Ciclos da República: Dilma Rousseff e o udenismo tucano-fascista

Em todos os processos eleitorais no Brasil, afloram contradições acumuladas ao longo da história. As peculiaridades da formação histórica do país condensam, nas eleições, dois veios cujas nascentes remontam aos primórdios da nação e que ficaram nítidos na trajetória da República. Nas eleições atuais, elas são bem visíveis; Dilma Rousseff e Aécio Neves estão à frente de duas propostas de governo históricas radicalmente opostas. 

Por Osvaldo Bertolino*

Dilma presidenta

Um fantasma do passado distante do Brasil ronda as eleições deste ano. Desde que o Brasil é Brasil, a ideia de que o comando dos destinos do país é um direito privado dos ditos “bem-nascidos” não sai da cabeça deles. E por ela vão até o “limite da irresponsabilidade”, como disse o ministro das Comunições do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), Luiz Carlos Mendonça de Barros, para explicar como ele tramou ''o maior negócio da República'' (a privatização do sistema Telebrás) em conluio com o também economista tucano André Lara Resende, presidente do BNDES, e com o próprio presidente da República. O linguajar raso (''se der m…, estamos juntos'') e as pitadas de truculência (''temos de fazer os italianos na marra'') explicavam, bem ao estilo dos “bem-nascidos”, como a negociata foi armada para favorecer o banco Opportunity, de Daniel Dantas, outro economista tucano.

Ao se trazer à superfície o palavrório utilizado no subterrâneo da privataria tucana, surge de debaixo do tapete da história o que mais caracteriza o método de governar da direita: a negociata. Simplesmente não interessa, para eles, que os processos no Brasil funcionem melhor. Se o sistema de transporte público fosse eficiente, o significado de ter um carro de luxo mudaria no país. Se os serviços de saúde funcionassem, o fato de haver hospitais cinco estrelas seria irrelevante. Essa gente passou a vida, de geração em geração, trocando favores, construindo atalhos, traficando influência. Se todos os cidadãos tivessem assegurados os mesmos direitos, por meio de sistemas sólidos e funcionais, toda a rede de relações obscuras da direita e sua indústria da maracutaia perderia o sentido.

Ideais de florianistas e prudentinos

Hoje, agrupados em torno do candidato Aécio Neves, eles reproduzem, sem o menor constrangimento, a manifestação do ex-presidente nacional do ex-PFL (atualmente DEM), Jorge Bornhausen, segundo a qual eles precisavam se livrar "dessa raça (a esquerda) pelos próximos 30 anos", que, por sua vez, repetiu o barão de Cotegipe quando, contrariado com a Abolição, ele disse que dom Pedro II havia ''redimido uma raça”. No período republicano, as mesmas ideias, confrontadas pela replica enérgica de Floriano Peixoto — que representava os setores mais radicalizados da burguesia, favoreceu a indústria nacional e chegou a sonhar com a expulsão do capital estrangeiro do país — às vacilações do marechal Deodoro da Fonseca, responderam com a tréplica de Prudente de Morais, incorporando as oligarquias como fundamento para o poder no período da República Velha, derrubada pela Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas.

Pode-se dizer também que as candidaturas de Dilma Rousseff e de Aécio Neves, guardadas as devidas diferenças, representam os ideais de florianistas e prudentinos. A primeira defende a ideia de que o Brasil entrou firme em sua fase moderna quando o Estado deu prioridade à acumulação de capital físico (máquinas, equipamentos e instalações industriais) — política adotada sobretudo pela “era Vargas” basicamente por meio do BNDES, da Telebrás, da Eletrobrás, da Siderbrás, da Nuclebrás e da Petrobrás; a segunda é abertamente contrária à participação do Estado na economia.

Quando Luis Inácio Lula tomou posse como presidente da República, em 2003, FHC disse que na parte econômica o novo governo teria de mostrar "responsabilidade" para "exorcizar os fantasmas que tinham sido criados pelo próprio PT nos últimos vinte anos". Os "fantasmas" eram exatamente as ideias que a esquerda defendia e que tirou o país do estado falimentar em que se encontrava, fundadas em formulações patrióticas, democráticas e progressistas. Em outros tempos, o mesmo argumento de FHC foi empregado pelos que abominam a ideia de um Brasil socialmente horizontalizado. Carlos Lacerda, por exemplo, ícone da UDN (o PSDB do pré-golpe militar de 1964), uma espécie de capataz dos Estados Unidos no Brasil, dizia que a união das forças progressistas era a “ideia-força da guerra subversiva que os soviéticos movem contra o mundo livre."

Mulheres de terço nas mãos

Partido da elite, assim como o PSDB, a UDN, que se autointitulava "o partido da eterna vigilância", surgiu da união de lideranças políticas estaduais da República Velha, no dia 7 de abril 1945. Na data, cuidadosamente escolhida para lembrar o outro 7 de abril — o de 1831, quando D. Pedro I abdicou —, reuniram-se adversários dos tempos imperiais e da República Velha para criar um partido cuja finalidade era, primeiro, derrubar Getúlio Vargas, e, depois, manter em ação a velha ideologia oligárquica. O udenismo se tornou uma uma espécie de religião vulgar, com fortes colorações fascistas (havia, segundo o historiador e general Nelson Werneck Sodré, a UDN parlamentar, a UDN militar e a UDN gráfica); o “antigetulismo” (na prática, uma pregação golpista e antidemocrática, algo idêntico ao “antipetismo” atual) tinha a demagogia e a hipocrisia como prática.

A pregação golpista ganhou intensidade no começo dos anos 1950 e transcendeu o suicídio de Vargas, em 1954. Quando a ofensiva udenista recobrou suas forças, após a repulsa popular ao “antigetulismo”, Leonel Brizola era impedido de falar em comícios; Miguel Arraes, então governador do Estado de Pernambuco, para participar de um programa de televisão em São Paulo entrou pelos fundos da emissora — na frente encontrava-se um grupo de mulheres de terço nas mãos e dispostas a insultá-lo. Era o que o historiador Leôncio Basbaum chamou, em sua obra História Sincera da República, de "O terror psicológico". A coisa funcionava assim: os jornais espalhavam boatos de toda ordem e a direita se aproveitava para criar movimentos minúsculos mas em profusão para passar a imagem de mobilização popular.

Em 19 de março de 1964 — dia de São José, padroeiro da família —, essa religião fascista mobilizou mulheres ricas paulistas para a ''Marcha da Família com Deus pela Liberdade'', incitando o golpe militar. Em nome da família, de Deus e da liberdade o movimento estava defendendo interesses terrenos dos latifundiários, banqueiros, dos grandes industriais e dos Estados Unidos. No dia seguinte, o jornal O Globo comentou: ''Sirva o acontecimento para mostrar aos que pensam em desviar o Brasil de seu caminho normal, apresentando-lhe soluções contrárias ao ideal democrático e ensejando a tomada do poder pelos comunistas, que o povo brasileiro jamais concordará em perder a liberdade, nem assistirá de braços cruzados aos sacrifícios das instituições.''

Comício da Central do Brasil

Os jornais (a UDN gráfica), na verdade, vinham orquestrando uma campanha muito bem ensaiada. O Estado de S. Paulo do dia 14 de março de 1964 disse: ''(…) Depois do que se passou na Praça Cristiano Ottoni (o famoso comício da Central do Brasil, com a presença de 200 mil pessoas, quando o presidente da República, João Goulart, anunciou que acabara de assinar, no Palácio das Laranjeiras, o decreto que propunha um plano de desapropriação dos latifúndios improdutivos acima de 500 hectares, por interesse social), após a leitura dos decretos presidenciais que violam a lei, não tem mais sentido falar-se em legalidade democrática, como coisa existente.''

O presidente havia mexido em um vespeiro. A Folha de S. Paulo do dia 27 de março de 1964, em editorial intitulado ''Até quando?'', indagou: ''Até quando as forças responsáveis deste país, as que encarnam os ideais e os princípios da democracia, assistirão passivamente ao sistemático, obstinado e agora já claramente declarado empenho capitaneado pelo presidente da República de destruir as instituições democráticas?'' Quando o golpe chegou, foi recebido de forma exultante. O Correio da Manhã estampou como título do seu editorial de 31 de março de 1964 “Basta!”, sintetizando numa palavra o desejo da direita naquele dia. No dia seguinte, 1º de abril, o jornal repetiu a dose: ''Fora!''.

As ideias dos golpistas, segundo o ex-governador Miguel Arraes e ex-presidente nacional do Partido Socialista Brasileiro (PSB), transcenderam o regime dos golpistas. "O golpe militar de 1964 não acabou com o processo de redemocratização, iniciado em 1979 com o fim do AI-5. Quem completou o golpe foram os presidentes Fernando Collor e principalmente Fernando Henrique Cardoso. Collor e Fernando Henrique repetiram, com suas políticas de destruição do patrimônio nacional construído nos anos que precederam os seus governos, a política do general Dutra, que dilapidou os recursos que foram acumulados durante a guerra, no governo de Getúlio Vargas. O pior foi que Fernando Henrique fez tudo isso com um sorriso na televisão. Os militares ao menos tinham o lado duro", constatou.

O mitômano FHC

A privataria tucana — principalmente a do Erário, que institucionalizou a parasitária farra financeira — talvez seja o principal símbolo dessa dilapidação. Os tucanos diziam que seria necessário privatizar para “abater” a dívida pública e liberar “bilhões de dólares” das despesas com juros para financiar investimentos sociais. O mitômano FHC chegou proclamar que a taxa de retorno social seria substancialmente mais elevada do que os investimentos em mineração, telefonia e tecnologia industrial. “Cada um que prega contra as privatizações deveria ser obrigado a escrever mil vezes por dia, enquanto houver uma empresa estatal, um analfabeto ou uma criança mal nutrida no país: a democracia exige as privatizações para reduzir a dívida e liberar as despesas com os juros para gastos nas áreas sociais”, esbravejou FHC.

Como se sabe, o dinheiro das privatizações desapareceu, a dívida pública explodiu e a taxa de juros continuou estratosférica. Nem por isso a sanha privatista desapareceu do ideário tucano, como revelou Luiz Carlos Mendonça de Barros. “Se eu estivesse no próximo governo, trabalharia forte na privatização da Petrobras. Esse não é um projeto simples. Tem de ser muito bem estudado, muito bem planejado. Mas acho que deveríamos quebrar esse monopólio que hoje não se justifica. Privatizar ou não é uma questão que tem de ser avaliada de maneira objetiva, não ideológica”, disse ele, que foi um daqueles baluartes da tribo que ajudava a manter no exílio gente como FHC e José Serra.

As teses rasas dos neoliberais dizem que o desenrolar dos acontecimentos no mundo acabou revelando que os teóricos que deram certo não foram Karl Marx, Vladimir Lênin e Mao Tse Tung, mas Milton Friedman, Ronald Reagan e Margaret Thatcher, mesmo depois dos desastres que mostram o fracasso da fórmula “menos Estado e mais mercado”. Na verdade, o resultado dessa lógica é um clássico exemplo do que escreveu Marx em seu livro O dezoito brumário de Luis Bonaparte: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.”

Responsabilidade social

Ninguém expressou melhor a ideologia neoliberal do que Milton Friedman, que formulou uma teoria morta-viva ao criar uma amálgama com velhas ideias liberais, adornadas com tinturas ditas modernas. Ele, que ganhou o Prêmio Nobel de Economia em 1976 e chegou a ser proclamado herdeiro do pensamento de Adam Smith, era, basicamente, alguém que elaborou uma teoria perversa. Para Friedman, qualquer ideia de regulação era uma coisa diabólica, socialista.

Ele era a favor até da extinção do Fundo Monetário Internacional (FMI), cujos empréstimos, dizia, retardariam a velocidade de “ajustes necessários”. O que sobra, em estado puro, de sua teoria é a perversidade social. Uma de suas principais criticas recaía sobre a noção de “responsabilidade social” das empresas. “A empresa pertence aos acionistas. Sua missão é gerar a maior quantidade possível de lucros para eles, respeitando as leis de cada país”, dizia. Segundo Friedman, o conceito de “responsabilidade social” é ''fundamentalmente subversivo''.

É evidente que essa ideia flerta com o fascismo e seria descartada liminarmente, sem mediações, em um processo eleitoral no qual elas fossem devidamente desmitificadas. Para se ter uma ideia, uma pesquisa feita pelo instituto Vox Populi mostrou que dentre as oito alternativas oferecidas em um questionário sobre a missão de uma empresa privada a opção ''dar lucro ao acionista'' apareceu em último lugar. O que a pesquisa sugere é que a população até aceita o capitalismo — desde que os empresários tenham “sensibilidade social”.

Foco udenista semi-vivo

As empresas seguidoras do conceito neoliberal podem, sem dúvidas, serem responsabilizadas por boa parte dos males do planeta Terra. Fossem elas uma pessoa, esse indivíduo seria um psicopata. Alguém capaz de financiar tiranias como o nazismo e o fascismo, de comprar a imprensa e de usar o aparato policial para cometer assassinatos de opositores aos regimes políticos que protegessem suas práticas.

Um sujeito tão desprovido de sentimento que, diante de tragédias ambientais ou naturais, pensaria apenas em quanto embolsaria com a alta do ouro e do petróleo. Alguém que, conscientemente, destrói a camada de ozônio, envenena o leite, queima as florestas e, como se isso não bastasse, usurpa todos os recursos naturais à disposição — até a água da chuva. Tudo em nome do lucro. Há grandes diferenças entre essas ideias e as do fascismo? Parece que não. Como exemplo, temos o caso da ditadura do general Augusto Pinochet, que já no início da década de 1970 implantou os princípios de Friedman no Chile.

Foco udenista

As ameaças desse foco udenista semi-vivo no Brasil, que tenta impedir a marcha da democracia, desmoralizando as forças progressistas, é um desafio de grandes proporções para as ideias que tentam superar a dívida social que o país acumulou com seu povo, que ainda vive as sequelas da escravidão e de outras modalidades de servidão adotadas nas Capitanias Hereditárias pelos donatários de dom João I e mantidas por gerações de sucessores.

Basta constatar que o país, ao galgar uns poucos degraus na escada do progresso social, despertou a reação violenta da direita. Isso quer dizer que essa gente teme, entre outras coisas, ter de limpar seus próprios banheiros e passar suas próprias roupas — ou, então, pagar um dinheiro considerável a profissionais especializados pelo privilégio de não o fazerem. Com imperativos desta ordem, que implicam a perda de regalias há muito estabelecidas, não tem lógica para essa elite ajudar o país a se desenvolver. Esse é o resumo da ópera nas atuais eleições.

*Osvaldo Bertolino é jornalista, editor do Portal Grabois e colaborador da revista Princípios.