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Paquistão: uma esteira de sangue

Atentado contra Benazir Bhutto tem um passado em que mortes e acusações de corrupção são a moeda comum. Por trás, a “ajuda” que Washington derramou no país para torná-lo um suporte dos talebãs no Afeganistão, ao tempo da luta contra a extinta URSS. Por Fl

“Não aponte o dedo para Benazir Bhutto,
Ela está de luto pela morte do pai”


Chico César



Uma esteira de sangue. Assim pode ser descrita a noite em Karachi, Paquistão, quando a festa de recepção para Benazir Bhutto, que retornava de 8 anos de exílio, se transformou numa morgue a céu aberto depois de duas explosões aparentemente suicidas.



Os relatos desta sexta-feira nos principais jornais europeus e nas rádios de Berlim falam em cifras que vão de 130 a 150 mortos e de 250 a 400 feridos. Uma grande parte deles eram guarda-costas e policiais que estavam ao redor do caminhão de Benazir, depois de 9 horas de festas pelas ruas pela capital do país.



A volta de Benazir, uma política formada em Oxford e Harvard, é relatada como uma imposição de Washington ao general Pervez Musharraf, no poder em Karashi, que deslocou 20 mil policiais para a proteção da antiga adversária, agora definida como potencial aliada. No quadro atual Washington almejaria uma frente política no Paquistão que servisse de aríete contra os talebãs no Afeganistão e contra a al-Qaida internamente. Ao voltar para seu país de origem, para disputar um possível terceiro termo como primeira ministra, Benazir se comprometeu a combater o que se chama de “extremismo islâmico”.



Esse comprometimento lhe valeu ameaças pelo comandante Haji Omar, dos talebãs, que são suspeitos de autores do atentado, pelo seu estilo sucida: depois da primeira explosão, pelo menos um “kamikaze” foi visto correndo em direção do caminhão, logo antes da segunda explosão, maior que a anterior.



Entretanto o marido de Benazir, Asif Ali Ardari, responsabilizou o governo paquistanês pelo atentado, dizendo que ele não seria possível sem a participação de membros do serviço secreto. Logo antes do retorno a própria Benazir declarou ao jornal de Londres, The Guardian, que temia um ataque a partir de militares da reserva do exército paquistanês.



A situação ainda é confusa para estabelecer responsabilidades precisas, num país dividido entre grupos políticos que disputam vários patamares de poder e de acesso às bilionárias contas do governo paquistanês.



Se o rastro de sangue presente é dramático, não menos dramático é o da história que o atual atentado tem por trás de si.



Na década de 70 o pai de Benazir, Zulfiqar Ali Bhutto, primeiro ministro do país, foi deposto num golpe de estado pelo general Zia ul-Haq. Zulfilkar era um político sofisticado de grande popularidade até hoje no Paquistão, país que emergiu dos escombros do império britânico quando da independência da Índia, para abrigar os muçulmanos e dividir o então emergente gigante asiático, ao lado da China que começava seu regime comunista, ao fim da Segunda Guerra.



Zulfikar é até hoje conhecido como o pai de um “socialismo à paquistanesa”, seja lá o que isso queira dizer. Deposto em 1977, foi executado na forca em 1979, depois de uma sangrenta guerra civil que levou à criação de Bangladesh, com perdas territoriais para o Paquistão. O general Zia morreu anos depois, num acidente de avião até hoje não de todo elucidado.



Benazir navegou na lembrança do pai. Para entrar na política teve de se casar. Analistas dizem que esta foi uma de suas desgraças, pois o marido, escolhido às pressas, revelou-se um problema. Conhecido como Mr. 10%, Zardari concentrou acusações de corrupção que somadas às contra Benazir, somam um bilhão e meio de dólares.



Mas isso não é original no Paquistão: não poucos generais têm no passivo um enriquecimento astronômico. Na década de 90, quando Benazir foi primeira ministra em duas ocasiões, os Estados Unidos derramaram rios de dinheiro no Paquistão, para fortalece-lo enquanto elo de uma cadeia de apoio aos talebãs no Afeganistão, que então combatiam a presença de tropas da União Soviética em seu país.



A morte continuou seguindo a família Bhutto: dois irmãos de Benazir foram assassinados, um em Paris, envenenado, e o outro em Karachi, morto a tiros pela polícia, num incidente também não esclarecido.



Benazir é uma mulher singular, de força aparentemente indomável. Esteve cinco anos confinada numa prisão pelo executor de seu pai. Suportou anos de exílio. É figura política controversa, tendo repassado para a política de Washington a herança “não alinhada” de seu pai. Uma coisa é certa: nada vai dete-la, a não ser a morte, na trajetória para recuperar o poder no Paquistão, mesmo que tenha que dividi-lo com o atual ditador, Musharraf, mesmo que ainda estejam em julgamento na Suprema Corte as acusações de corrupção contra ela e o marido, que ela alega serem políticas. Mesmo que seu destino seja o de coringa ou de carta marcada na turva política que Washington desenvolve na região para conter seus antigos aliados, os talebãs, a al-Qaida, e tudo o que agora chama de “extremismo islâmico”, antes definido carinhosamente como “aliados” na luta “contra o comunismo”.