Rui Facó, o marxismo com a cara do Brasil

O livro Cangaceiros e Fanáticos – gênese e lutas, que completou 50 anos de seu lançamento no ano passado (sua primeira edição veio a público em 1963) representou uma enorme renovação no estudo das lutas camponesas no Brasil. Agora, sai a biografia de seu autor, Rui Facó.

Por José Carlos Ruy
 

 

Rui Facó
Com base na aplicação rigorosa do método marxista, ele superou as limitações de estudos anteriores, inclusive do clássico Os Sertões, de Euclides da Cunha, e avançou na compreensão científica daquela realidade, encarando-a como resultado histórico das contradições de classe e da presença massacrante do monopólio da posse da terra, contra o qual o povo pobre encontrou formas múltiplas de resistência. Formas que vão desde a luta armada até a manifestações de caráter messiânico, todas igualmente intensas, sobretudo em processos de luta que combinaram estas duas dimensões, e o povo guiou-se, de armas nas mãos, por ideologias de fundo religioso fortemente igualitárias. Mesmo quando a luta assumiu formas menos nítidas de resistência, enveredando pelo crime puro e simples – como no caso do cangaço – a raiz da luta era o inconformismo em relação ao latifúndio, ao coronelismo e às formas de vida que eles impunham para subordinar os camponeses.
 
Aquele livro tornou-se um clássico. E agora, com o lançamento de Rui Facó (uma biografia) o homem e sua missão, de Luís-Sérgio Santos (Fortaleza, Omni Editora, 2014), pode-se conhecer um pouco mais sobre seu autor, Rui Facó.
 
Nascido em 4 de outubro de 1913, em Beberibe (CE), Rui Facó foi um notável jornalista comunista cuja vida foi colhida, ainda jovem e no auge de sua produção teórica e intelectual, quando o avião em que viajava de Santiago do Chile à Bolívia caiu nos Andes peruanos, próximo ao vulcão Tacora, em 15 de março de 1963. Ele tinha apenas 49 anos de idade e viajava como repórter do jornal comunista Novos Rumos e para representar o Partido num congresso dos comunistas chilenos. Ele chegou nem mesmo participar do lançamento de Cangaceiros e Fanáticos, que ocorreu logo depois de sua morte, em 26 de abril de 1963.
 
Rui Facó era filho de uma família de pequenos fazendeiros,  militares e intelectuais. Teve tios com importantes cargos na Segurança Pública no Ceará e na Bahia. Outro tio, Américo Facó, foi um poeta respeitado e amigo de Carlos Drummond de Andrade, que dedicou a ele o livro Claro Enigma (1951). 
 
Ele mudou-se para Salvador (BA) em 1936, para terminar o curso de direito. E, na capital baiana, encontrou o Partido Comunista do Brasil. “Em 1935, a faculdade tinha uns quarenta jovens comunistas, militantes que se reuniam diariamente”, diz Luís-Sérgio Santos. Esse número diminuiu bastante depois do levante da Aliança Nacional Libertadora, em novembro de 1935. Mas Rui Facó, que se manteve filiado ao partido, teve forte atuação na imprensa baiana, trabalhando nos Diários Associados e no jornal A Tarde. Nos anos 30, participou de Seiva, a revista dos comunistas; depois esteve em publicações partidárias como Continental (anos 40), Estudos Sociais (anos 50 e 60), A Classe Operária, Novos Rumos (desde a fundação, em fevereiro de 1959, até sua morte, em 1963), etc.
 
Toda essa atividade jornalística despertou o historiador (afinal são atividades muito parecidas, uma voltada sobretudo ao relato do presente, e a outra à compreensão do passado) e o teórico marxista. Caráter teórico, aliás, fortalecido nos cursos em que participou principalmente na União Soviética, onde também exerceu funções profissionais na rádio Moscou, em programas dirigidos ao Brasil.
 
O foco profissional de Rui Facó foi múltiplo, unificado pelos interesses e pela política do Partido. Ele foi, por exemplo, um dos roteiristas (com Jorge Amado e Astrojildo Pereira) do filme Vinte e Quatro anos de luta (1946), dirigido pelo cineasta comunista Ruy Santos. Foi também tradutor de livros marxistas, entre eles (com Josué de Almeida e Almir Matos) da História do Partido Comunista da União Soviética, lançado em português pela Editora Vitória em 1962.
 
As referências sobre a vida de Rui Facó são escassas, e o livro de Luís-Sérgio Santos preenche esta lacuna. Com a morte de Rui Facó, naquele acidente aéreo em 1963, o marxismo perdeu uma de suas promessas mais veementes de desenvolvimento a partir do exame da realidade brasileira e suas contradições. O conhecimento de sua vida, suas lutas, seu espírito aberto e brincalhão, solidário e conceitualmente rigoroso, pode ser fonte de inspiração para a continuidade e aprofundamento da luta teórica que enriqueça o marxismo com feições brasileiras.