Basta de feminicídio

O Brasil é campeão
Em matança de mulher
Tá na sétima posição
E você tem que dar fé
Que isto não pode ser:
Quantas mais tem morrer
Pra tu meter a colher?

Por Salete Maria (*)

feminicidio
E não venha com história
De que é crime passional
Tenha respeito à memória
De quem morreu afinal
É violência de gênero
E você não é ingênuo
De negar no tribunal
 
Chama-se feminicídio
A morte de uma mulher
– a exemplo do genocídio –
Cujo algoz faz o que quer
Baseado no poder
Que ele julga deter
Para usar como quiser
 
É a máxima expressão
Da visão patriarcal
Geradora da opressão
E do machismo cultural
Presente nas relações
E nas instituições
Desse país desigual
 
Acontece todo dia
Do litoral ao agreste
E aqui na cercania
Já virou quase uma peste
Um tipo de epidemia
Que mata muitas Marias
E ainda há quem conteste
 
Atinge qualquer mulher
Da doutora a empregada
Pois tem como pontapé
A ideia equivocada
De que o homem pode tudo
Seja pequeno ou graúdo
 
Ele mata e não tem nada
Todo mundo tem um caso
Pra contar ou lamentar
E em curto ou longo prazo
Outros irão se somar
Se não houver reação
Luta e mobilização
Pra essa história mudar
 
E olhe que o feminismo
Há muito tempo já diz
Que esse tal feminicídio
É a guerra mais infeliz
Que tem na face da terra
Pois ele mata e enterra
Debaixo do seu nariz
 
Homem que bate em mulher
Que humilha e controla
Queima e dá pontapé
Estupra, mata e esfola
Quem nunca ouviu falar?
Mas isso tem que acabar
Pois já passou foi da hora!
 
Mas é bom deixar bem claro
Que isso não é natural
Faz parte do inventário
Da vivência social
Cuja visão dominante
Faz do menino um elefante
E da menina um pardal
 
Cria ele pra bater
E ela para apanhar
O menino é pra correr
E a menina é pra sentar
Ele é para o poder
E ela é para sofrer
E de nada se queixar
 
Ele é pra ser maioral
Ela é pra se adaptar
Ele é pra ver o jornal
Ela é pra louça lavar
Ele é para decidir
Ela é para assentir
 
Sem jamais lhe questionar
 
Ele é para dar as cartas
Em qualquer situação
Ela é pra levar as marcas
No corpo e no coração
Do namoro ou casamento
Do qual só restou tormento
Mágoa e decepção
 
E quando ela não suporta
Esta injusta realidade
Quando enfim abre a porta
Para viver de verdade
Ele então decidirá
Se viva ou morta será
Sua nova identidade
 
Essa é a trajetória
Que o sexismo prepara
E que de forma simplória
Este cordel escancara
Pra dizer que temos sim
Que lutar pra pôr um fim
Nesse horror que nos encara
 
Temos que mudar as mentes
E sobretudo as ações
Colocando outras lentes
Para ter outras visões
Em termos de igualdade
Pois nossa sociedade
É uma fábrica de machões
 
É preciso educar
Com igualdade de gênero
Não basta só palestrar
Num tempinho bem efêmero
Tem que ser algo diário
Persistente e necessário
De janeiro a janeiro
 
Por isso é que o movimento
De mulheres no planeta
É um grande acontecimento
Que tem calda de cometa
E espalha em toda parte
Por lutas, livros e artes
 
A sua imensa luneta
 
Aqui no nosso Brasil
Muitas batalhas travou
É grande o seu desafio
Mas muito já se ganhou
Agora é prosseguir
Sem recuar ou fingir
Que tudo já se ajeitou
 
Na luta já conquistamos
Uma série de direitos
Políticas já celebramos
Mas muito há pra ser feito
Precisamos avançar
E o crime tipificar
Para que surta efeito
 
Além da Maria da Penha
Queremos mais garantias
Pra que nada nos detenha
Nem roube nossa alegria
Queremos viver em paz
Sem morte, dor ou sinais
Da cruel misoginia
 
Que o feminicídio seja
Considerado hediondo
E que o Código o preveja
Para fazermos estrondo
E seguirmos na peleja
Pois nada vem de bandeja
E nem nos desce redondo
 
Tramitando no Congresso
A proposta já está
Pra não haver retrocesso
Precisamos vigiar
Lutando aqui e ali
Para o Brasil sentir
Que jamais vamos calar
 
Vamos cobrar do Estado
Uma maior atenção
E deixar nosso recado
Nessa mobilização
Queremos delegacia
Funcionando noite e dia
 
Chega de enrolação!
 
Queremos que toda a rede
Funcione pra valer
E que não só nas paredes
Sentença ou parecer
Despacho ou petição
Fique a identificação
Daquela que “vai morrer”
 
Queremos Casa Abrigo
Com a melhor estrutura
Para não haver perigo
De existir ruptura
Na oferta da proteção
Enquanto rola a ação
Judicial e segura
 
Queremos autoridades
Sensíveis a nossa luta
E que as Universidades
Se preparem pra labuta
Com as metodologias
Sem as tais hierarquias
Que impedem a escuta
 
Polícia e promotoria
Respeitosa e acessível
Magistratura em dia
Com tudo que for possível
Em termos de teoria
E de nossa rebeldia
Contra esse ódio terrível
 
Defensoria engajada
Em tudo quanto é comarca
E pesquisa atualizada
Contendo tudo que abarca
O contexto social
Do local ao nacional
Mas sem viés patriarca
 
Queremos política pública
Livre de demagogia
Com caráter de república
Sem tutela e apologia
De político machista
Homofóbico e racista
 
Não importa a sua via
 
Queremos mais prevenção
Contra tanta violência
Mudança na educação
Na arte e na ciência
Mais ação e resultado
Mais retorno do Estado
E muito mais diligência
 
É preciso um novo olhar
Sobre nossas relações
Temos que observar
De onde vem as questões
Não rimar amor e dor
Nem dá tiro “por amor”
Ou aceita tais lesões
 
Mulheres e homens tem
Liberdade e autonomia
Violência não convém
Nem pra Zé nem pra Maria
Ninguém pertence a ninguém
Se a pessoa lhe quer bem
Não lhe fará covardia
 
Se você vai nessa linha
Envolva-se um pouco mais
Vá encontrar quem caminha
Em toda marcha lilás
Pois os homens feministas
Também engrossam a lista
De quem quer amor e paz
 
Chega de tanta matança
De tanto sepultamento
Não queremos como herança
Tanta dor e sofrimento
Tanta mulher abatida
Tombada, morta, caída
Entre revolta e lamento
 
Que as mulheres que partiram
Sejam sempre uma razão
Para as que descobriram
Que a luta não é em vão
Poderem gritar bem alto
Bem no meio do asfalto:
 
A vida é que tem razão!
 
Salvador (BA), julho/2014
 
(*) Salete Maria é cordelista feminista; é professora do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade na Universidade Federal da Bahia-UFBA. Foi foi professora do Curso de Direito da Universidade Regional do Cariri-URCA (no sul do Ceará). Foi advogada de mulheres e homossexuais vítima de violência. É membro-fundadora da Sociedade dos Cordelistas Mauditos (sic)