mas a voz que ressoou foi a de Júlio, água gelada no torpor:

– Conspirando no Aroeira?

– A gente comentava Buñuel, respondo, com dificuldade na pronúncia de Buñuel.

– Esses intelectuais … Conhecem? Soledad, Daniel.

– Ah, prazer. Prazer.

E assentando-se em torno, Júlio derramou, descuidado:

– São revolucionários. Podem ficar à vontade.

Não sei se eu era o mais covarde, mas olhei para os lados, aflito pelo excesso de à vontade de Júlio em plena ditadura. Que percebeu, o meu temor.

– Que foi? Revolucionário é palavra da língua portuguesa. Nada mais normal.

– Sei, respondi, e mergulhei fundo na batida forte de Aroeira, a ponto de lacrimejar.

– Revolucionário é Glauber, revolucionário é Picasso, continuou Júlio.

– Sei.

– Está com medo?

Então falou Soledad. Havia nela mistura de acentos estranho e íntimo, de confortável materialidade, de terra-mãe:

– Todos temos medo, Júlio. Quem não tem?

– Certo. Mas não dá pra sentir pavor até mesmo da palavra re-vo-lu-cio-ná-rio.

O que ouvi então foi um corte rápido de assunto, na voz cálida de terra índia:

– É tão bonita esta praça! Eu passaria aqui o resto de minha vida. Que igreja linda, disse, apontando a Igreja de São Pedro.

– Certo. Mas temos tarefas mais práticas. Quem quer mudar o mundo não pode ficar admirando praças.

Assim falou Daniel, que estava mais próximo a ela. Em definitivo, eu não “topava”, não “topei” com ele. Não que ele fosse repugnante de feições. Mas o “topar” vinha de uma repugnância anterior. Havia nele algo de postiço, de pose. Sim, claro, digo isso agora. Mas o que eu soube então foi um mal-estar com a sua presença, um sentimento difuso que não se definia, pior, que não queria nem de longe definir. Ele se posicionava como se estivesse em uma hierarquia mais alta. Em um altar. E àquele tipo de santo não poderíamos jogar pedras. O revolucionário intrépido.

– Sim, mas deixamos de ver a beleza?, tornou Soledad.

– Há que destruir as praças. Esta é a beleza. Estamos em guerra, filhinha.

– Você é engenheiro? Ivan pergunta.

– Não … sou “artesão”. Entre outras coisas, faço tapetes. Entre outras artes.

– Eu queria beber algo, retornou Soledad, em voz que a partir de então jamais esqueci. Eu seria capaz de reinventar todas as bebidas expostas no Aroeira. E por isso como garçom e dono do lugar eu lhe disse:

– Ah, temos batida de limão, de cajá, de mangaba, de abacaxi, de manga, de maracujá, de goiaba, de graviola, de araçá, de pitanga…

– Pitanga? perguntou, divertida.

– Pitanga. É vermelha e saborosa… Você não é daqui?

– Sim, sim, perdão. Não sou. Venho da fronteira do Mato Grosso…

– E você, é daqui? interrompe Daniel.

– Ele podia se chamar Pernambuco, Ivan responde. Ele é revolucionário tendência Pernambuco.

Todos riram. Eu não me importei com a brincadeira, eu não me vexei, porque ela também sorriu. E por isso, para ser coerente com a zombaria, não esperei o garçom, fui ao balcão e de lá trouxe uma de nossas frutas, vermelhas, suculentas, com álcool. Que ela, para me pôr de volta a meu lugar – garçons são garçons, até mesmo em Pernambuco – declinou da oferenda e serviu primeiro a Daniel. E ao perceber a minha cara:

– Nesse aspecto particular, eu sou tradicional. Maridos e companheiros em primeiro lugar.

– Em que categoria você o enquadra? perguntei.

– Nos dois. Ele é meu marido e meu companheiro.

– Ah!

Uma nuvem escura passou sobre a mesa. Uma nuvem passou sobre o Pátio de São Pedro. Era de noite, eu sei e me lembro. Mas senti ali, no céu noturno, a luz fugir como se uma nuvem atravessasse a lua.

– Peça uma para mim também. Esta é boa, assim o santo do altar, Daniel, me ordenou. E por isso gritei:

– Garçom!

Para não reproduzir com travessões os diálogos daquela noite, digo e falo do clima e atmosfera que me ficaram. No cômputo geral eu me embriaguei, fui do divertido ao lamentável, passando pelo ridículo e imprudente. Soledad cintilou mais de uma vez, e desconfio, para minha mágoa, que não só para mim. Houve um momento em que senti seus reflexos em Ivan, em que vi suas palavras suavizarem o áspero Júlio, em que senti até mesmo a escada que suas observações faziam para Daniel. Para que ele pudesse também brilhar, digamos assim.

Não quero, mas devo dizer. Daniel era um homem que tinha brilho próprio, com Soledad, sem Soledad ou contra Soledad. Mas com Soledad, naquela noite de uma sexta-feira de carnaval, no Pátio de São Pedro, ele se defrontava com um acúmulo de circunstâncias desfavoráveis à sua augusta presença. A platéia estava encantada por Soledad, pela simples e luminosa presença dela. Eu, Ivan, Júlio, o garçom, Aroeira, vizinhos à nossa mesa, estávamos todos absortos no brilho dos olhos, da doce face, lábios, voz quente de Soledad. Se ela dissesse, ora, se dissesse, se ela tossisse, se ela espirrasse, nós nos portaríamos como os aduladores que desejam os favores dos mais ricos, “mas como espirra bem”, ou “que tosse gentil”, diríamos, sem pejo e sem trauma. Por isso, com o seu instinto de fêmea, mas com o seu saber solidário, com a sua tradição de mulher destes trópicos, ela não queria ver seu companheiro em posição secundária. Por isso ela lhe fazia “deixas”, espaços para que ele assumisse a cena, como os coadjuvantes fazem para os astros em sketchs de comédia. E ele sorria, muito à vontade, como se jamais houvesse descido do Olimpo.

Uso agora a palavra descido, vejo o alto em que ele se encontrava, percebo o seu peito repleto, como se estivesse com peitilhos muitos e sobrepostos, noto os seus olhos sem luz, como se nos vissem por escuros buracos de máscara, e, forçoso é dizer, ele passa a lembrança do Homem da Meia-Noite do carnaval de Olinda. Mas não exatamente do boneco de 4 metros de altura, que vaga e dança entre a massa nas ladeiras da cidade ao som do frevo. Refiro-me à caricatura do boneco, à imitação que rapazes fazem do boneco, quando põem sapatos com saltos de 25 centímetros e se põem a evoluir na dança como se o Homem da Meia-Noite fossem, a rodopiar, a bater nos corpos suados de foliões bêbados, e se curvam como se saudassem o frevo, e de tal modo que 36 anos depois dessa noite de 1972, uma revelação nos disse: “O homem da meia-noite é gay”. Mas é claro, em vez do Daniel com estes olhos de 2008, então eu não o via como percebo agora as caricaturas do homem da meia-noite, mas ali estava um anúncio. Os clarins soavam. Pela pose na mesa, naquela noite, lembro dele como se estivesse com peitilhos, e eu não sabia nem entendia por quê. Eu não tinha este conhecimento repousado em experiência, e por isso eu o via como um personagem em primeiro plano, de primeiro plano, que uma estrela, com raios, destacava da caverna do Olimpo. Ele nos furtava Soledad, sentíamos. Ele nos roubava o seu brilho. Não sabíamos ainda em quantos significados ele nos roubava a luz, mas ele, já então, nos furtava a estrela com a violência de sua presença…..

…. Não sei, olhando hoje para aquela mesa no Pátio de São Pedro, naquele carnaval de 1972, não sei se tive, se tivemos sorte ou azar. Uma parte impetuosa, romântica, me fala que eu tive azar. Uma outra, realista, dura, pragmática, documental como os balanços contábeis, me fala que eu tive sorte. Quero dizer. Quando recordei Fernando Pessoa para Soledad, naquela noite, e ela me olhou de um modo a que não pude resistir, e, cego, mesmo sem vê-la, pude sentir o calor de radiação que se estabelecia entre nós, um magnetismo, um ímã, um pegajoso de visco que nos clama, quando isso recordo, penso agora que tive, que tivemos azar em não construir uma relação total, fecunda e duradoura, que mudasse nossas vidas para sempre. Penso. Poderíamos ter fugido, fulgido para Madri, Roma, Conchinchina, fugir para que pudéssemos então realizar o objeto do nosso carinho e desejo. Fugir de todos. Sim, e isso era então, mais que agora, mais que hoje, isso era também fugir ao combate, à guerra, desertar das fileiras contra a ditadura. Assim era em 1972. Claro, para fugir teríamos e deveríamos ter uma nova dialética, para contrapor aos insultos argumentos sólidos, livres, arrancados à força de Rosa Luxemburgo, de poemas libertários de Maiacovski, quem sabe, ocultar a nossa profunda necessidade de ser juntos com a criação de argumentos irrespondíveis. E mergulharíamos em um furacão de outra sorte, de melhor sorte, imagino ou quero imaginar agora. Porque, é claro, dificuldades, muralhas seriam erguidas contra a nossa humanidade, execrada como exclusiva, egoísta, bem sei agora. A natureza de Soledad ordenaria uma conversa séria, definidora, com Daniel. Ele moveria mundos e forças contra essa absurda decisão, mobilizaria companheiros, dele, dela, e usaria, bem sei, recursos do inescrupuloso ao inescrupuloso, em suas mais diversas formas. Então, por isso, talvez não fôssemos para o México ou Europa. Certo, mas um certo de certamente. Mas teríamos tido o nosso contato! Teríamos tido uma obediência breve ao circuito elétrico que nos pusera sob seu domínio. Mas se esse breve contato nos fortalecesse ainda mais para o mergulho sem volta em nossos direitos de paixão? Ora, como seria lícito e razoável esperar-se que jovens sentissem o gosto doce e abrasante do amor, o chamado gosto alienante do amor, gozarem todas suas possibilidades na cama e entorno, para que se dissessem ao fim, “foi bom, fiquemos por aqui”? Será lícito e razoável esperar-se tão grande, maduro e grego estoicismo? E como entramos no reino das hipóteses, da livre imaginação, aquela mesma estranha ao mundo de qualquer lógica, eu assumiria este brilhante estatuto: eu te amo, Soledad, nós nos amamos, brava e bela, és o meu guia e luz, para depois concluir: foi bom, muito bom, separemo-nos, adeus, porque a ternura será o rescaldo da paixão?

O acima, deveria até mesmo dizer, esse acima de mim, dos meus dias, é possível, digo mesmo, é plena e absolutamente possível. Imaginar é, em si, delinear um programa. Um roteiro e um caminho para a vida. E esse caminho, de gozar o paraíso e a ele renunciar, ainda que terrível, seria melhor que a frustração, o sentido de que perdi aquele amor, quando dele tive a oportunidade. Isso não é ser lascivo, hedonista, leviano. Se só temos uma vida, por que devemos nos regozijar com a frustração de não ter obedecido ao amor? No reino do soberano da imaginação, poderíamos ter sido felizes, louco e apaixonadamente felizes, e por isso teremos sido azarados em não entrar fundo naquela zona magnética.

No entanto, no reino do balanço patrimonial, dos créditos e débitos, foi credor o meu saldo. Tive sorte em ali não ter entrado. Sorte, maneira de dizer, entendam. Sorte na precariedade, sorte primária, sem gozo, luxo ou luxúria, sorte que apenas quer dizer, estou vivo. Há pouco, em linhas antes, escrevi que tive azar por não ter construído uma relação total, fecunda e duradoura, que mudaria nossas vidas. E chega a ser interessante como fornecemos argumento ad hominem, com um dedo voltado contra nós mesmos, com um indicador que salta e não conseguimos vencer. Ora, diz-me um cínico sobrevivente, pôr um ponto final em nossas vidas, abreviá-las, também é uma forma de mudar de vida. Isso um cínico anotaria como uma conformação, em outro livro, que não este.

Mas ainda é cedo. Ainda estamos nesta noite, nesta sexta-feira de carnaval. Tudo, apesar do que vivemos, tudo ainda é esperança, tudo é por vir, perfume, pó e talco. É curioso como, no ir e vir da memória, que sempre nos carrega também para o que houve depois do fato a que se volta, e daí ser impossível a fotografia nua deste instante, é curioso que nesse voltar à sexta-feira gorda a imaginação pede que estivéssemos – como um décor – entre serpentinas, confetes, colares havaianos, chapéus de marinheiro, ou até mesmo máscaras, e manda ao diabo o possível mau gosto. Faz sentido, o mau gosto faz sentido, ela nos diz e deseja impor. No entanto o sentimento, retrato mais preciso que o visível em um flash fotográfico, corrige a foice esse devaneio. Apesar das luzes do Pátio de São Pedro, e bem sei o quanto ele estava iluminado, pois assim mandam os fatos e os dados de uma abertura de carnaval à noite, apesar dessas luzes, eu não vejo pessoas coloridas como seria de se esperar em um carnaval. O sentimento me conta que, se não estávamos todos em branco e preto, porque aqui o sentimento briga contra a lógica, estávamos todos sob um reino ambíguo, ou, se querem algo mais fotográfico, factualmente fotográfico, nossos rostos possuíam metade branco e preto, metade arco-íris. Falávamo-nos para a parte em cores – era carnaval, éramos jovens, éramos promessa de um mundo novo -, mas nos entendíamos pela parte entre sombras. A nossa própria cara julgávamos exposta em cores de aquarela, mas víamos nos demais rostos sem luz. Víamos, modo de dizer. Sentíamos um rosto, mas ou não queríamos vê-lo, ou não podíamos vê-lo. Porque era doloroso.

*Trechos de “Soledad no Recife” de Urariano Mota

O poeta Mario Benedetti também fez uma homenagem à Soledad, “La Muerte de Soledad Barret”. Veja o vídeo onde ele declama o poema:

Do Portal Vermelho