Ana Helena Tavares: O Brasil e o mundo fazem História

Dois grandes acontecimentos neste dezembro – derrubada a estátua do ex-ditador Costa e Silva e normalizadas as relaçoes entre Cuba e EUA.

Por Ana Helena Tavares*, no Correio do Brasil

- Montagem Vermelho

A terça-feira, 16 de dezembro de 2014, não foi um dia como os outros em Taquari, no RS. A cidade natal do marechal Artur da Costa e Silva resolveu retirar de praça pública o busto em homenagem a seu filho mais conhecido.

A quarta-feira, 17 de dezembro de 2014, não foi um dia como os outros para o mundo. Constará nos livros de História o dia em que a mediação de um papa jesuíta colaborou decisivamente para a retomada das relações diplomáticas entre Cuba e EUA.

O busto de Costa e Silva será levado para um museu na própria cidade onde ele nasceu. Lá, será disponibilizada uma cópia do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que coloca Costa e Silva como um dos responsáveis por graves violações aos Direitos Humanos na ditadura deflagrada em 64.

Ditadura esta que não se deflagraria sem a fundamental ajuda dos EUA. Os mesmos Estados Unidos da América que agora dizem amém a novas possibilidades mundiais que jamais admitiram antes.
“Cai o rei de Espadas / Cai o rei de Ouros / Cai o rei de Paus / Cai, não fica nada”. Escreveu Ivan Lins. Cantou Elis Regina. A ditadura não entendeu. O mundo teimava em não entender. O tempo encarregou-se de explicar letra por letra.

Costa e Silva caiu, mesmo que simbolicamente, apenas três dias após o aniversário de 46 anos do famigerado Ato Institucional Nº 5, decretado em 13 de dezembro de 1968, debaixo da farda dele e que instituiu no Brasil o terror de Estado.

Entrevistado para o meu livro “O problema é ter medo do medo”, a ser lançado em março, o advogado de presos políticos Modesto da Silveira definiu o AI-5 como “o mais vergonhoso ato da história jurídica brasileira e um dos piores da história mundial”. Marcelo Cerqueira, também advogado de presos políticos, para o mesmo livro, disse: “depois do AI-5 veio uma repressão pior do que a dos capitães do mato”.

Mas é bom que se diga que o AI-5 não foi obra exclusiva de Costa e Silva. Foi assinado por muitos civis que estão hoje vivos para ver o busto de Costa e Silva cair, mas continuam certos de que morrerão impunes como Costa e Silva morreu.

O embargo cinquentenário a Cuba começa a cair quando os EUA internamente insistem em ser o pesadelo de Luther King. O presidente negro não conseguiu fazer dos Estados Unidos da América um país livre para os homens e mulheres de sua cor. O brilho dos olhos insiste em valer menos que a cor da pele.

Saberão os (ex)donos do mundo aprender com a pequena ilha, onde a medicina solidária é exemplo mundial e onde não há crianças dormindo na rua? Saberá a ilha tirar o que há de bom da velha estátua chamada paradoxalmente de “liberdade”? Saberá o mundo – junto à sua nova ordem – tirar proveito desta oportunidade única?

O ato de assinatura do AI-5 ficou conhecido como “a noite dos generais”. O fim do embargo a Cuba bem poderá vir a ser chamado de “o dia da esperança”. O dia em que a esperança veio do trono de Pedro. Um trono que tantas vezes esqueceu de seu papel.

Este ano de 2014 termina anunciando que nem tudo está perdido no mundo que veste batina. Nem tudo está perdido no mundo que veste terno. Nem tudo está perdido no Brasil que veste farda.
No sábado, dia 13, aniversário da assinatura do AI-5, um coronel, que na ditadura era criança, desfilou lucidez, legalismo, e verdadeiro patriotismo.

O coronel Alvir Shneider, de Santa Catarina, hoje com 54 anos, foi ao meu site “Quem Tem medo da democracia?” defender punição aos torturadores. Leiam o comentário:
“Sou militar e tenho vergonha dessa mácula na história brasileira. Os golpistas de 64 jamais poderiam ser chamados de militares. O juramento do militar é de servir à pátria, ao povo e às autoridades legalmente constituídas.

O que eles fizeram é o que de pior poderia fazer um militar. Eles foram traidores da mais abjeta espécie e, como tal, teriam que ser punidos conforme determina o Código Penal Militar em tempo de guerra, que foi o que implantaram.

A pena do CPM para o traidor em tempo de guerra é a morte! Em praticamente todos os países do mundo que passaram por experiência desse tipo esses traidores foram punidos exemplarmente. Já passou da hora de se fazer o mesmo no Brasil.”

Como se vê, a roda da História gira forte em 2014. Enquanto o império retira um embarco histórico, curvando-se à ilha socialista, o busto do ditador que decretou o AI-5 foi derrubado pelas mãos de um trabalhador braçal.

Considerando que não houve uma revolta popular capaz de derrubar nossa ditadura e que o embargo está caindo por um pacto que vem de cima, é preciso que tudo isso se torne um marco educativo paras a base da pirâmide, para as futuras gerações.

A cena, extremamente icônica, do trator derrubando o busto de Costa Silva, que cai para trás rumo ao chão da praça, e outra, que mostra o busto já no chão, como se houvesse sido decapitado, mereceriam inspirar poemas, músicas, pinturas, etc…

Quando surgir um aperto de mão entre Obama e um dos Castro deverá receber o mesmo tratamento. Se for com Fidel mais emblemático. Já que o Brasil marcou um golaço com o Porto de Mariel, caberia, para desespero de muitos, a presença de Lula e Dilma nesse aperto de mão. E se o papa estiver presente, o cumprimento vira obra sagrada.

Sob tal conjuntura, voltando à letra profética de Ivan Lins e analisando-a, temos a sensação de que, no Brasil, caiu o “Rei de Espadas”. No mundo, caiu o “Rei de Ouros”. Falta cair o “Rei de Paus”.
Talvez o “Rei de Paus” seja o mal que mora em cada um de nós. Conseguiremos derrubá-lo? Cairão todos? Que caiam. Que fique, porém, a memória. Para que se aprenda com ela.

*Ana Helena Tavares, jornalista, conhecida por seu site de jornalismo político Quem tem medo da democracia?, com artigos publicados no Observatório da Imprensa.