Manuela D´Ávila: “Comunismo” de boutique 

Nessas eleições, vimos um pouco de tudo. Em nenhum outro momento vivi clima tão intenso nas ruas e nas redes sociais. Nessas, víamos de um lado cidadãos e cidadãs participando da vida política nacional, de forma apaixonada, nesse grande microfone democrático que são as redes. De outro, criminosos comuns (sim, incitar ódio e violência é crime, racismo é crime, segundo a Lei 9459/97) usando esse mesmo microfone para questionar nosso povo e suas decisões.

Por Manuela D´Ávila* 

Manuela D´Ávila: Comunismo de boutique

 A intolerância ao pensamento divergente é, para mim, ainda consequência dos mais de 20 anos de ditadura militar. Vivemos, afinal, o maior ciclo democrático da história brasileira nos nossos dias. Somos ainda jovens criados por pais que tiveram sua educação nos anos de chumbo.

Mas escrevo aqui, pois creio que é urgente falarmos sobre os setores ultraconservadores brasileiros que tentaram durante as eleições se valer de justas indignações do povo brasileiro pra crescer e se organizar. Disfarçados de defensores da liberdade de expressão foram os porta-vozes de todo tipo de preconceito e autoritarismo. Eram eles que tentavam calar com respostas rasas os diferentes. Com o justo debate sobre a corrupção no poder público brasileiro, deram vazão ao machismo, anticomunismo, homofobia, racismo.

Claro que debater corrupção e formas de mudarmos a política no Brasil é urgente! Os partidos comprometidos com a democracia devem fazê-lo. Esse sistema político é superado, ultrapassado e não acompanha o desenvolvimento econômico e social no Brasil.

Mas a campanha de ódio e de intolerância completa, com os divergentes, fez aparecer alguns termos em minhas redes. Sistematizei alguns verbetes para falar com essa gente, que nos rotula usando critérios que só fazem sentido para eles próprios.

• Comunista de iPhone
Nunca entendi qual contradição que veem entre alguém ser comunista e ter um celular. Creio que muitos desconhecem que, quando existia, a União Soviética sempre desenvolveu muitas tecnologias. O fato é que o socialismo não defende a negação da tecnologia. Ao contrário, defendemos justamente que, pela humanidade estar tão desenvolvida tecnologicamente, podemos viver um mundo muito mais justo para todos. De qualquer forma, realmente não gosto de ter iPhone por não ter tecnologia livre. Deveria ser criticada não pelo aparelho, mas por seu sistema operacional! Sim! Luto pelo software livre e uso um iPhone.

•Patricinha Comunista/ Comunista de boutique
O machismo em nossa sociedade é mesmo avassalador. Não sei qual a origem de um padrão estético para as mulheres de esquerda. Digo para as mulheres, pois nunca ouvi: mauricinho comunista. Pelo que escuto e leio, devem nos confundir com as mulheres do movimento hippie que, embora contestador e libertário, nunca foi de esquerda. E cuidar de si, da própria saúde, do bem-estar nunca foi negado por ninguém. Ao contrário. Claro! No Brasil, as mulheres e homens, que resistiam à ditadura e viviam na clandestinidade, não iam perder tempo e nem se expor fazendo as mãos. Além disso, fico pensando na relação com as roupas: deveríamos andar pelados? Eis que toda a roupa produzida e vendida em grandes redes inclui exploração de trabalho de alguém. A diferença é que no Brasil defendemos que quem costura a nossa roupa tenha direitos garantidos. Ao contrário dos setores conservadores, que acham isso tudo uma grande besteira.

•"Esquerda caviar"
Esse termo usado por alguns conservadores tem origem no termo francês Gauche caviar. Como diria Zeca Pagodinho, "eu não vi, não comi, eu só ouço falar". Na década de 90, nos chamavam de "esquerda festiva". Poderiam ser criativos e nos chamarem de "esquerda sashimi", já que a comida japonesa é super atual no Brasil. Mas não. Em síntese, somos "caviar" porque gostamos do bom. Não entendem que, justamente, queremos que todos tenham acesso à riqueza da humanidade? Acho que eles nos confundem com os franciscanos que fazem voto de pobreza. Meus votos são para lutar pela diminuição de desigualdade social e justiça social.

•Comunistas são ateus
É verdade que Marx escreveu "a religião é o ópio do povo". Sim. Em qual contexto? Ele era de uma família de rabinos e o pai teve que negar a religião para poder advogar. Então, essa frase foi vinculada ao ateísmo, quando deveria ser a marca da defesa do estado laico que, justamente, garante a liberdade religiosa. No Brasil (meu país), a tradição da esquerda é de profunda relação com a Igreja Católica. O meu próprio partido é presidido por um ex-dirigente da Ação Popular, que tem origem na Juventude Católica. Além disso, a emenda que garantiu a liberdade religiosa foi de Jorge Amado, deputado Constituinte em 1946. Ou seja, se hoje existem evangélicos organizados e respeitados pelo estado brasileiro (e não apenas católicos) é porque sim, os comunistas estavam lá defendo a liberdade religiosa e o estado laico.

•O comunismo matou milhões
Infelizmente, vivemos num mundo em que milhões ainda são mortos. Apenas as guerras do Afeganistão e Iraque mataram na última década mais de 170 mil pessoas .
Esse mundo que eu vivo não é comunista. Ao contrário, ele é capitalista. Não vi os países que se reivindicam comunistas proporem guerras no presente. Aliás, a China tem feito seu esforço para barrar algumas ocupações. Mas, mesmo no passado, quando a União Soviética foi estratégica para vencer o avanço de Hitler, as guerras e regimes fizeram milhares de mortos. Foram assim as ditaduras latino-americanas (todas capitalistas e ajudadas pelos EUA). Era um outro tempo. E os comunistas? Ah! Também erraram. Espero que a gente construa um mundo em que a economia da guerra (U$ 552 bilhões dólares orçamento ministério defesa dos EUA) não seja o centro de nenhum país. O mundo que eu luto para viver tem paz e coloca o ser humano em primeiro lugar.

• "Vai pra Cuba!"
Sim. Talvez de férias. Ou pra qualquer outro país do mundo. Adoro viajar. Mas sou BRASILEIRA e não ameaço deixar meu país em hipótese alguma. Não sou dessa turma que fecha as malas e diz: "Vou pra Miami". Vou viver aqui pra construir as melhorias que desejo e sonho. Sobre Cuba, poderia escrever um tratado. Por hora, me basta dizer que quem aplica um bloqueio econômico, a um povo inteiro lhe fazendo viver inúmeros desafios cotidianos, não são os comunistas, mas os capitalistas de Washington. Ou seja, quem pensa diferente de nós: bloqueio. Super Democrático. Mas o fundamental é saber que para os comunistas – desde antes da queda do muro de Berlim – não existe modelo de socialismo. Sou brasileira, não cubana. Como os brasileiros de direita também não são da Arábia Saudita. Aquele aliado americano que não deixa as mulheres dirigirem.

• "Vamos virar a Venezuela" ou qualquer coisa relacionada ao "bolivarianismo".
Realmente nossa direita está cada vez mais parecida com a de lá. Raivosa e golpista. Porque, caso não saibam, os presidentes de esquerda foram eleitos na Venezuela. Já a direita apoiou um golpe militar. Mas, como já disse acima, nós somos apaixonados pelo Brasil. Não queremos que a gente vire a Venezuela, nem Cuba. Mas também não queremos Miami. Queremos um Brasil desenvolvido. Bem que a turma dos rótulos poderia parar com esse papo de impeacheament, de não deixar a presidente governar. Isso realmente me lembra a direita Venezuelana.

Mas então afinal, quem somos nós se não somos a esquerda caviar, os comunistas de boutique, os ateus? Somos os que acreditam na humanidade o suficiente pra sonhar que podemos viver num mundo muito melhor do que vivemos. Os que acreditam que não precisamos nos conformar com guerras e crianças morrendo de fome. Que o ser humano, esse animal absolutamente contraditório, que constrói maravilhas tecnológicas pode ter governos mais humanistas e solidários. Que a nossa espécie não precisa eternamente ser subjugada por governos que acham razoável destruir países para proteger os seus.

Acreditamos que, antes de debatermos o tamanho da estrutura do estado, temos que debater a quem ele serve. E hoje, serve a poucos. Apesar dos avanços.
Acreditamos na liberdade individual plena. Para todos. Alias, é nossa a frase: De cada um segundo suas possibilidades, a cada um segundo suas necessidades.
Acreditamos que ser, vale mais do que ter.

Quanto a mim, nasci numa família de classe média, estudei em escola particular e sempre acreditei que era injusto eu ter acesso a coisas tão elementares e os outros não. Aliás, a isso, os clássicos chamavam de "pequena burguesia". Mas tudo bem, não estamos debatendo os clássicos.

Estamos apenas debatendo clichês e frases prontas que constroem para nós. Apenas rótulos para tentar conter nossa discussão mais profunda: Vocês são felizes com o mundo que vivem?
Acham razoável estarmos no ápice do processo de desenvolvimento tecnológico e 2,5 bilhões de pessoas não terem saneamento básico, segundo a ONU?

Acham razoável que milhares sejam calados por terem uma religião diferente da tua?
Acham racional a guerra movimentar a economia?
Guerras para defender a liberdade?
Golpes para defender a liberdade?
Por que o capitalismo não consegue construir a paz?

Não tivemos capacidade de construir soluções para equacionar liberdade e igualdade. Não conseguimos ainda encontrar soluções para muitos dilemas da humanidade. Apenas gostaria que olhassem ao redor. Se te indignas com tanta desigualdade caminhamos juntos.

*É deputada federal pelo PCdoB do Rio de Grande do Sul e deputada estadual eleita no último pleito