Clarissa Peixoto: Música e História

Para iniciar a reflexão sobre a música e sua problematização no movimento modernista, é relevante situá-lo no tempo, em intersecção com os acontecimentos políticos e sociais que serviram de fundo para o campo da arte e da cultura.

Por Clarissa Peixoto*, no blog Para Não Desaprender

Samba - Di Cavalcanti - Reprodução

O modernismo nasce no início do século XX, sob o fim da Primeira Grande Guerra, período em que se esgotam também os elementos que sustentam o espírito da Belle Époque. É um momento em que “a intensificação do interesse dos intelectuais europeus pela busca de identidades culturais calcadas no espírito nacionalista” (CONTIER, 2004, p. 10), é a insígnia resultante do processo pós-guerra.

Para os modernistas, o debate central concretizava-se na busca da identidade do homem, da sua singularidade. É desse aspecto que surgirá uma identidade nacional. O modernismo brasileiro busca elevar através da produção intelectual e artística as especificidades da cultura brasileira, em detrimento aos modelos importados da Europa.

Na concepção de Mário de Andrade, um dos principais nomes do movimento, era necessário, para consolidar uma produção artística genuinamente nacional, voltar-se para a cultura popular, com efetivo destaque às expressões do folclore brasileiro.

Nesse sentido, Andrade compreende a música como a expressão máxima dessa junção entre a cultura popular – enquanto inspiração – e a produção artística erudita. Segundo, ele apud Lamb & Bergold

a “música artística” seria desenvolvida (e assim conviria à constituição de uma cultura nacional) a partir de uma “observação inteligente do populário”, incorporando traços do folclore, porém, não se abdicando do procedimento intelectual. Seu ideário, portanto, está longe de considerar a brasilidade como uma referência a exotismo ou primitivismo. (LAMB & BERGOLD, 2010, p. 222)


Andrade, “conferiu à música parte das suas atenções, tomando-a como uma fértil expressão cultural e uma potencial catalizadora dos esforços de apreensão/compreensão da cultura” (Lamb & Bergold, 2010, p. 218). Nessa perspectiva, a música – e consequentemente as demais expressões do movimento modernista – encontraria o distanciamento necessário da cultura europeia, por tanto tempo fielmente reproduzida, sem negá-la, bem como a cultura ameríndia e a africana. Haveria assim, inspirada em aspectos genuinamente brasileiros, uma cultura e uma arte genuinamente brasileiras.

No intuito de fomentar essa concepção, as pesquisas folclóricas de Mário de Andrade, empreendidas durante a década de 30 do século XX, aparecem como um esforço de constituir uma coletânea de elementos culturais que subsidiasse a arte brasileira modernista, reunindo pressupostos para que ela pudesse forjar-se.

Segundo Contier (2004, p. 13), o compositor modernista encontrou caminhos na consolidação da música de matiz brasileiro quando utilizou, em paralelo, novos elementos técnicos ‘introduzidos nas linguagens musicais contemporâneas – polimodalidade, polirritmia, politonalidade’, compatibilizando-os com a temática folclórica.

A música para o movimento modernista teve papel fundamental. Reinventando-se através de componentes da musicalidade regional em conformidade com as concepções da música erudita; e incorporando a diversidade presente na cultura popular brasileira, através da absorção da temática cultural e folclórica, com raízes no que havia de mais representativo da cultura popular brasileira.

O samba no início do século XX: pressuposições

Quando se fala em música brasileira, o samba é essencialmente marcado pela sua singularidade cultural e sua relação, por um lado com as massas populares e por outro com o espírito nacionalista que toma corpo. Em Paranhos (2003) o samba, traz para a cena: a) o espaço/tempo da explosão desse segmento da cultura, no Rio de Janeiro do início do século XX; e b) sua constituição social, que perpassa pela manifestação cultural mais genuína das camadas sociais empobrecidas, pela produção cultural mais elitizada até atingir o status de símbolo nacional. Paranhos destaca que

Como música popular industrializada, sua expansão girou, e nem poderia ser diferente, na órbita do crescimento da indústria de entretenimento ou, como queira, da indústria cultural. Para tanto jogaram um papel decisivo a própria urbanização e a diversificação social experimentada pelo Brasil nas primeiras décadas do século XX. (PARANHOS, 2003, p. 83)


O samba, ainda em disputa na sociedade, é uma manifestação gestada nesse novo ambiente urbano. Enquanto componente de uma tradição nacionalista, influenciada também pelos ventos do modernismo, vai sendo inventado “como elemento essencial da singularidade cultural brasileira por obra dos próprios sambistas” (PARANHOS, 2003, p. 83).

O autor procura relacionar o samba através do tempo, considerando a sua ruptura com o marginal; a dicotomia entre morro x cidade; as disputas no seio dessa manifestação, do “samba amaxixado” ao samba de novo ritmo produzido no Estácio. Trata também do preconceito ao samba e ao sambista, das tentativas de higienização do ‘produto’, de sua nacionalização e apropriação pela indústria cultural e da conciliação social em torno dele. Nesse último ponto, Paranhos diverge da ideia de utilização da música enquanto ferramenta do Estado para consolidar a unidade nacional. O centro da reflexão desse autor está na produção, no sambista e no cenário que se desenha para a consolidação de uma cultura/identidade nacional.

Em Kerber (2002), a reflexão sobre a figura de Carmen Miranda enquanto ícone da música brasileira daquele período toma como pressuposto metodológico o conceito de representação, no qual o autor relaciona a força simbólica da artista sobre o imaginário popular/social, consolidando uma identidade cultural brasileira. Neste aspecto, a música interpretada por Carmen Miranda reflete o nacionalismo vigente, assim como constitui simbologias sobre a brasilidade, sobre a figura do/a homem/mulher brasileiro/a.

Carmen Miranda – interprete e não compositora – não se apresenta em Kerper enquanto uma portavoz de uma política de Estado, mas enquanto uma figura que, em sendo representante de uma indústria cultural já bem estabelecida, reforça uma ideia vigente que necessita de consolidação.

Considerando a questão da musicalidade, Kerper releva aqui a força da imagem representativa, enquanto aparece em segundo plano o produto musical em si. Seu olhar vai voltar-se ao fenômeno de massa.

Carmen teve mais popularidade entre as camadas populares do que qualquer compositor das músicas que interpretava. Isso ocorreu, em grande parte, pelo fato de o intérprete ter um relacionamento mais próximo com o ouvinte do que o compositor. E o intérprete que leva a música diretamente para o público, e não, o compositor. É o intérprete a figura mais amada pelo público. Além disso, não está se falando, no caso, de qualquer intérprete: está-se falando em Carmen Miranda, o maior nome da música popular brasileira dos anos 30. O sucesso das músicas estava intimamente associado ao carisma de Miranda, que dava legitimidade às representações que ela difundia (KERPER, 2002, p.01*).


Se ambos os autores procuram refletir sobre a musicalidade e a constituição de uma identidade nacional, diferenciam-se, sobretudo, no objeto que trazem à luz da compreensão histórica. Para Paranhos, a centralidade está na produção, na música brasileira – especificamente o samba – enquanto uma manifestação dos diversos atores sociais que, em processo dialético, compuseram o cenário artístico e cultural que refletem na vida brasileira até a atualidade.

Para Keper o centro da discussão fica em torno da figura, da interpretação e da constituição simbólica que é Carmen Miranda e aquilo que ela carrega de discursivo em sua produção artística.

Em Paranhos, o central é o samba e o sambista, a luta intrínseca entre os atores sociais, as disputas culturais vividas em paralelo a um esforço do Estado na consolidação da unidade nacional através da cultura. Já em Kerber, a figura de Carmen Miranda aparece como coautora de uma defesa dessa mesma unidade nacional, através da música, consonante ao espírito modernista e também estadonovista, mesmo que intrinsecamente. No primeiro autor encontramos a tentativa do resgate da música enquanto instrumento de resistência. No último, a música apresenta-se, embora não monoliticamente, como um instrumento de massificação.

No contexto, as referências ficam no campo da subjetividade, que embora material, não considera os elementos que a constituem materialmente. A música reflete um determinado contexto, sendo extrato de uma luta de ideias onde se conjuga elementos da realidade social. A disputa sedimentada no samba é o complexo de manifestações populares, preceitos do modernismo, nacionalismo ascendente e indústria cultural, refletindo a disputa de uma sociedade classista.

*É jornalista e blogueira do Portal Vermelho

Referências:

BERGOLD, R. B.; LAMB, R. E. História e Música. In História, Arte e Cultura. Ponta Grossa: UEPG, 2010, p. 209-253.

CONTIER, A. D. O nacional na música erudita brasileira: Mário de Andrade e a questão da identidade cultural. In Revista Fenix. Vol. 1. N. 1. São Paulo: Makenzie/USP, 2004.

KERBER, A. Carmen Miranda e as representações da Nação brasileira nos anos 30: a legitimação do nacionalismo. In Revista Métis: história & cultura. Caxias do Sul, v.1, n.1, p.135-147, 2002.

PARANHOS, A. A invenção do Brasil como terra do samba: os sambistas e sua afirmação social. In História. São Paulo, 2003.

TONI, F. C. Missão: as pesquisas folclóricas. Encarte. São Paulo: Sesc/PMSP, 2006.