Cabanagem, a revolta popular através dos olhos de Dalcídio Jurandir

Nesta semana o caderno cultura do Portal Vermelho homenageia a Cabanagem, grande revolta popular contra o Império entre 1935 e 1840, no Pará, na região norte do Brasil. Entre os muitos escritores que abordam o tema, Dalcídio Jurandir foi um grande romancista que tratou a questão com sutileza e propriedade.

Cabanagem

Dalcídio publicou um conjunto de dez livros que ficou conhecido como Ciclo do Extremo-Norte, e teve algumas de suas obras publicadas na União Soviética no período em que viveu lá. No Brasil foi combatente contra a ditadura militar e jornalista, além de um excelente romancista que deixou um grande legado para a literatura nacional.

Selecionamos dois trechos da obra Passagem dos Inocentes, publicada em 1963, que traz um pouco do que foi a Cabanagem:

“Tecendo cestos e paneiros, de que tirava meio sustento, o velho Bibiano, pai de D. Amélia, morava retirado, debaixo de seus cajueiros naquele suburbinho da vila por nome Areinha mais estrada que rua, a pé vinte minutos da igreja, do trapiche e da caninha diária do balcão do seu Epaminondas Aguiar. Aquí me ajuntei com a Vicência, que lá em cima esteja, a tua avó, esse – menino, aqui chocamos a nossa ninhada de pretos, vi todos irem-se embora, menos este, dado com santo, bunda neste chão grudada, este-um aí o Ezequiel.

O avô, calombento, andava um pouco de banda, o peito ossudo, queixoso dos rins; do cabelo cinzento as moitas em volta da careca tostada, um olhar de zangadão fingidor, mesmo dizendo uma graça era sizudo; mesmo com a caninha lhe subindo, o sempre pausado no falar. Tinha uma voz de provérbio. Sentado no molho de cipó, entre os cestos de tala ainda verde, o avô destrançava as fibras, ou no mochinho a enfiar tala por tala, os dedos, que pareciam entrevados, no tecer tão maneiro, tão sabidos, o avô dedilhava. E Alfredo teve uma semelhante visão: o avô não tecia, tocava. O cantar, o gemer, o bulício das folhas e do chão saiam de sua harpa”.

"Tio Sebastião para pensar mal de Dolores voltou a falar dos frades, o assunto caiu na cabanagem. Entrou o seu Almerindo na conversa, no entremeio dava ordens, despachava, punha o visto na chegada e agasalhagem das senhoras e crianças. Falou do Visconde do Arari correndo dos cabanos de Cachoeira; o Visconde escondeu-se em Santana, os cabanos descem o Arari, tinham tomado conta da vila, querem pegar o Visconde em Santana. O Visconde se atirou pela baia, no rumo da Tatuoca onde a brancarada do Pará se entocou, no olhai pra nós, Santo Deus da misericórdia. A cabanagem mandando no rio. Brancos se sumindo no mato borrados de medo, os caboclos atrás do Visconde, varrendo das terras do Arari as barbas do Visconde. Ah bom peito, ah boa brabeza aquela!

– Raça de gente. Foi uma guerra de muito respeito, muito fina nos cálculos de combate. Nossos cabanos tinham faros militares. Guerrear sabiam. Depois chega aquele general da corte com esquadra e bote pólvora. Os cabanos já naquele tempo queriam também tirar os escravos do cadeado? Acho que sim. Meu avô foi cabano. Ajudou a botar o Visconde daqui. Ah que botou, botou. O coronel comandante superior da Guarda Nacional da Câmara de Cachoeira Comendador da Ordem de Cristo e Barão do Arari e logo Visconde com Honras de Grandeza jogou no veado para não acabar no moquém preparado pelos meus avós cabanos. Mas o caldeireiro do Cão lhe preparou lá nas profundezas um bom espeto na brasa".

Do Portal Vermelho