Antonio Rodrigues: A organização do futebol e o sentido das mudanças

Após a eliminação da Seleção Brasileira na Copa de 2014 tornou-se lugar comum afirmar que o futebol brasileiro precisa mudar.

Por Antonio Rodrigues do Nascimento*

Futebol - Divulgação

Além do placar do “Mineiraço”, a grande mídia muito contribuiu para a vulgarização da necessidade de mudanças no futebol através do espaço dado, imediatamente após a derrota, à nem sempre sincera indignação dos “especialistas”, os quais, salvo honrosas exceções, praticaram contorcionismos verbais para equilibrar o discurso mudancista com a cumplicidade baseada em interesses comuns que mantêm de longa data com a direção da CBF.

Por outro lado, é inegável que o clamor por mudanças no futebol brasileiro reflete também a posição declarada das maiores autoridades do país diretamente responsáveis pela realização da Copa, ainda que as recentes manifestações do governo revelem cuidado em calibrar o tom da crítica ao status quo da organização desportiva para não perder o foco da celebração dos muitos resultados positivos obtidos pelo país fora do campo.

Chama atenção dois recentes pronunciamentos das autoridades da República que ilustram o referido discurso pró-mudanças pós-goleada. Dois dias depois do “massacre” de Belo Horizonte, em 10/07/14, durante briefing da FIFA, o Ministro do Esporte, Aldo Rebelo, afirmou que o futebol brasileiro precisa de mudanças. A derrota para a Alemanha evidencia ainda mais essa necessidade(http://globoesporte.globo.com/futebol/copa-do-mundo/noticia/2014/07/ministro-dos-esportes-pede-mudancas-no-futebol-brasileiro-marca-profunda.html). No dia seguinte, 11/07/14, a Presidenta Dilma Roussef declarou em entrevista à Globo News que o grande aprendizado daquele dia [08/07/14] é a consciência de que nós temos de mudar o futebol brasileiro (http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2014/07/globonews-eleicoes-renata-lo-prete-entrevista-dilma-rousseff-pt.html).

Diante de toda a retórica em favor das mudanças é preciso destacar que o significado forte desta palavra traduz a ideia de transformação e, nesse sentido, mudar quer dizer modificar um estado, modelo ou situação pré-definidos. Contudo, a palavramudança também quer dizer troca de lugar; mudar, no caso, significa apenas deslocaralgo ou alguém de um local ou função para outro. Neste último sentido a mudançanão equivale à transformação, ao revés, não raro mudanças são realizadas para manter o estado das coisas no mesmo lugar. Portanto, é de todo pertinente especular sobre qual é o sentido das apregoadas mudanças necessárias ao futebol brasileiro, uma vez que a discussão do tema, até aqui, muito pouco ou quase nada revela, e pelo andar da carruagem talvez seja reduzida a muito barulho por nada.

Os “leopardos” da CBF avessos à mudança

As mazelas do futebol nacional e reivindicação por mudanças são tão antigas quanto a própria organização desportiva do país. Em 1938, Tomás Mazzoni, pioneiro do jornalismo esportivo, constatava o fato de que o futebol brasileiro, nas décadas antecedentes (!), passava a impressão de uma fábrica próspera, produtiva e dinâmica, mas muito mal dirigida, com fases até de verdadeiros colapsos. A reflexão desesperançada do cronista concluía que o suceder-se dos anos nos deu uma experiência suficiente para não levarmos a sério a política dos clubes e esperar algo da mentalidade dos dirigentes (“Problemas e aspectos do nosso futebol”, São Paulo, 1939). Passados 76 anos, os ecos das palavras de Mazzoni reverberam na denúncia do Bom Senso F.C., publicada em 14/07/2014 sob o título Porque a tragédia da Copa não afetará a CBF – As artimanhas dos cartolas para impedir a mudança(https://medium.com/@BomSensoFC/por-que-a-tragedia-da-copa-nao-afetara-a-cbf-a10386edfad2).

O texto do Bom Senso F.C. joga luzes sobre a manobra dos 47 dirigentes do futebol profissional brasileiro para “blindar” preventivamente a direção da CBF contra as reivindicações por mudanças na estrutura de poder e gestão da entidade diante do fracasso da Seleção na Copa. A “blindagem” foi concretizada pela eleição antecipada da diretoria para o próximo quadriênio (2015-2019), pois o pleito que deveria ocorrer entre os meses de outubro de 2014 e abril de 2015, portanto, após o final da Copa, foi realizado no mês de abril de 2014, elegendo o candidato único da situação, Marco Polo Del Nero. A manobra garantiu a sobrevida do modelo tradicional de governança instituído pelo primeiro presidente da entidade, João Havelange, prócer da organização do futebol brasileiro desde 1956, quando se tornou dirigente da antiga Confederação Brasileira de Desportos – CBD (antecessora da CBF). Por mais de meio século Havelange influiu decisivamente na organização futebol nacional, quer como dirigente da CBD/CBF quer como presidente da FIFA. Em 1989, Havelange fez de seu então genro, Ricardo Teixeira, presidente da CBF. Após 23 anos no comando, acossado por denúncias de corrupção, Teixeira transmitiu o cargo a José Maria Marin, que agora entroniza o cartola paulista Del Nero, legítimo representante da oligarquia do futebol brasileiro.

Havelange/Teixeira e seus vassalos ditam os rumos e as regras do jogo por mais de 60 anos. A toda evidência, este apego ao poder deriva muito menos da paixão pelo esporte e muito mais dos interesses econômicos relativos ao football business, como demonstram apenas os números extraídos dos balanços da CBF e dos clubes brasileiros, isto é, de suas contabilidades por dentro. Mudam nomes, mudam regras, mas, tudo continua como sempre e, se é verdade que muita coisa mudou desde os tempos de Mazzoni, a nação aturdida pelas recentes blitzes alemã e holandesa contempla os cartolas da CBF e constata, assombrada, a verdade da máxima da personagem criada por Tommaso di Lampedusa na obra “Il Gatopardo” (O Leopardo): se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude. A frase de Tancredi se aplica perfeitamente ao futebol brasileiro. Senão vejamos.

Mudanças para ficar no mesmo lugar e os negócios do futebol

As mudanças legislativas relativas à falácia (para não dizer fraude) que sustenta serem os clubes de futebol profissional no Brasil “entidades sem fins econômicos”, mais que um exemplo paradigmático da aplicação da frase de Lampedusa, constitui a materialização da mudança como expediente de engodo. A questão é estrutural para a compreensão dos problemas e descaminhos da organização do futebol brasileiro porque diz respeito aos entraves políticos e administrativos que impedem a criação de condições objetivas para a formação dos nossos atletas e qualificação geral das competições nacionais profissionais (Futebol & relação de consumo. São Paulo: Manole, 2013). Desde sempre, quando se fala em mudanças no futebol brasileiro o tema vem à tona, no entanto, muda-se para ficar no mesmo lugar. Senão vejamos.

Ao estabelecer originalmente as bases de organização dos desportos em todo o país durante a ditadura do Estado Novo, Getúlio Vargas proibiu a organização e funcionamento de entidade desportiva de que resulte lucro para os que nela empreguem capitais sob qualquer forma (Decreto-Lei nº 3.199/41). 52 anos depois, com o objetivo de instituir normas gerais sobre desporto, a “Lei Zico” (Lei nº 8.672/93), dentre dezenas de assuntos tratados, deu aos clubes a faculdade de transformarem-se em sociedades comerciais com finalidades desportivas, porém, a despeito da autorização legal, a “falta de apetite” dos dirigentes esportivos para empreender levou-os a ignorar a faculdade prevista em lei e continuar fruindo das muitas benesses que seus clubes e eles próprios gozam em decorrência do status de “entidades filantrópicas”.

Passados menos de cinco anos da publicação da “Lei Zico” sobreveio a “Lei Pelé” (Lei nº 9.615/98). A nova lei, igualmente no bojo de dezenas de disposições atinentes às normas gerais sobre desporto, tornou obrigatória a constituição ou contratação de sociedades com fins econômicos ou comerciais para a prática de atividades relacionadas a competições de atletas profissionais. Porém, às vésperas do término do prazo concedido pela lei para efetivação das mudanças, a famigerada “bancada da bola” obteve do ex-presidente FHC a edição da Medida Provisória nº 2.011/2000, que reconverteu a obrigatoriedade imposta aos clubes à mera faculdade. A medida provisória foi sacramentada pela “Lei Maguito Vilela” (Lei nº 9.981/2000) que garantiria às “entidades sem fins lucrativos” continuar livremente contribuindo para a fortuna de seus dirigentes e parceiros de negócios, como comprovam os patrimônios de Havelange, Teixeira et caterva.

A questão da regulamentação legal da exploração econômica do futebol emergiria, uma vez mais, em 2003, porém, desta feita, a lei sancionada pelo ex-presidente Lula não foi preordenada a instituir normas gerais e mudar totalmente a “Lei Pelé”; tampouco injetou gás no debate estéril sobre o direito (faculdade) ou dever (obrigatoriedade) dos clubes de futebol profissional de transformar-se em empresas. A Lei nº 10.672/2003 concentrou-se, cirurgicamente, no tema do modelo de exploração e gestão do futebol profissional, alterando a “Lei Pelé” para dispor que estas atividades constituem exercício de atividade econômica, sujeitando-se à observância dos princípios da transparência financeira e administrativa e da moralidade na gestão desportiva, dentre outros, independentemente de sua forma de constituição jurídica. Além disso, reconheceu a organização desportiva do País como patrimônio cultural brasileiro de elevado interesse social, inclusive para legitimar a atuação do Ministério Público na sua proteção e defesa. Concomitantemente à promulgação Lei nº 10.672/2013 o ex-presidente Lula promulgou a Lei nº 10.671/2013, o Estatuto de Defesa do Torcedor, que instituiu um regime jurídico especial, articulado com o Código de Defesa do Consumidor, para a proteção e defesa dos direitos individuais e coletivos dos torcedores brasileiros frente à organização desportiva.

Não obstante, a realidade revela que a vigência das leis promulgadas em 2003, apesar de terem criado um arcabouço legal adequado e suficiente para a regulação da exploração e gestão do futebol profissional, não resolveu os graves problemas criados pela dissimulação dos negócios do futebol, que continua operando através de uma estrutura de governança arcaica e carcomida por intermitentes denúncias de corrupção, cuja base é formada por clubes em regra mal geridos por dirigentes acobertados sob o manto dos estatutos jurídicos das “entidades sem fins lucrativos”, que os protegem das normas tributárias e da responsabilidade civil e penal pelos atos praticados à frente das entidades do futebol.

Duas propostas de mudanças legislativa cirúrgicas e uma ação político-administrativa

Visto que as mudanças amplas, gerais e irrestritas, como nos casos do Decreto-Lei nº 3.199/41, Leis Zico e Pelé, sempre tenderam a regular o sistema desportivo nacional garantindo a manutenção do status quo, penso que o Governo Federal muito poderia contribuir com mudanças no sentido da transformação caso tome a iniciativa de encaminhar duas inovações legais de âmbito específico e uma ação político-administrativa.

A principal inovação legal deve incidir sobre o consórcio entre a grande mídia e os cartolas. Os direitos de transmissão representam a maior parcela da receita dos grandes clubes e passam longe dos balanços dos pequenos e médios. Além disso, os acordos financeiros celebrados pelos grandes clubes acabam por violar até mesmo o direito dos torcedores, privando-os de acesso às partidas graças a cláusulas de exclusividade incompatíveis com a natureza pública das concessões de radiotelevisão. É preciso criar uma legislação específica que garanta a aplicação dos princípios da transparência financeira e da moralidade nas negociações de direitos de transmissão; respeite o direito dos torcedores, bem como institua a distribuição solidária das receitas. Não parece justo ou adequado ao fortalecimento do futebol profissional brasileiro que meia dúzia de grandes clubes, “sem fins econômicos”, açambarque praticamente todos os recursos gerados por competições que só acontecem com a participação de dezenas de clubes de menor porte. O novo modelo deve prever a distribuição igualitária de parte dos recursos a todos os participantes da competição, combinada com a distribuição de parcela segundo o desempenho das equipes.

Outra mudança que deve ocorrer na legislação é majoração da idade mínima para contratação de jogadores brasileiros por clubes estrangeiros e a proteção dos direitos dos jovens atletas; atualmente é possível levar adolescente para fora do país a partir dos 14 anos. Por outro lado, os clubes devem garantir aos atletas a formação necessária à cidadania e ao desenvolvimento sadio, garantindo ao atleta adolescente a escolarização e convívio com a família.

Por fim, mas não menos importante, do Governo Federal que anseia por mudanças depende exclusivamente a iniciativa de promover, diretamente ou através de convênios, a fiscalização do cumprimento das leis já em vigor pelos clubes, federações e CBF, principalmente no que diz respeito à administração de recursos públicos repassados e ao equilíbrio das contas das entidades. Tanto o Ministério do Esporte quanto os órgãos de controle, em especial, o TCU e Ministério Público, cada um nos limites de suas competências, devem atuar para garantir a moralidade e a transparência na gestão das entidades do futebol brasileiro, só assim poderemos criar condições para alcançar a excelência dentro de campo e voltar a ostentar com orgulho a legenda de país do futebol.

*Antonio Rodrigues do Nascimento  é Advogado e Professor de Direito, Especialista em Direito Administrativo e Direito das Relações de Consumo. Autor de “Futebol & relação de consumo”

Fonte: Blog do Sorrentino