“Convoque seu Buda”, manifesto místico de um poeta antropófago

Lançado em novembro do ano passado, Convoque seu Buda, terceiro álbum do rapper Criolo, foi celebrado e elogiado pela imprensa hypemaníaca. Na maior parte das resenhas, a excelente produção musical do álbum, a variedade de ritmos (rap, samba, afrobeat, reggae, disco, baião) e a atualidade das letras que traçam um perfil do Brasil urbano contemporâneo são consideradas os pontos altos deste lançamento.

Por Bruna Ferreira*, na Revista Fórum

capa do disco Convoque seu buda - Divulgação

Sem dúvida uma recepção tão ampla deu a Criolo ainda mais visibilidade. Contudo, esta recepção costuma resvalar sempre na mesma generalidade, algo sobre “crítica social”, “mistura de ritmos”, “pobreza e violência”, “agruras do favelado”, reduzindo a riqueza do texto a um punhado de expressões que de tão pisadas já não dizem nada.

Nesta resenha a minha intenção é ler o texto de Criolo e reforçar sua imagem como a de um modelo de intelectual e artista de que a sociedade brasileira precisará cada vez mais: capaz não só de cruzar referências da cultura erudita ocidental e da vivência cotidiana das ruas das nossas grandes cidades e suas periferias, mas também de criar algo inteiramente novo a partir desses cruzamentos.

Por isso a frase de Oswald de Andrade abre este texto: Criolo reaviva a utopia antropofágica e faz o que Oswald, burguês decadente, não pode fazer: dar voz à periferia da periferia, deglutindo, subvertendo e se apropriando do que as elites se acostumaram a chamar de “conhecimento” ou “cultura”.

A consciência de que a vida é luta e conflito é a primeira coisa que se aprende numa batalha de MCs. A escrita madura de Criolo reflete a capacidade de ligar ideias aparentemente sem nexo e condensar em imagens muito específicas um quadro social mais amplo. A habilidade com as palavras e o sentido de urgência das letras são certamente aprendizado de inúmeras batalhas em que a voz tinha que ser tão rápida quanto o pensamento: Criolo pensa em voz alta, e o seu pensamento é condensado, e, por isso, poético.

Ao pensar em voz alta, Criolo espera por uma resposta, e se afasta da imagem do intelectual que nos observa, distante ou moralista, da segurança de sua posição privilegiada. As suas letras preveem e precisam de um interlocutor, de alguém que ouça a mensagem e responda, discorde, reaja – como nas batalhas. O interlocutor pode ser um “nós” ou um “vocês”: cada contexto poético identifica exatamente com quem Criolo está falando, e, mais importante, de onde ele fala.

Convoque seu Buda, o poema que abre esse álbum-livro, é um manifesto místico que indica a espiritualidade e a transcendência como armas para resistir ao caos urbano. Em Cartão de visita está a ironia mais refinada de Criolo: uma letra afiada que só não alfineta quem não a entendeu. A crítica ao consumo aqui, como em Pegue pra ela, vale tanto para bens materiais quanto para o acúmulo irrefletido de capital cultural.

A versatilidade de Criolo nessa letra mostra ainda um artista capaz de usar uma linguagem que não é sua para causar o efeito de estranhamento que faz com que a ironia funcione. Esse mundo de glamour e brilho não é o dele; louboutin, chandon, don perignon não fazem parte do seu vocabulário diário: o que ele faz é entrar no território cultural do outro, usando as palavras do outro para desnaturalizar o mundo do outro. E é quando essa desnaturalização acontece que o sorriso cínico da ostentação desaparece e alguma reação, mesmo conflituosa, se esboça.

Em Casa de Papelão, um canto de solidão, morte e desamparo, Criolo, o poeta que transita pelas ruas da cidade grande, conversa mano a mano, “olhos nos olhos” com o último morador de uma ocupação que dará lugar a um condomínio. Fermento pra Massa fala sobre a consciência de classe e a solidariedade entre os trabalhadores: “eu que odeio tumulto não acho um insulto manifestação”, e atualiza o “pão e circo” para o povo: “farinha e cachaça é fermento pra massa”.

Pé de Breque e Duas de Cinco são complementares: enquanto esta última fala de uma sociedade consumista, hipócrita e entorpecida, em que a lei não persegue o vício em si, mas o vício de uma classe específica; a primeira mostra seu respeito a uma prática que faz sentido em uma determinada cultura, ironizando quem “vivência não tem pra sentir real sabor”.


Criolo

Esquiva de Esgrima, Plano de Voo e Fio de Prumo resumem bem a ideia presente em todo o álbum, e por isso falarei desses textos com mais demora.

Esquiva é um autoretrato desse “filho de cearense” e uma declaração da sua ars poetica, ou seja, de como Criolo concebe o seu próprio fazer literário: construído com o “verso mínimo” a partir do “saber empírico” de “cada maloqueiro” da quebrada. Nessa canção Criolo fala como alguém cujos olhos já viram um outro mundo: “Antigamente resolvia na palavra/uma ideia que se trocava/o respeito que se bastava”, em oposição a “hoje”, um tempo em que “não tem boca pra se beijar/não tem alma pra se lavar/não tem vida pra se viver/mas tem dinheiro pra se contar”.

No entanto, essa ideia de um passado onde as coisas foram melhores é uma idealização romântica: o passado é na verdade a utopia que ainda perseguimos, esse tempo nunca vivido em que o poder da palavra substituirá o poder do dinheiro.

Criolo segue elegendo o rap, ritmo “forte” como estilo e linguagem, declarando ídolos como Black Allien eFerréz, e desenhando a própria trajetória como a de alguém que sempre escapou por um triz do perigo graças à bênção de uma oração ou à luz dada por um novo livro aberto, por um novo rap escutado. A letra também lembra que a má sina não começou com o poeta: há “milianos”, “cada cassetete é um chicote a mais no tronco”.

Plano de voo é um poema belo, plural e intenso, que retoma temas presentes nos anteriores e que mostra o poder da palavra no processo de autoconhecimento e expressão pessoal. O poeta, solitário, observa (é como se eu ficasse aqui nesse cantinho/vendo o mundo girar no erro abusivo) o contraste entre a ostentação individual (Golzin rebaixado, orbital 17” de tala larga) e a falta de infraestrutura coletiva (ambulância sem maca). A luta de classes emerge: “bicho-da-seda não é a praga, traça é quem quer a seda e ao bicho-da-seda maltrata”. Nesta imagem temos a síntese da exploração parasita de quem se alimenta da mesma classe trabalhadora que humilha.

O poema segue ainda chamando outras vozes para participar do processo de entendimento: “o melhor do inverno tio/é dar rolê sem passar frio” invoca a visão de um moleque que aqui também ganha vez; os versos de Neto, do Síntese, se juntam a esta tentativa de desvendar os mistérios não “da Ilíada”, mas da quebrada, em que “sem GPS pra vitória, cada um faz seu destino”.

Por fim, o poeta “desata o nó da trama”: “é nas crianças que o brilho tá”. A epifania da periferia é a necessidade da luta coletiva pela construção de um futuro melhor: “rumo ao amor/(…) sonho que se sonha junto é o maior louvor”.

Fio de prumo, décimo canto dessa odisseia brasileira, fecha este manifesto místico. Invocando Exu e a Paixão de Cristo, Criolo responde ao racionalismo iluminista que arroga à Razão o poder de tudo explicar. Um rolê pelas quebradas do Brasil, o absurdo musicado e versificado por Criolo nos poemas-faixas anteriores, basta para fazer com que este discurso caia por terra: “se o pensamento nasce livre/aqui ele não é não”.

O racionalismo falha em explicar como sobrevivemos, como toleramos essa desigualdade, como a quebrada resiste e de onde tiramos forças para continuar a lutar.

Para isso, Criolo aprendeu e nos ensina, há que transcender, há que se confiar em algum Buda, Ganesh, Osíris, Exu ou Padim Ciço, há que se rogar: “dobra a força dos braços, que eu vou só”. Em Fio de Prumo o verso mínimo do poeta se condensa ainda mais e se transforma em um jogo de palavra-imagem: “labirinto, fauna, sombra, luz da lua, aço, peito, flecha, caminho, magma, lava, inveja, vizinho”, cada uma delas polissêmica, um hiperlink para mil janelas da quebrada.

Celebrar Criolo como um novo nome da MPB é justo, mas não é suficiente. Há que se enxergar em sua expressão poética uma leitura precisa e criativa do país que construímos e sofremos. A transcendência mística do povo brasileiro (que tem “a estranha mania de ter fé na vida”, cantou Milton) não é sinal de insuficiência racional: buscar forças em um poder superior não é render-se à ignorância, nem se conformar passivamente com um destino pré-concebido, antes, é aceitar sem angústia o mistério daquilo que a razão não consegue explicar; é, com coragem, enfrentar mais um dia de uma luta que a lucidez dá como perdida.

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*Bruna Ferreira é formada em Letras e mestra em Literatura pela UnB. Doutoranda em Modernidades comparadas: literaturas, artes e culturas na Universidade do Minho